No fragmento 72 dos Pensamentos, Pascal sustenta que o homem deve se encarar com um ser extraviado 6 que está preso em uma pequena cela 7 (mundo). Aqui está o primeiro elemento que queremos abordar. O homem está extraviado como se estivesse preso em uma pequena cela. Quando afirmamos isso dizemos implicitamente que tal estado não é natural ao homem, senão é a condição em que ele está.

Se o homem vive num extravio, como afirma Pascal: O homem não sabe em que lugar se colocar. Está visivelmente perdido e caiu de seu lugar sem conseguir reencontrá-lo. Busca-o por toda parte (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 427), é porque ele tem um lugar primeiro, o qual, de maneira nenhuma é onde ele se encontra atualmente. O homem vivia, na concepção pascaliana, em um estado de grandeza. Neste estado ele era.forte, santo e justo. Estava em posse da plena sabedoria e contemplava Deus face a face, como já tratamos. Para narrar esse estado primeiro, Pascal oferece-nos um fragmento onde a elocução da sabedoria de Deus, apontará a atitude do homem em seu estado anterior e atual situação da humanidade:

Criei o homem santo, inocente, perfeito; enchi-o de luz e de inteligência; comuniquei-lhe minha glória e minhas maravilhas. Os olhos do homem viam, então, a majestade de Deus. Não se achava nas trevas que o cegam, nem na mortalidade e nas misérias que o afligem. (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 430).

Deus criou o homem para a felicidade! Por isso Pascal (Pensamentos, 1973, frag. 425) afirma todos os homens procuram ser felizes; não há exceção. Assim, todas as ações do homem, por mais medonha que possam parecer, no fundo sempre têm um desejo de encontrar felicidade: ... por mais diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim felicidade... (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 425), até mesmo para aqueles que vão se suicidar aponta Pascal: esse é o motivo a felicidade de todas as ações do homem, até os que vão enforcar-se (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 425). O desejo de ser feliz orienta o ser humano, e ele busca satisfazer esse seu coração que é voltado, de forma misteriosa, para o infinito com as coisas mais passageiras (ex.: as ciências) e, às vezes, com coisas que são até mais passageiras que o próprio homem (ex.:bens materiais). Sustenta Pascal: assim como o presente nunca nos satisfaz, a experiência nos engana e, de infelicidade em infelicidade, conduz-nos até a morte, que é o seu teto eterno (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 425). Faz isso porque até as coisas, por menor que sejam, podem, de alguma forma, aliviar sua inquietude de ser. No fundo, o homem aspira pelo Ser, o mesmo que um dia ele recusou deliberadamente ao pecar com sua revolta orgulhosa. Essa ânsia pelo Ser é como que a marca desta primeira natureza. A luz confusa a que Pascal se refere no fragmento 430 relaciona-se com esse instinto impotente de felicidade (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 430) ou de busca pelo verdadeiro Ser: Deus. Em resumo: o homem tem, uma vontade voltada ao infinito (marca da grandeza), como dissemos, e só o infinito lhe pode saciar plenamente como ele quer, como ele anseia. O homem um dia possuiu o infinito e este preenchia sua vontade. O homem contemplava a Deus, o único infinito capaz de satisfazê-lo. E é nesse momento de contemplação que se caracteriza a primeira e original natureza do homem. Este estado de grandeza constituía a primeira natureza humana. O homem não se encontra mais neste estado, não pôde manter tanta glória sem cair na presunção. Assim assevera Pascal:

Quis tornar-se o centro de si, independente do meu socorro. Subtraiu-se ao meu domínio; igualando-se a mim pelo desejo de encontrar a sua felicidade em si mesmo, abandonei-o; revoltando as criaturas que lhe estavam submetidas, tornei-as suas inimigas: de maneira que, hoje, o homem tornou-se semelhante aos animais, e num tal afastamento de mim que apenas lhe resta uma luz confusa do seu autor ... (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 430).

O homem pascaliano quis tornar-se o centro de si. Seu grande erro foi querer encontrar a felicidade em si mesmo; este é o motivo de sua queda. A queda tem dois aspectos. O primeiro aspecto é que a perfeição do homem criado à imagem da glória de Deus não foi totalmente apagada pela queda (essa queda é incompleta, pois ainda resta-lhe traços da sua primeira natureza instinto impotente e luz confusa); o segundo aspecto é a inversão da causa da glória de Deus para si. O homem guiado pela presunção (por isso orgulho) tentou fazer-se centro de si igualando-se a Deus. Por causa desse seu orgulho, Deus o abandona e ele passa a viver no seu segundo estado que é de miséria. Este homem decaído perdeu a sua identidade, pois perdeu o ser que lhe dava o conhecimento de si. O homem após a queda perde sua relação com Deus. Sem relação com Deus não pode mais conhecê-lo e em se conhecer. Com a queda o homem perde a plenitude do ser: Deus. Sem Ele, o homem encontra-se no nada, uma vez que Deus é tudo. Esse termo tem um sentindo filosófico na perspectiva de Pascal. Nada em francês é néant pode ser traduzido por, falta de..., de nenhuma família, de nenhuma nação, de origem inatingível. Neste sentido, o homem é uma néant, pois sem identidade não pode saber com certeza sua origem, e nem sua finalidade (telos).

O homem decaído ainda traz vestígios de sua primeira natureza. Ele sabe, mesmo diríamos nos termos de hoje inconscientemente, que só Deus é capaz de preencher seu vazio e mostrar de fato qual é sua identidade.

Este indigente termo este que nos dias atuais tem um significado semelhante a néant já não possui a Deus: o único infinito capaz de satisfazer a sua vontade; por isso, vive em um vazio. Procuram nas coisas finitas algo que preencha este vazio, mas o que estas lhes proporcionam são apenas prazeres momentâneos. O homem nunca está feliz com o que possui, sempre coloca a sua felicidade em coisas que supostamente virá a possuir.

Como as coisas só preenchem seu vazio de forma momentânea, pois o presente nunca nos satisfaz, a experiência nos engana (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 425), logo o homem defronta-se consigo mesmo, olha para si e não suporta ver seu estado de miséria, não consegue encarar-se a si mesmo, e ver seu eu verdadeiro. A observação deste espetáculo do eu verdadeiro (vazio interior, abismo infinito) causa no homem um tédio que o coloca em incessante movimento para o divertissement. 8 Por não suportar a si mesmo o homem passa a divertir-se (divertissement).

Um dos sinais mais marcantes da miséria humana é fazer de si um obstáculo para si mesmo. Ele desvia-se de si mesmo. O divertimento, é a forma privilegiada que o homem encontra para desviar o olhar de si mesmo, já que seu eu verdadeiro lhe é insuportável. O divertimento é uma espécie de fuga, onde ele busca atividades que o consiga distrair. Segundo Pascal ocupam-se os homens com uma bola ou uma lebre; esse é o prazer, para os reis inclusive (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 141). Quando o homem olha para si mesmo, e se vê como um abismo infinito, como um ser incapaz de conhecer a si próprio, percebe que sua razão limitada não pode conhecer a Deus e, não podendo conhecer a Deus, jamais poderá afirma que houve uma criação divina. Mais ainda, não poderá dizer se ele próprio é criado por Deus ou não. Sustenta Pascal: é igualmente incompreensível que ... o mundo tenha sido criado e que não o tenha, etc... (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 230)

Se o homem não tem acesso a criação e sua determinação, então ele não conceber que foi criado obedecendo a um modelo: a uma natureza humana 9. Se assim é aquilo que chamamos natureza humana, no fundo, é uma infinita maleabilidade. Nesta infinita maleabilidade, o homem, passa a forjar o seu ser. Ele cria uma imagem de si conforme gostaria que fosse e vive segundo esta imagem. Este ser que o homem forja, ou seja, a imagem que ele faz de si mesmo, leva-o a ser escravo da imagem que ele cria para ter reconhecimento do outro, para ganhar a estima alheia.

O modo como muitas pessoas se apresentam a nós não corresponde com o seu ser verdadeiro. É apenas uma máscara que ela cria para evitar o seu sofrimento, buscando ser amada e atrair a atenção das pessoas para si. No tédio, o homem troca o ser pelo parecer. Amamos no outro a sua aparência, sua beleza que é um acidente. portanto, não amamos nunca a pessoa, mas somente as qualidades (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 323).