A burocracia, com certeza, foi inventada por algum funcionário público disposto a complicar a vida dos cidadãos. E assim, criando dificuldades, para vender facilidades, foi-se ampliando e complicando as normas e procedimentos para que poucos iniciados pudessem entendê-los. Não quero acusar nenhum povo de ter gestado a horrenda criatura, mas sabe-se que os Escribas do Antigo Egito já eram exímios burocratas. Os conhecimentos passaram pelos gregos e romanos até chegar aos franceses que criaram o vocábulo, juntando bureau com cracia, instituindo o chamado poder do escritório, que viralizou pelo mundo. Mas isso não é privilégio do Ocidente, pois quem assistiu o belo filme Madadayo de Kurosawa, vai entender a razão.

E aqui vai a minha história de um luso-brasileiro, José da Cunha Tavares, nascido em Portugal, mas ainda menino embarcou para o Brasil na companhia dos pais, que por essas plagas fizeram a vida. Tavares cresceu, ajudou o pai no pequeno negócio, estudou engenharia e trabalhou na profissão.  Mais adiante, tornou-se professor universitário, fazendo os cursos de mestrado e doutorado.

Sempre que pode ele dá um pulinho na "terrinha", visitando parentes e amigos, matando a saudade das coisas que nunca viu quando criança. Teve dois filhos, com obtiveram com alguma facilidade, a nacionalidade portuguesa, mas faltou à mulher, Dona Vera, obter a sua identidade lusitana. Fizeram a papelada e após passar por todos os trâmites burocráticos, que não foram poucos, talvez até maior do que seria no Brasil, a cidadania foi negada. Há quem diga que a nossa exagerada propensão à burocracia é fruto de nossa rica herança lusitana.

Na entrevista com o funcionário público responsável pelos processos de cidadania, veio a pergunta cruel à Dona Vera:

- A senhora dona tem identidade com a cultura portuguesa?

- Entendo que sim, respondeu, pois sou casada com um português e tenho dois filhos também com cidadania portuguesa e sou professora de língua e literatura portuguesa no Brasil.

- Lamento, mas não é suficiente, despachou o burocrata.

Ora pois, pois, que complicação! A professora Dona Vera, brasileira, de origem italiana, versada nas obras de Camões e Fernando Pessoa, precisava provar que tinha identidade com a cultura portuguesa. Chegando ao Brasil, tratou de formalizar a sua identidade com a cultura lusitana. Associou-se ao Clube Português, obteve a carteirinha da Associação Portuguesa de Desportos, abriu conta no Banco Português do Brasil, fez um curso de culinária lusitana e aprendeu vários fados, ouvindo os discos da grande Amália Rodrigues.  Feito isso, encaminhou novamente a documentação.

Passado algum tempo, veio a resposta. A solicitação foi negada pelo mesmo motivo: falta de identidade com a cultura lusitana. Muito decepcionada, jogou a papelada pelos ares e decidiu viver com apenas uma nacionalidade: a brasileira. Afinal, com duas nacionalidades precisaria morrer duas vezes, pois haveria a necessidade, creio eu, de duas certidões de óbitos. De nada adiantou o senhor marido oferecer a contratação de um bom advogado em Lisboa para encaminhar o pedido, pois considerou o custo muito alto apenas para atender a um pequeno capricho.

E foi assim que a família Tavares ficou desunida por conta dos trâmites burocráticos do departamento de imigração lusitano. Um português, casado com uma brasileira e com dois filhos deles, portugueses. Ela talvez tenha se sentido uma estrangeira em sua própria casa, mas deu a volta por cima.

Mas o mundo dá voltas e acaba chegando ao lugar de origem. Uma jovem estagiária de direito recebeu um calhamaço de processos não concluídos e entre eles o da dona Vera Zangari Tavares. Após analisar o volumoso caso, a jovem advogada lusitana concluiu que pelas leis portuguesas não havia motivo para o indeferimento do pedido e recomendou a sua imediata aprovação.

Passados alguns meses, eis que a dona Vera recebe em casa a sua nova certidão de nascimento como portuguesa, podendo usufruir de todos os direitos da nova cidadania. E assim a família Tavares pode cantar um fado da terra de Camões. Bom seria se não fosse, para tão grande amor, tão curta a vida.