A CURA PENTECOSTAL:
UM PERCURSO DE ADOECIMENTO, EXORCISMO E LIBERTAÇÃO

Maria Lúcia Pereira de Oliveira
Alberto da Silva Moreira
Psicóloga, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Goiás.
Prof. do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UCG, orientador da dissertação original.
"Aspectos psicossociais da conversão religiosa. Um estudo de caso na Igreja Universal do Reino de Deus", defendida junto ao programa de Pós-graduação da Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2006


Este artigo é resumo de uma dissertação de mestrado com base empírica que procura analisar a profunda crise de identidade e a busca de sentido em pessoas que se converteram à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) . Buscou-se nas histórias de vida de Alice, Nilva e Lucas (nomes fictícios), fiéis da Igreja Universal, conhecer os processos psicossociais que estavam por trás de uma crise de identidade (adoecimento), como ela se desencadeou, que fatores intervieram na conversão (exorcismo) e em que bases psicossociais se construiu a relação do fiel com a mencionada Igreja (libertação).
É na fase de crise que elas se encontram com a proposta de cura da Igreja Universal do Reino de Deus. Através da libertação pelo exorcismo, da atribuição da culpa ao diabo e dos ritos de conversão, que funcionam de modo a reestruturar seu mundo interior (identidade) e a reordenar seu mundo exterior (relações familiares e sociais), essas pessoas sentem viver o processo de cura. Assumem uma rigidez que protege sua subjetividade ameaçada: verdades absolutas, nenhuma dúvida, regras rígidas, repetições. Sentem-se então pertencendo ao mundo dos virtuosos, reconquistam autoconfiança, esperança, uma visão positiva e até superior de si mesmas.
A conversão significou para essas pessoas um verdadeiro processo de cura, um percurso terapêutico. Elementos fundamentais na percepção que a pessoa tinha de si e do mundo mudaram após o encontro com a oferta religiosa da Universal, o que implica mudança em aspectos importantes da identidade pessoal e social.
As situações de conflito vividas pelos fiéis da Iurd se dão nos quadros da globalização capitalista tardia, de uma modernidade globalizada e periférica, que, para empregar uma noção de Giddens (2005), "desencaixa" as pessoas de seus referenciais culturais, desloca-as de seus contextos imediatos de existência, provoca desemprego e pobreza, desencadeando conflitos internos e angústias que podem chegar a uma crise profunda ou desestruturação identitária. Nesta fase adiantada de adoecimento, dá-se o encontro ou a busca de uma "terapia" ou cura radical, oferecida pela igreja pentecostal, no caso específico a Universal do Reino de Deus. Passando pelo processo da conversão, que supõe o descarrego e o exorcismo, a dependência dos ritos e a assunção das regras determinadas pela igreja, a pessoa afirma estar liberta e curada, numa "vida nova".
Algumas perguntas foram feitas, como por exemplo, o que significa adoecimento e "cura" nesta trajetória? Como se dá a alegada libertação e reestruturação dos indivíduos? Tais questões serviram de fio condutor para nosso esforço de investigação e para a exposição que se segue.

1 - O ADOECIMENTO - o processo de desestruturação identitária do futuro fiel da Igreja Universal

O processo de adoecimento é considerado aqui como o processo de desestruturação identitária do futuro do fiel da Igreja Universal. Para essa análise partimos em primeiro lugar de uma visão microscópica do social, centrando o estudo sobre o indivíduo e o impacto das relações sociais na subjetividade, tentando mapear o processo de desestruturação identitária, ou o terrível percurso de adoecimento vivido pelo fiel da Igreja Universal.
As pessoas entrevistadas mencionaram estarem vivendo situação de desemprego, problemas familiares, problemas de saúde, falta de sentido para viver, falta de orientação, o que desencadeia visão negativa de si mesmos e do mundo como os problemas que mais os afligiam. As situações vividas por esses fiéis da IURD fazem parte de um cenário social amplo e complexo, ligado à pobreza e à exclusão social. A problemática social típica da modernidade capitalista tardia, numa fase acelerada de mundialização, e com as características próprias da situação brasileira, desencadeia nessas pessoas sentimentos de desamparo, abandono, exclusão e construção de uma identidade negativa de si mesmos.
Tais problemas psicossociais afetam diretamente o indivíduo e podem levá-las a uma crise de identidade no sentido apresentado por Taylor (1997). Para ele quando o indivíduo perde a significação das coisas, está instalada a crise de identidade. A crise de identidade enquanto doença é percebida pelos depoimentos do fiel da Iurd como um momento em que perderam a ligação com uma realidade que lhes dava estrutura e determinava que posição defendiam sobre o que era bom, válido ou admirável para eles. Segundo Taylor (1997), essa é uma forma aguda de desorientação que as pessoas costumam exprimir em termos de não saber quem são, mas que pode também ser vista como uma incerteza radical acerca da posição em que se colocam.
Nos seus estudos sobre a questão da identidade Kathrin Woodward (2003) ressalta que esta é construída a partir de uma constância na história dos indivíduos e também nas histórias coletivas em uma determinada sociedade. A identidade necessita do diferente, ela se afirma por aquilo que não é. Para compreender os processos psicossociais da crise de identidade individual, é preciso aproximar-se da estreita relação entre subjetividade, modernidade e identidade. Woodward (2003, p. 55) diz que, "Nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual nós adotamos uma identidade".
As dificuldades enfrentadas por Alice, Nilva e Lucas no seu cotidiano, e vividas por eles como insuperáveis, desencadearam a crise que os levou à Universal. Com base nos seus relatos de vida pudemos perceber o percurso de adoecimento dos fiéis da Iurd.
A seguir enumeramos algumas situações extremas que provocaram o adoecimento.

A ? A desestruturação da família
Nas entrevistas o primeiro fator a aparecer, subjacente à crise individual, é a crise da família como núcleo identitário. Em todos os depoimentos fica claro a impotência das famílias, sobretudo daquelas famílias pobres, de darem conta de uma realidade social cada vez mais agressiva, individualista, intangível, que desvaloriza crenças e valores e mostra total indiferença quanto à situação das pessoas. Em todos os relatos o núcleo familiar estava marcado por terríveis conflitos, desorganização e violência, gerando nas pessoas uma experiência constante de tensão, angústia e desamparo.
Em nossa sociedade existe uma grande expectativa social de que a família produza cuidados, proteção, aprendizado dos afetos e dos riscos, construção de identidade e vínculos relacionais de pertencimento. São tais pressupostos que possibilitam melhor qualidade de vida às pessoas e sua efetiva inclusão social na comunidade e na sociedade, segundo Carvalho (2002). Essa é a concepção de família padrão construída socialmente. No entanto a família real vive num contexto determinado, e este tanto pode fortalecer como esfacelar suas possibilidades e potencialidades.
As famílias pobres vindas do interior para a grande cidade, mas não apenas elas, encontram dificuldades para se estabilizar, passam por progressivas "etapas de desilusão" conforme as etapas do descenso social, recorrem à bebida e descarregam nas agressões familiares as frustrações ou mesmo as agressões sofridas no novo contexto. Mesmo que esse processo não tenha sido vivido diretamente pelo fiel entrevistado, mas por seus pais, ele está presente no cotidiano das famílias na periferia. Além da perda ou do caos nas referências culturais, observa-se em muitas situações a perda extrema de referenciais seguros, perda de confiança em si e no mundo, todos fatores necessários para desenvolver a esperança e uma perspectiva para o futuro.

B ? O rompimento dos laços e a dificuldade de orientação

O segundo ponto é rompimento dos laços e a dificuldade de orientação de acordo com os relatos dos fiéis da IURD. Essa dificuldades confirmam as observações de Oro (1996, p. 109), ao afirmar que há uma desorientação normativa generalizada, uma anomia, em decorrência de uma realidade sociocultural em crise. Por um lado, este contexto sociocultural impõe a liberdade não como possibilidade, mas como obrigação (Domingues, 2004, p. 80). Por outro lado, a instabilidade social, política e econômica, o consumo de drogas, desemprego, violência, conflitos geracionais e desintegração das famílias perturbam profundamente a criação de um quadro de referências estáveis (Oro 1994,109).
Essas pessoas, ao contrário do que se poderia imaginar, não foram "arrancadas de seus contextos" (Domingues, 2004; Giddens, 2005), não sofreram diretamente o choque cultural da migração ou do êxodo rural, mas sofreram as conseqüências desse processo nas histórias de família. Para algumas pessoas em crise identitária, o conjunto de mudanças sociais pode provocar conflitos, mas o indivíduo não perde a noção de si mesmo e nem do lugar que ocupa na sociedade. Outras pessoas, conforme diz Taylor (1997), entram em profunda desestruturação identitária, que pode ser vivida subjetivamente como um verdadeiro inferno.
Os fiéis da IURD apresentam um perfil de pessoa que enfrenta grandes dificuldades em relação à quebra de fronteiras, à indefinição dos limites e à frouxidão do mundo plural. O trânsito religioso anterior, parece não ter conseguido estabelecer nenhum sentimento de pertença mais duradouro. Nas suas falas não conseguiram formular nenhuma síntese da experiência religiosa anterior à IURD que pudesse ser aplicada à sua rotina cotidiana.

C ? O fracasso como experiência cotidiana

Segundo nossa observação, os sentimentos experimentados por muitos fiéis da IURD são de flagrante fracasso diante de um mundo instável, de regras mutantes, altamente agressivo e competitivo, onde não há pontos seguros de apoio, e no qual a pessoa está sempre jogada à própria sorte e ao desconhecido. A experiência de fracasso é algo reiterado que se internaliza. Essa carga excessiva sobre a subjetividade já abalada das pessoas, das quais às vezes ainda dependem outras, como os filhos, produz distúrbios psíquicos e emocionais em graus e intensidades diversas. Ao se falar de fracasso, pode-se compreender o quanto as pessoas entrevistadas se sentiram desorientadas, confusas e desesperadas; para elas o chão no qual se apoiavam havia sumido, foi como se perdessem o próprio mundo e a si mesmas.

D ? A construção de uma identidade negativa

Um outro fator foram as experiências constantes de fracasso que conduziram os entrevistados à construção de uma visão negativa de si mesmas, pois nunca atingiam o que a sociedade estabelece como nível de realização e sucesso. Suas narrativas apontam para uma crise radical na vida, uma grande frustração e desespero. A frase que expressa e traduz esse processo psicossocial de adoecimento é "eu me encontrava no fundo do poço", ou "eu estava num beco sem saída". Essas frases são verbalizadas tanto pelos fiéis como pelos pastores da Universal, que as utilizam no processo de atração de novos membros para a igreja.
A visão negativa de si mesma conduz a pessoa à construção de uma identidade negativa que segundo Erickson (1968) "representa uma tentativa desesperada de recuperação de algum domínio numa situação em que os elementos existentes de identidade positiva se cancelam mutuamente".

E - Crise identitária: o fundo poço
Sobre a experiência de fundo do poço uma entrevistada afirma que " a gente nunca vai (à Universal) por amor... Vai sempre pela dor. Esses depoimentos apontam para um sofrimento psíquico muito grande. Para os sujeitos entrevistados podem existir problemas com a "saúde física", problemas familiares, problemas financeiros, mas o que os conduziu à IURD foi o sofrimento psíquico.
Acompanhando a crise vem o sentimento de vergonha, associado à culpa. A vergonha pode ser percebida nos três depoimentos aqui apresentados. Nilva, por exemplo, diz que sentia vergonha de si mesma, ela classifica suas escolhas como coisas feias. Ela diz: "Eu estava com vergonha, uma mulher velha igual eu, ficar no mundo desse jeito aí".
A vergonha de Lucas aparece quando ele se percebe pequeno diante do mundo que o condena, que o exclui do convívio, com aqueles que se consideram superiores e a quem Lucas enfrentava com agressividade. Mesmo assim, ele sucumbiu ao desprezo e à indiferença dos demais. Mais tarde na igreja, compreensivelmente, Lucas vai buscar identificações fortes; ele apreciava a autoridade dos pastores e admirava o poder que exerciam sobre os demônios.
Os momentos de crise profunda, descrita pelos entrevistados como "fundo do poço", são propícios para se tentar fazer novas configurações da vida. É geralmente nesses momentos que acontece a conversão à Igreja Universal do Reino de Deus.
O pastor Edir Macedo, em depoimento à revista Veja (6/12/1995, apud Bonfatti, 2000), declarou que a situação de sofrimento faz da pessoa uma presa fácil para a conversão religiosa. Diz ele que essa mudança não é difícil de acontecer quando a pessoa está no fundo do poço. Como diz Nilva, "ninguém chega aqui por amor, é sempre pela dor".
Quando as pessoas percorrem o itinerário até aqui demonstrado de perdas, de abandono, de fundo do poço e chegam à IURD, constata-se nelas uma total debilitação, um grande desejo de ser amparada e portanto uma grande disposição para a submissão, conforme a noção de Weber (1991, v.I, p.33) sobre a relação de poder. Para ilustrar temos o exemplo de Alice, que diz:
Quando fui ao Templo da Fé, e quando cheguei lá, estava muito enfraquecida, muito debilitada, mal conseguia ficar em pé, sem forças para lutar, abatida. Cheguei ao ponto de nos primeiros meses ir todos os dias [à igreja] (julho de 2005).
Esse depoimento demonstra o nível de vulnerabilidade em que Alice se encontrava. Estava pronta a aceitar a oferta religiosa que lhe garantia força e diminuição de seu sofrimento. Tudo que ela queria receber era proteção, cuidados e uma orientação firme que lhe dissesse claramente o que fazer e como fazer.

2 - A Igreja como núcleo identitário e instância re-socializadora

Alice, Nilva e Lucas foram buscar a IURD quando já não conseguiam resolver problemas do cotidiano e rejeitavam as "escolhas religiosas" que haviam feito anteriormente. Para eles a religião chegou como uma segunda chance de socialização. A igreja tornou-se um núcleo identitário alternativo, mas muito importante, capaz de ajudar a reconfigurar as próprias relações com a família.
A busca por orientação religiosa aparece como um retorno à socialização primária: desejo de ser cuidado, o desamparo, a dificuldade de lidar com a tensão da culpa. A socialização primária dos indivíduos (Giddens, 2005; Erikson, 1986) é responsabilidade da família. No momento de conversão à Igreja Universal a pessoa vivencia o que Giddens chama de socialização secundária, assumida pela Igreja. Resta questionar que tipo de relação, que tipo de subjetivação, vai sendo formada dentro dessas instituições.
O que se observa nos cultos da IURD é que sua grande platéia é composta por endividados, desempregados, subempregados, doentes do espírito e do corpo, pessoas deprimidas, alcoólatras, pessoas com graves rupturas familiares e assim por diante. Para Gomes (1996, p. 226), tais grupos humanos mais parecem uma procissão de extemporâneos à modernidade, porque dela excluídos. E, uma vez excluídos do mercado de trabalho, sem apoio oficial e fora da rede de ajuda mútua, com as quais os indivíduos e famílias pobres em geral contam, torna-se muito difícil a sua reentrada no sistema.
Temos, portanto, a relação axiomática da angústia, da perda da identidade, o contexto social da globalização com suas exigências. Uma grande mobilização de indivíduos deslocados, desgarrados, desencaixados e ao mesmo tempo presos a valores tradicionais. A religião aparece nesse contexto como a re-conexão do indivíduo com a família e a sociedade, o que lembra Durkheim (2000) ao apontar a função social da religião.
É neste contexto de insegurança, de vulnerabilidade, que esses mesmos indivíduos vão construindo suas famílias. Ainda que na falta de condições adequadas de socialização dos membros dessa família em direção à auto-afirmação, à confiança básica, defendida por Erickson (1966). Converter-se à Universal implica aceitar que não existem meios termos ou ambigüidades na realidade, implica aceitar que o mundo está dividido entre os que estão libertos e os não-libertos, entre os salvos por Cristo e os que estão nas garras do diabo.

3 ? A cura pentecostal: exorcismo e libertação:
Os fiéis entrevistados, ao responderem à pergunta sobre como a Igreja Universal responde à situação de crise, foram unânimes em dizer que é pela libertação. A libertação do diabo é uma experiência forte, direta, de imposição, afirma Almeida, (2003) e os líderes da Universal apresentam-se como aqueles que têm poder. Não apenas sabem a resposta aos problemas que afligem o cotidiano dos fiéis, mas têm poder sobre o próprio demônio, ou seja, sobre a causa, o responsável direto pelos sofrimentos e desgraças na vida das pessoas.
Pelo ritual do exorcismo se dá a libertação de todos os demônios que se apossaram do fiel ali prostrado, afirmam líderes e fiéis da IURD. A Igreja Universal se apresenta como aquela que é capaz de libertar as pessoas dos demônios e, conseqüentemente, de resolver seus problemas do cotidiano. Ela tanto enumera os sinais de possessão, como identifica a origem dos demônios. Eles se apoderam das pessoas, afirma Macedo (2004, p.38-43), por hereditariedade, pela participação direta ou indireta em centros espíritas, por trabalhos e despachos, por maldade dos próprios demônios, por envolvimento com pessoas que praticam o espiritismo, por comidas sacrificadas a ídolos, por rejeitarem a Cristo, afirma o Bispo Edir Macedo.
Dessa forma, o sofrimento é causado pelo diabo, manifestando sintomas psicossomáticos ou incapacidade de prosperar nos negócios. O exorcismo é um ritual de descarrego e cura, mas visa justamente à conversão do indivíduo. É a partir do exorcismo que em geral se dá a conversão, o pertencimento formal do fiel à igreja.
De acordo com Edir Macedo:
Os demônios, espíritos destruidores, estão nos germes, nos bacilos e vírus. São a principal causa das doenças. Eles fazem das pessoas o que bem querem. Cuidam de todos os aspectos da vida delas, desde a maneira de se vestir até os casos amorosos; se intrometem e submetem os seus seguidores através de conselhos ou ameaças (Macedo, 2004, p. 25).

O depoimento de Lucas mostra como esse discurso da IURD é forte e tem êxito sobre a subjetividade dos seus conversos. Ele diz:
A forma como eu vivenciei as coisas é que Satanás tenta convencer as pessoas de que ele não existe. Ele se passa pela própria pessoa como eu era no passado. Ali não era o Lucas, não eram as minhas idéias em prática. Ali eram manipulações do Satanás (julho de 2005).

Na sua fala surge claro o componente do processo de cura e libertação oferecido pela Igreja: a transferência da responsabilidade e da culpa pelos erros cometidos. Esta transferência, que na verdade é também uma espécie de auto-engano, favorecendo a que o indivíduo possa reestruturar minimamente seu mundo interior.
A libertação é um procedimento que está presente em todas os dias e todas as correntes referem-se à libertação. A libertação dos demônios só será de fato alcançada se houver verdadeira conversão à simbologia e à prática ritualística da IURD.
O que se verificou nesta pesquisa é que todas as pessoas, quando estão no processo de imersão no mundo da simbologia da Universal, vivenciam um período de encantamento. É como se estivessem vivendo um "momento mágico" em suas vidas. É realmente o encontro totalizante no sentido de Erikson (1968) ? como, de forma encantada, declara Alice, que nos primeiros meses de sua conversão à Igreja Universal chegou a freqüentar os cultos todos os dias da semana, de segunda a segunda.
Esse envolvimento evolui para tornar-se uma regularidade, um hábito que cria no indivíduo uma atitude de dependência total em relação à Igreja. A intensidade subjetiva e emocional da relação com a Igreja desperta no indivíduo o sentimento de proteção, de que alguém olha por ele, preocupa-se com ele. O fiel acredita que a Igreja "sabe" o que está errado com ele e confia que ela vai curá-lo, vai "resolver" o caos de sua vida. O fiel atribui necessariamente, uma competência terapêutica à igreja, que deve ser reforçada sempre de novo para que a própria "terapia" tenha êxito. Essa relação é autoritária e nada dialogal, a Igreja impõe ao fiel sua "competência terapêutica". Não há conversa ou diálogo, a oferta é sempre colocada em termos de "é pegar ou largar", ficar com Deus ou o demônio. Alice, por exemplo, embora estivesse sempre assistida por uma "irmã" de outra denominação, confiava na Igreja Universal, pois ali o trabalho era forte e bem direcionado.
Esse é um momento em que o converso sente-se como se entrasse em outra dimensão, superior aos que estão fora dessa experiência. Aqui vale citar o que diz Durkheim sobre a experiência religiosa:
Ele sente em si mais força, seja para suportar as dificuldades da existência, seja para vencê-las. Está como que elevado acima das misérias humanas porque está acima de sua condição de homem; acredita-se salvo do mal, seja qual for a forma, aliás que conceba o mal. O primeiro artigo de toda fé é a crença na salvação pela fé (Durkheim, 2000, p. 459).

O reencantamento de Alice talvez se deva ao fato de conquistar um olhar de admiração das pessoas que fazem parte de sua vida e de dar um novo rumo, um novo sentido, a sua vida. Ela diz que seu encontro com Deus mudou totalmente o seu caráter . E hoje, segundo conta, é ela quem está em melhor condição em sua família.
Observa-se nas falas de Alice que, ao assimilar a orientação dos pastores da Igreja Universal, ela alcançou o prestígio moral e, de certa forma, pelo caminho por ela encontrado, sente-se inserida na sociedade. Para ela, a conversão à IURD permite manter o status quo adquirido desde que se converteu ao neopentecostalismo. A IURD, com sua forma arrojada e totalizante, de certa forma foi o pronto-socorro para as suas dores, revigorando-a em sua fé e mantendo-a no universo do neopentecostalismo.

A função do ritual: reestruturar a vida do fiel

Um elemento de grande importância nessa proposta de totalidade é a ritualização existente na Igreja Universal. Esse é o momento de internalização dos novos valores que vão delinear a nova identidade do fiel da IURD. Novos valores que vão sendo subjetivados pelo fiel a partir da repetição e da continuidade na prática do rito. É a partir da participação freqüente na prática ritualística oferecida pela Igreja Universal que o indivíduo pode dar novo sentido a suas experiências do cotidiano.
A igreja Universal desenvolveu um sistema ritual organizado, que funciona todos os dias da semana e cada dia da semana traz como centro uma corrente específica. Na segunda-feira é a corrente da prosperidade; na terça-feira, a corrente da saúde (também de descarrego); a quarta-feira é reservada para o encontro com o Espírito Santo: é a experiência de ser tocado e aceitação de Jesus na própria vida; na quinta-feira, é a corrente reservada para a família; a sexta-feira é o dia da libertação e exorcismo; sábado é dia da terapia do amor e também das causas impossíveis; e domingo é o grande encontro com Deus, é o dia da Santa Ceia dos neopentecostais.
Essas correntes abordam temas da vida prática das pessoas, como prosperidade, saúde, libertação, família, amor e o encontro com Deus. Essas questões são universais, fazem parte da vida das pessoas em qualquer contexto social. É essa universalidade que proporciona aos fiéis o sentimento de que o pastor fala diretamente a cada um deles. Os objetos ungidos são distribuídos uma semana antes de dar início à nova campanha. Os fiéis são sempre preparados com certa antecedência para uma nova campanha ou corrente, que acontecem sobre qualquer um dos temas acima mencionados. Diferentes campanhas ou correntes podem até coincidir. Importante é manter o fiel, de alguma forma, envolvido na corrente que mais o interessa.
De acordo com Mariano (1999, p. 134), a Igreja Universal lida sempre com os mesmos problemas e apresenta sempre as mesmas soluções e o mesmo diagnóstico. O ritual do testemunho na IURD tem a função de ajustar comportamentos e de servir de modelo para outros. No púlpito, na hora dos testemunhos dos fiéis, sempre é mostrada a imagem do sucesso, do vencedor e da vitória, que também pode acontecer com aquele que assumir a orientação transmitida pelo pastor. Afinal, só sofre quem quer, de acordo com a fórmula "pare de sofrer" da Igreja Universal. Todo o sistema ritual da Igreja Universal funciona de forma a prender o fiel à dinâmica da Igreja, em nome das mudanças que ele deseja alcançar em sua vida. O ritual cria um canal de comunicação entre o fiel e a Igreja. Esse canal faz surgir nele uma realidade de inclusão e de reordenamento do caos interior e exterior. Desperta no fiel o sentimento de pertencer a um grupo de sucesso, a um grupo de abençoados e vencedores. Paradoxalmente, a identidade refeita supõe assumir a visão de mundo e o vocabulário dos setores sociais mais diretamente ligados ao status quo de uma sociedade que produz sem cessar anomia e adoecimento.
No depoimento dos três entrevistados desta pesquisa, pôde-se constatar o quanto eles tiveram de se envolver no mundo das campanhas e ofertas da IURD, na aceitação total de sua simbologia e doutrina como regras e verdades totais; que era tudo o que eles mesmos buscavam naquele momento. Alice diz que na outra Igreja os pastores até entendiam o seu sofrimento,
mas não me disseram como eu deveria fazer; assim: olha você tem de lutar, perseverar; eu não recebi nada disso. Foi aí que eu fui buscar a Igreja Universal. Lá eles fazem um trabalho muito bom. Dizem como se deve fazer, o que fazer.

Segundo Nilva, o "mundo largo" é o mundo cheio de tentações do demônio, onde ele cria a dor e também as alegrias falsas e passageiras. Ela, que dizia viver se prostituindo, bebendo muito, até ter um aneurisma vascular cerebral, responsabiliza esse mundo dominado pelo demônio por tantas provações sofridas. Sua afirmação é reforçada pelas palavras do pastor de que "o mundo lá fora está cheio de mentiras, tudo aí fora é uma mentira do inferno". Para entrar no mundo de certezas da IURD é preciso que o fiel passe pelo processo de libertação do demônio. A libertação proporciona a inclusão no mundo dos virtuosos e perfeitos, tirando as pessoas do "mundo largo".
Como sugere Alice, se você quer mudança, quer fazer parte desse novo grupo, o grupo dos escolhidos de Deus, deve seguir exatamente o que o pastor orienta. O pastor, segundo Alice, diz que você tem de obedecer a Deus em tudo, "é pra fazer tudo direitinho o que estou falando, o que eu mandar você tem que obedecer". Aqui, fica claro a necessidade do fiel em encontrar a orientação correta. Alguém que cuide dele e o faça sentir-se realmente protegido, amparado. Obedecendo ao pastor Alice conta que foi começando a se fortalecer e a se sentir capaz de enfrentar as situações do mundo "lá fora", com resignação e submissão.

CONCLUSÃO

Estar numa Igreja por si só não é suficiente para desenvolver um sentimento de pertencimento ao grupo, é preciso assimilar novas regras, interiorizá-las e se sentir parte dessa comunidade. A valorização dada à conversão na vida das pessoas é por ser ela um primeiro movimento de separação daquele mundo em que estiveram aprisionadas. A conversão por si só não seria capaz de promover a ressignificação de suas experiências e promover uma cura duradoura.
Para as pessoas entrevistadas, pode-se dizer que, de certa forma, houve sim uma reestruturação de suas identidades. Essas pessoas fizeram uma experiência bastante radical de cura e libertação; encontraram em algum momento, novo sentido para suas vidas e puderam vivenciar, segundo elas, a admiração das outras pessoas. Mas a conversão ao neopentecostalismo se deu à custa da dependência quase total de uma instituição religiosa e mercadológica, implicou em seguir regras rígidas e arbitrárias, em internalizar crenças e conteúdos que reforçam uma não-autonomia e um esquema mental fundamentalista. A obediência cega às regras da dependência pode levar à esquiva e à insensibilidade frente às contingências, o que dificulta a flexibilização do discurso e da abertura para novas experiências.
Fica claro que a partir da libertação e da conversão à oferta simbólica da Igreja Universal do Reino de Deus, o neófito vai assumindo o protótipo social dominante. Uma das características do crescimento da IURD reside justamente no discurso simplista por parte das lideranças da igreja, que justificam o estado de sofrimento e miséria em que as pessoas se encontram, como sendo fruto de sua própria escolha: só sofre quem quer, portanto, "pare de sofrer"!
O discurso atenuante e justificador baseado na figura do demônio de certa forma alivia os sofrimentos psíquicos dos que se encontram em dificuldade. Ele atua também como um eficientíssimo redutor de complexidade, que encarna numa única figura conhecida e detestada, toda a responsabilidade por processos sociais, psíquicos e históricos muito complexos. Processos esses que essas pessoas, na sua situação de pobreza, marginalização cultural, sofrimento e abandono, provavelmente nunca teriam condições de visualizar e entender.
O poder terapêutico da cura pentecostal, baseada no exorcismo e na libertação espiritual se baseia também nessa sua grande capacidade de reduzir a complexidade. Reduzir as forças desconhecidas de um mundo insano e cão: transformar de novo o caos em um cosmos, no qual se pode, mesmo com o sacrifício de boa parte da liberdade, nomear a si e aos outros e talvez viver de forma mais digna.

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