A crise de 2008, pior que se pensava?

 


Fausto Bernardes Morey Filho
Fevereiro de 2009


A crise mundial de 2008

A crise mundial de 2008 talvez seja o mais importante episódio econômico dos últimos 70 anos. Por muito tempo ela será fonte de produção acadêmica, de acalorados debates ideológicos e de atuação política e governamental, mas, principalmente, de sofrimento para muitos.

O sistema econômico é complexo e os resultados que produz dependem das escolhas realizadas pelos agentes econômicos. A econometria fornece o ferramental para, entre outras coisas, monitorar e acompanhar o desempenho do sistema. Portanto, em tese, seria possível adotar decisões racionais, porém, aspectos subjetivos como arrojo ou medo, segurança ou insegurança, euforia ou depressão, entre outros, podem influenciá-las.

Várias questões têm sido formuladas, entre elas, uma parece despertar um interesse especial: será que a crise poderia ter sido prevista e evitada? As crises são gestadas ao longo dos anos e os sinais sobre eventuais problemas são emitidos permanentemente. Estes potenciais sinais precursores da crise são reconhecidos como tal, quando apresentam alterações significativas sobre o padrão esperado ou repetem o comportamento observado em crises antecedentes.

Se nos últimos anos foram captados sinais inequívocos de uma crise, por que razão ninguém adotou as providencias necessárias para evitá-la? É possível imaginar algumas explicações para a inação, tais como:

- Os debates e as interpretações antagônicas sobre o significado dos sinais precursores antecedem, em muito, o reconhecimento mais amplo que há algo errado com a economia e, então, as medidas são adotadas tardiamente. Nouriel Roubini[1] e Paul Krugman[2] alertaram sobre os problemas, mas não foram ouvidos ou considerados.

- Há uma incapacidade de interpretar os dados obtidos, então, cada nova informação sobre os desdobramentos da crise parece surpreender a todos: empresários, economistas, analistas de mercado, e principalmente, agentes públicos no comando da economia e a reação é aguardar para ver como fica.

- Muitas decisões políticas respondem às questões emergenciais e as autoridades acabam por adotar medidas que aliviam os problemas no curto prazo, mesmo que elas acarretem riscos no longo prazo. Parece que ninguém está disposto a adotar medidas duras no presente para eventualmente colher bons frutos no futuro.

Onde há fumaça há fogo – os sinais precursores

O estopim da crise mundial de 2008 ocorreu no início de 2007, quando o mercado se deu conta do aumento da inadimplência de hipotecas no mercado americano, incluindo a modalidade que popularmente deu nome à crise no Brasil: sub-prime[3]. Porém, na última década, foram emitidos vários sinais precursores da crise nos EUA, entre outros:

- A escalada sem precedentes dos preços dos imóveis;

- O declínio da taxa de poupança dos americanos em relação ao PIB. Entre 1950 a 1970 a taxa foi, na média, aproximadamente 8%, entre 1970 e 1990 aproximadamente 9% A partir de 1993, ela declinou constantemente e pode ter atingido zero no final de 2008;

- A seqüência de elevadas taxas de lucro em relação ao PIB: a taxa de lucro após impostos com relação ao PIB, apurados desde 1929, compõe uma curva com vales e picos oscilando por volta de um ponto percentual em relação à média de aproximadamente 5%. Em 1929 o lucro atingiu 8,9%, muito acima da média, e somente superado em 2006 e em seguida em 2007, quando atingiu 10,1%. Quando os picos são muito superiores à média eles são seguidos por taxas de lucro negativas.

Um documento recente oferece[4] uma análise panorâmica sobre as mais de 200 crises econômicas e financeiras que ocorreram desde a moratória inglesa do século 14 até a atual crise nos EUA. Os autores concluíram que, considerando que os maiores episódios de insolvência ocorrem em intervalos espaçados por anos ou até mesmo décadas, acaba sendo criada a ilusão que "desta vez é diferente". Recentemente, esta ilusão espalhou a crença que o déficit público americano e o desequilíbrio de suas contas externas eram parte da nova paisagem financeira.

Em um documento apresentado em 3 de janeiro de 2009[5] na reunião do American Economic Association em San Francisco, Reinhart e Rogoff focaram suas análises nas 18 crises[6] financeiras e bancárias ocorridas após a 2ª Guerra Mundial em países desenvolvidos, tais como as crises da Espanha 1977, da Noruega 1987, da Finlândia 1991, da Suécia 1991 e do Japão 1992. Das crises ocorridas nos mercados emergentes, eles examinaram as crises da Ásia 1997-1998 (Hong Kong, Indonésia, Malásia, Filipinas e Tailândia), da Colômbia 1998 e da Argentina 2001. Uma declaração em particular merece destaque:

" um ano, nós apresentamos uma análise histórica comparando a crise financeira sub-prime com as crises bancárias antecedentes desde a 2ª Guerra Mundial. Mostramos que os padrões dos indicadores econômicos para os EUA - inflação dos ativos, grandes déficits, redução do crescimento econômico exibiam todos os sinais que a nação estava à beira de uma crise financeira, na verdade, uma crise severa".(Reinhart e Rogoff, 2008. The aftermath of financial crises[7]– tradução nossa).

As crises anteriores foram usualmente acompanhadas por inflação de ativos, depreciação cambial, crise bancária e desvalorização monetária e, neste sentido, dificilmente a atual crise financeira é singular. Ela foi debitada a diferentes causas e entre as mais citadas estão: a desregulamentação do mercado financeiro, a falta de acompanhamento e de fiscalização por parte das autoridades e a manutenção dos juros em patamares muito baixos por muito tempo pelo FED - Federal Reserve durante a gestão de Alan Greenspan. Porém, outros fatores devem ser considerados, tais como: a impossibilidade em manter o crescimento do consumo apenas alavancado pela concessão, irresponsável ou não, de crédito, a exploração insustentável dos recursos naturais considerados os atuais métodos ou tecnologias de produção e os graves desajustes da economia americana.

Os graves desajustes da economia americana

A análise dos fundamentos econômicos americanos permitiria afirmar, não fossem os EUA o foco da análise, que nos últimos anos a economia tem estado na eminência de uma grave crise de insolvência, com uma situação semelhante ou pior que a observada, por exemplo, no Brasil ou na Argentina, no momento que foram deflagradas as suas crises de déficit gêmeo[8].

Déficit público - O documento "Long-Term Fiscal Outlook - Action Is Needed to Avoid the Possibility of a Serious Economic Disruption in the Future" foi apresentado em janeiro de 2008 ao senado americano pelo GAO - United States Government Accountability Office e relata que, se não houvesse uma adequada e profunda intervenção, os EUA enfrentariam uma espiral de crescimento dos déficits públicos, principalmente em decorrência dos desajustes do sistema de saúde pública e a despeito das melhorias verificadas nas contas públicas nos últimos anos[9].

Gráfico 1: Unified Surpluses and Deficits as a Share of GDP

under Alternative Fiscal Policy Simulations – GAO (recorte direto do documento)


Em abril de 2008, uma versão revisada deste relatório previa que, em 30 anos, o déficit público americano poderia situar-se entre 6% e 15% do PIB, ou seja, uma situação insustentável. Um observador atento verificará que em abril, o GAO ainda estimava (vide gráfico 1) que o déficit público em 2008 ficaria abaixo dos 4% do PIB. Porém, naquele momento os gastos com o enfrentamento da crise bancária e as perdas de arrecadação decorrente do aprofundamento da recessão não haviam sido considerados. O resultado mostrará que já em 2008, o déficit público está perto de 8% do PIB, ou seja, quase US$ 1 trilhão. A previsão para 2009 é que o déficit será dramaticamente superior.

Déficit Externo – De 1960 a 1992 havia um relativo equilíbrio na balança comercial, de serviços e de rendas dos EUA, porém, a partir de 1997 o comportamento das contas mudou e o déficit externo tornou-se persistente e crescente como é possível observar no lado direito do Gráfico 2. No final de 2008, apesar da recessão, o déficit externo pode ter atingido US$ 800 bilhões, ou seja, alarmantes 5% do PIB. Então, a situação vai piorar muito antes de melhorar. Em publicação recente, Godley[10] declara:

"há nove anos parecia possível que uma desvalorização de 25% do dólar seria um bom truque, porém agora é necessário um ajuste significativamente maior. Se os EUA tentarem restabelecer o pleno emprego apenas através da política fiscal e monetária, o déficit da balança de pagamentos pode subir, digo, nos próximos 3 ou 4 anos, para 6% do PIB ou mais, nível que não seria possível sustentar por um longo período". (tradução nossa).


Gráfico 2 - Balança comercial, de serviços e fluxo de rendas USA (1989 - 2007) (Valor nominal)


Fonte:

Bureau of Economic Analysis – BEA - U.S. International Transactions Accounts Data – Série histórica de 1960 – 2007, tabela criada em 15 de dezembro de 2008 e publicada em 17 de dezembro de 2008. Dados tratados pelo autor.

Estoque de dívida pública - Além do desequilíbrio das contas públicas e das contas externas, o estoque de dívida pública dos EUA tem crescido de forma continua desde 1999, porém, após 2001 ela quase dobrou de tamanho, atingindo no início de 2009 mais de US$ 10,6 trilhões. A dívida cresceu 87,9%, porém, a parcela de dívida intergovernamental[11] cresceu 113,24% contra os 73,81% de crescimento da dívida em mãos do público (Tabela 1).

Tabela 1 – Dívida pública nominal dos EUA - Em trilhões de dólares[12]

Mês de apuração

Divida nas mãos do público

Divida inter governamental

Dívida publica total

Produto Interno Bruto – PIB

Dívida total sobre o PIB

set-99

3,64

2,02

5,66

9,3

61,03%

set-00

3,41

2,27

5,67

9,8

57,80%

set-01

3,34

2,47

5,81

10,1

57,34%

set-02

3,55

2,68

6,23

10,5

59,49%

set-03

3,92

2,86

6,78

11,0

61,89%

set-04

4,31

3,07

7,38

11,7

63,14%

set-05

4,60

3,33

7,93

12,4

63,86%

set-06

4,84

3,66

8,51

13,2

64,55%

set-07

5,05

3,96

9,01

13,8

65,24%

set-08

5,81

4,22

10,02

13,8*

72,60%*

jan-09

6,32

4,31

10,63

13,7*

77,36%*

Jan-10

 

 

11,90*

13,7*

86,86%*

Crescimento – 2008 /1999

73,81%

113,24%

87,90%

 

Previsão sujeita a retificação.

Nota: Dados trabalhados pelo autor.

Apesar do custo de financiamento da dívida pública ser baixo, a relação divida - PIB atingiu 72,6% em setembro de 2008, um crescimento superior a 15 pontos percentuais desde 2001. Com o agravamento da crise financeira e o aprofundamento da recessão é possível que no início de 2010 esta relação possa ser ainda maior.

Desemprego – Na atual recessão, as primeiras quedas no nível de emprego foram apuradas no início de 2008 e a situação foi se agravando lentamente até a quebra do Lehman Brothers em setembro, quando os números passaram a ser vigorosamente negativos. O desemprego está crescendo a taxas[13] superiores às verificadas nas recessões de 1990 e de 2001, como pode ser visto no Gráfico 3, tendo atingido 8.1 % em fevereiro de 2009.

Gráfico 3 - Perdas de emprego em recessões recentes no EUA


Saúde do sistema financeiro - A situação da economia americana pode ser ainda mais grave. Além dos desajustes citados, segundo Roubini[1], há estimativas que o prejuízo total do sistema financeiro americano seja da ordem US$ 3,6 trilhões. Se estas estimativas estiverem corretas seria a confirmação que há uma crise bancária sistêmica, pois o valor das perdas seria superior ao montante de capital e das reservas, em outras palavras, o sistema financeiro americano estaria insolvente. Mas, ainda não é possível afirmar como está a saúde do sistema bancário na Europa.

Alguns bancos não vinham cumprindo os termos do acordo de Basiléia II. Os bancos de investimento alavancaram suas operações, em alguns casos, em mais de 25 ou 35 vezes o valor de seu capital e reservas. Há notícias que alguns "universal banks" europeus e americanos estavam alavancados em mais de 60 vezes, porém, é impossível confirmar quais os níveis reais, em decorrência de dificuldades técnicas para obtê-los nos balanços, o que já é, de per si, um problema grave.

O consumo baseado em crédito facilitado gerou um endividamento insustentável e seus efeitos foram espalhados pelas economias. Se os prejuízos estivessem limitados aos empréstimos hipotecários sub-prime, os bancos teriam perdido muito dinheiro, mas não teria havido uma crise sistêmica. Neste contexto atual do sistema financeiro, seria perturbador especular quais os possíveis impactos destas perdas sobre os fundos de pensão privados nos EUA e no mundo.

Conseqüências - Tomando como referência as crises anteriores, Reinhart e Rogoff[16] sugerem algumas possíveis conseqüências da atual crise de insolvência no sistema bancário nos EUA, entre elas:

- Os preços dos ativos entram em colapso de forma severa e prolongada. Na média, os preços reais dos imóveis caem 35% e a crise se prolonga por seis anos, enquanto outros ativos reais caem 55% e os efeitos duram 3,5 anos.

- O valor da dívida pública tende a explodir, subindo na média de 86% na pior crise depois da 2ª Guerra Mundial.

- Após a crise bancária há um profundo declínio na produção e no emprego. Na média, a taxa de desemprego sobe 7 pontos percentuais na parte baixa do ciclo que dura 4 anos. (Vide gráfico 3). A produção cai 9% em relação ao seu pico, mas o ciclo de queda é de aproximadamente 2 anos, tempo inferior ao do ciclo de desemprego.

Resumindo - A situação americana não poderia ser pior. O país está em recessão, a maioria da população e das empresas está endividada, o déficit público e o estoque da dívida atingiram níveis alarmantes, a população não poupa absolutamente nada, os bancos e as empresas estão colhendo prejuízos. Apesar da recessão, o nível remanescente da atividade econômica e do consumo gera déficits externos próximos a 5% do PIB. Além disto, o sistema financeiro está paralisado e flertando com a insolvência, o desemprego tem crescido de forma profunda, muitos setores têm problema de gestão e de eficiência e somente sobrevivem à custa de subsídios e, para piorar a Comunidade Européia e o Japão também estão em crise e recessão, mas ainda não estamos falando de depressão, mas a comparação da atual crise com a de 1929 é inevitável. O gráfico 4 mostra a queda ocorrida no índice Dow Jones nos dois episódios.

Gráfico 4 - Fechamento Mensal - Dow Jones Industrial



Fonte: Yahoo Finance - http://finance.yahoo.com/q/hp?s=%5EDJI&a=09&b=1&c=1928&d=02&e=12&f=2009&g=m Adaptado pelo autor

Crescimento econômico e a contaminação

A partir do final da década de 1990 muitos países experimentaram um vigoroso crescimento econômico com baixas taxas de inflação. O otimismo tomou conta da economia global, apesar da ocorrência de crises isoladas e do susto do estouro da bolha tecnológica. Muitos creditam este crescimento ao uso de novas tecnologias, à globalização comercial e financeira, certa redução de barreiras comerciais, à desregulamentação econômica e à adoção progressiva de regras liberalizantes nos sistemas financeiros dos países centrais do capitalismo.

O crescimento econômico foi assimétrico, enquanto a China tem crescido vigorosamente, o Japão, desde o estouro de sua bolha imobiliária nos anos 90, tem apresentado crescimento baixo e o Brasil apenas conseguiu taxas de crescimento na média mundial nos últimos três anos, resultados atribuídos, no caso brasileiro, aos altos preços das commodities de nossa pauta de exportação e à abundância de recursos financeiros no mundo.

O fato das economias estarem interligadas em rede com baixa restrição às movimentações dos recursos pelo mercado financeiro[17] propiciou aos agentes econômicos trocarem rapidamente suas posições no mercado, atendendo a variados propósitos, como antecipar aos efeitos da crise, proteger posições, reduzir exposição à alavancagem, cobrir eventuais fragilidades ou prejuízos, ou mesmo para obter ganhos especulativos de curto prazo. Neste contexto, mesmo os países pouco expostos ao "sub-prime" foram contaminados pela crise.

Os impactos no Brasil

A real extensão da crise ainda não é conhecida e, apesar do aporte de centenas de bilhões de dólares ao sistema financeiro, países como Estados Unidos, Alemanha, França, Japão, Inglaterra e Itália já estão em recessão e muitos outros países poderão enfrentá-la proximamente. Nos próximos meses, conforme os balanços das instituições financeiras forem publicados, será possível avaliar mais precisamente a dimensão do estrago que, por sinal, já chegou a outros setores da economia - no final de 2008, as companhias automobilísticas foram ao congresso americano pedir ajuda financeira para não quebrarem.

A ocorrência de certos fatos, tanto no Brasil quanto no mundo, parece confirmar e de certo modo estender para outros países, as três conseqüências descritas da crise por Rogoff para a economia americana:

- Flutuações excepcionais dos preços das commodities. Exemplo:no início de 2008 o petróleo estava em US$ 80, em maio subiu para US$ 150 e em dezembro estava cotado abaixo dos US$ 40;

- Destruição de valor dos ativos em bolsas - quedas superiores a 30% sobre o pico das cotações e perdas em ativos financeiros e no valor dos estoques, entre outros. Em alguns países a perda de valor dos imóveis já é significativa;

- Queda da disponibilidade de crédito e seu encarecimento, apesar dos inéditos volumes de recursos colocados a disposição dos mercados financeiros não há liquidez no sistema;

- Queda brusca do nível de venda em certos setores. O setor automobilístico é o mais emblemático na crise atual;

- Ociosidade crescente da capacidade instalada;

- Aumento assimétrico e generalizado da taxa de desemprego. Em alguns casos, a velocidade e número de demissões são recordes;

- Volatilidade cambial com variações expressivas na cotação das moedas;

- Queda da receita tributária e ampliação dos déficits fiscais;

- Rápido declino do comércio global.

No caso brasileiro, a crise chegou através do desajuste de preços relativos no câmbio e nas commodities e da súbita e profunda contração do crédito. A brusca desvalorização ocorrida no terceiro trimestre de mais de 40% do real frente ao dólar causou perdas financeiras significativas às tesourarias de empresas mal posicionadas no mercado futuro de moedas, como a Sadia, o Votorantim e a Aracruz, entre outras, porém, o nível de exposição a este tipo de operação das empresas brasileiras, incluindo as de capital fechado, ainda não é conhecido.

Em seguida, o desajuste foi sentido no comércio internacional. A balança comercial brasileira, antes superavitária, ampliou um movimento de redução dos saldos comerciais em decorrência da perda de receitas, tanto pela queda dos preços das commodities quanto pela redução dos volumes embarcados. Ambos os movimentos sinalizaram o início da retração do mercado mundial para o Brasil e que os preços relativos existentes na economia antes de setembro de 2008, não existem mais.

A eventual queda ou eliminação dos superávits comerciais, aliados à redução do crédito no mercado internacional e a provável queda dos investimentos diretos no Brasil e de outras receitas[18] terão efeitos na taxa de crescimento econômico e, dependendo do montante de perda de ingressos, será difícil deter o aumento do desemprego e a perda de renda. A situação se agravaria muito se o nível remanescente de atividade econômica provocasse déficits comerciais.

Além dos efeitos da redução das exportações, caiu a demanda por produtos de maior valor e mais dependentes da disponibilidade de crédito (imóveis, automóveis, eletroeletrônicos, eletrodomésticos e máquinas e equipamentos). A redução de vendas[19] aliada aos prováveis adiamentos de investimentos causará desemprego e redução da massa salarial, podendo resultar em quedas generalizadas da demanda. Em dezembro a economia perdeu mais de 650.000 empregos formais - a maior queda em uma década. Provavelmente, veremos novos números negativos nos próximos meses.

A rápida desaceleração de vendas que afetou, por exemplo, a indústria automobilística local e mundial, reduziu os lucros e os níveis de atividade em toda a cadeia produtiva. A produção foi drasticamente cortada para propiciar a redução dos níveis de estoque. As mineradoras, siderúrgicas, fábricas de pneus, de autopeças e de artigos plásticos, entre outras, foram afetadas na seqüência[20], e esta segunda onda de redução da atividade reduzirá o nível geral de emprego e de renda, a arrecadação de impostos, o ímpeto dos investimentos privados e os lucros.

A queda de lucros, por sua vez, reduzirá o valor das empresas e de suas ações nas bolsas, acarretando novas depreciações ao mercado acionário. O atual momento de redução da volatilidade e de relativa estabilidade no mercado seria substituído por outro de turbulência. Estas interações ocorreriam com velocidade variada por todo o sistema produtivo e financeiro, nem bem os primeiros impactos foram digeridos e um novo ciclo de ajustes ocorreria em cascata por toda a economia.

Pode-se imaginar, ainda, que no âmbito global os novos níveis de demanda e preço criarão uma situação insustentável para muitas empresas em termos da capacidade instalada. Ocorre que uma perda percentual de pequena monta nas vendas pode significar a diferença entre lucro e prejuízo. Para lidar com o aumento da ociosidade, além de demissões e outras medidas correlatas, os produtores e suas organizações de classe poderiam exercer pressão política para que o governo adotasse barreiras e restrições às importações.

Em última análise, o aprofundamento da crise poderia desaguar em um eventual retrocesso no processo de integração comercial ou ainda em guerra comercial de efeitos danosos. Os dois encaminhamentos poderiam tornar-se, em uma perspectiva de curto prazo, uma opção tentadora para os políticos, porém, teriam impactos negativos sobre a produtividade das economias no médio e longo prazo.

Atuação governamental na solução da crise

Com o agravamento da crise ocorreu uma demanda generalizada para que os governos agissem. Existe a crença que, dependendo da competência, qualidade, profundidade e extensão das intervenções estatais, os efeitos de crise seriam reduzidos, mas de fato, considerando a gravidade da situação, o espaço de atuação dos governos é muito estreito e limitado, apesar da atual situação econômica brasileira ser invejável.

Medidas adotadas - O governo brasileiro adotou variadas medidas para atenuar os efeitos da crise. Para proteger o sistema bancário e aumentar a liquidez foi estabelecida uma legislação facilitando a compra de carteiras de créditos de bancos em dificuldade pelos bancos mais sólidos. Visando regularizar a oferta de crédito foram progressivamente liberados recursos dos depósitos compulsórios.

Iniciou-se certa consolidação bancária exemplificada pela junção do Banco Itaú com Unibanco, ou pela compra de parte do capital do Votorantin pelo Banco do Brasil e outras operações desta natureza poderão ocorrer proximamente. Foram oferecidos recursos das reservas cambiais para equacionar a falta de crédito externo, principalmente para a renovação de operações de empresas no Brasil e para o financiamento das exportações, entre outras.

Algumas destas intervenções foram adotadas com base na crença que os mercados se normalizarão em um prazo não muito longo. Neste caso elas teriam sido acertadas, pois podem aliviar os impactos mais agudos da retração do crédito. Ressalva-se, porém, que entre muitas restrições, as reservas cambiais são limitadas, apesar de hoje apresentarem os níveis mais elevados da história.

Seria conveniente realizar uma análise profunda dos fundamentos econômicos dos países importadores de nossos produtos, principalmente na América Latina e no antigo bloco soviético. A queda brusca na oferta de crédito e no comércio internacional pode esconder uma armadilha: a inadimplência de importadores. Se o nível do calote for muito elevado, haverá prejuízo entre os bancos o que inclui o Banco Central.

Os fatores limitantes à atuação do governo brasileiro na adoção de políticas fiscais anticíclicas são, entre outros, as barreiras burocráticas para realização de obras públicas e a visível escassez de poupança pública para novos empreendimentos, em função dos elevados níveis de gastos de custeio nos três poderes. A Carta do IBRE (FGV) de dezembro discute estas limitações, mas observa que a elevada taxa de juros ainda propicia uma janela de oportunidade para a atuação do governo.

"Uma questão mais difícil, porém, é a de saber qual o papel de uma política anticíclica de prazo mais longo para o caso brasileiro... indepen­dentemente do debate sobre a capaci­dade (ou não) de o Brasil fazer política fiscal anticíclica, o alto nível de taxa de juros real indica que há muito arsenal monetário para estimular a economia, antes de se pensar em mexer nos gastos públicos com este propósito".

Para exemplificar as dificuldades práticas que o governo enfrentará, basta imaginar alguns prováveis efeitos que as reduções do IPI e do IOF terão sobre a indústria automobilística brasileira. Talvez, durante algum tempo, estas medidas mantivessem os elevados níveis de produção e venda de veículos observados nos últimos anos, mas o que faria o governo com relação à queda das exportações do setor e com os impactos da perda de arrecadação sobre as contas públicas?

Ao mesmo tempo, o mercado de carros usados está paralisado, ou seja, certos problemas correlatos dificilmente poderão ser totalmente resolvidos apenas por medidas governamentais. Além disto, ainda não há análise disponível sobre os impactos do repasse ao consumidor final da eventual queda de preços dos insumos da indústria automobilística, tais como aço, plásticos, vidros e outros componentes.

Vale lembrar, que cada sociedade possui um conjunto de regras sociais e econômicas com maior ou menor grau de rigidez (ou flexibilidade). As assimetrias do grau de rigidez poderão influir, facilitando ou dificultando os ajustes que serão impostos aos países e às empresas em função da nova realidade econômica. A economia americana parece mais flexível, nela as perdas são rapidamente realizadas pelos agentes – por exemplo: a queda dos preços do petróleo foi repassada aos preços dos derivados, e os combustíveis ficaram mais baratos para os consumidores, mas, em outros países isto pode não ser possível, pelo menos, não no mesmo nível e velocidade.

O governo brasileiro terá que lidar ainda com inúmeros dilemas, arbitrando perdedores e ganhadores e algumas destas decisões poderiam resultar em futuros desequilíbrios. Entre muitos, vejamos o dilema do repasse da queda de preço do barril de petróleo para os derivados:

·Se Petrobras, por exemplo, não reduzir os preços do óleo diesel, os custos de produção na cadeia do agro-pecuária seriam mantidos no nível atual e, conseqüentemente, o setor perderia competitividade.

·Se os preços forem reduzidos: o governo perderá tributos; a Petrobras perderá receita e, talvez, seja obrigada a reduzir custos e adiar investimentos ou endividar-se para mantê-los; haveria impacto indireto sobre a rentabilidade do setor alcooleiro, em função da inevitável queda dos preços do álcool combustível.

Questão do crédito - As perdas decorrentes das operações em moeda estrangeira poderão gerar longas disputas judiciais, opondo acionistas minoritários aos gestores das empresas e os tomadores de crédito e investidores aos bancos, ampliando as dificuldades de acesso ao crédito.

A elevação dos spreads bancários ocorreu como decorrência de um desequilíbrio entre a oferta e a demanda por crédito. Com a forte retração do mercado internacional, as grandes empresas buscaram substituir suas linhas de crédito externo pelo interno, elevando a procura em um momento de escassez. Além do encarecimento, os prazos dos empréstimos estão mais curtos e foram ampliadas as exigências e as garantias para a sua concessão. Outro agravante está ligado ao comportamento da inadimplência que, no final de 2008, dava sinais de crescimento.

Mesmo sem entrar no mérito, parece recomendável cautela na busca pela solução dos "elevados" spreads bancários, pois não há solução fácil que possa, simultaneamente, neutralizar as perdas com a inadimplência e resguardar a saúde financeira[21] das instituições. O sub-prime surgiu como resposta à demanda pela criação de mecanismos que eliminassem os riscos nas operações e ampliassem a base de tomadores de crédito. Por quase 10 anos as soluções adotadas pareciam funcionar bem, porém, os resultados foram catastróficos à economia e aos clientes, seguradoras e bancos – eles estão literalmente quebrados.

Dependendo da extensão da recessão no mundo haverá menos recursos disponíveis no sistema para financiar os déficits públicos, inclusive o americano, que será significativamente maior nos próximos meses ou até anos. Neste caso, poderia ser necessária a elevação dos juros para atraí-los, fato que já ocorreu recentemente na Rússia, o que agravaria a situação da economia global.

A crise de 2008, pior que se pensava. Qual a solução?

A abundância de crédito gerada pela adoção de operações financeiras extraordinariamente alavancadas e em desacordo com os limites estabelecidos no Basiléia II e os baixos juros praticados em países como o Japão e os EUA forneceram as facilidades financeiras que sustentaram o longo período de crescimento econômico que se encerrou com a crise.

A sensação de riqueza propiciada pelo crédito facilitado propiciou uma larga expansão do consumo e dos investimentos e trouxe euforia aos mercados. Porém, elevou os níveis de endividamento para patamares insustentáveis e, no caso americano, dizimou a parcimônia e praticamente extinguiu a poupança.

Teria a economia mundial crescido com a mesma intensidade dos últimos anos caso não existisse o ambiente que propiciou o elevado nível de alavancagem e à concessão inadequada de crédito? Sem estas facilidades, talvez as taxas médias de crescimento tivessem sido significativamente mais modestas.

Será especialmente relevante desenvolver estudos sobre quais os motivos que levam os governos à inação diante dos sinais precursores da crise - este tem sido o padrão típico de comportamento das autoridades econômicas e dos governos em várias crises financeiras antecedentes.

Talvez, as intervenções governamentais pudessem ser eficazes se tivessem ocorrido assim que surgiram os primeiros sinais da crise. Porém, no estágio atual, apesar da natureza inédita e crescente das intervenções, a percepção principalmente nos EUA e em outros países desenvolvidos, é que elas são insuficientes e não estão obtendo resultados.

Muitas intervenções adotadas na tentativa de resgatar o sistema financeiro e estancar a recessão, parecem destinadas a salvar o modelo econômico anterior - injetar dinheiro nos bancos sem restabelecer a confiança no sistema, reduzir impostos, baixar juros e aumentar a liquidez sem solucionar o endividamento nem estancar o desemprego, podem ser insuficientes ou ineficazes, e agravar a situação econômica no futuro.

Se as nações não se articularem para restabelecer a confiança no sistema financeiro e para desenvolver novos mecanismos de estabilização dos preços relativos das moedas, será extremamente difícil que as eventuais medidas de contenção da crise tenham sucesso, inclusive em países que apresentam hoje bons fundamentos, como o Brasil.

Parece pertinente sugerir um minucioso exame sobre a "sinergia" entre os operadores do mercado e os agentes públicos responsáveis pela regulamentação e fiscalização do mercado financeiro no EUA e na Europa. Romper as relações de intimidade que parecem existir entre o poder político e indústria financeira, será uma questão dificílima a ser tratada pelas autoridades. Esta intimidade propiciou, entre outros problemas, as condições para a fraude Maddof[22].

Transformar o atual sistema financeiro em algo confiável e sólido, com um adequado nível de fiscalização e governança e desenvolver uma nova regulamentação que ainda propicie soluções financeiras criativas, talvez seja um dos maiores desafios nos últimos 70 anos para as nações. A crise já tem quase dois anos e até agora quase nada mudou no marco regulatório americano e, muito menos, no Europeu.

Dado que os EUA representam 25% da economia global, o seu ajuste terá impacto significativo, principalmente naquelas economias muito integradas com a americana, como é o caso da China, mas também naqueles países, caso do Brasil, que expandiram o comércio com estas economias muito integradas com a americana. Para evitar a escalada protecionista será necessário um esforço significativo de negociação multilateral para o estabelecimento de acordos comerciais entre estes países.

A solução da crise econômica passa, entre outras coisas, pela solução dos graves desajustes da economia americana e de muitos países centrais do capitalismo. Será necessário realizar três façanhas:

·Resgatar a credibilidade do sistema financeiro e desenvolver uma regulação que o permita funcionar de forma criativa, ágil, mais segura e eficaz.

·Enfrentar os desequilíbrios comerciais sem ampliar a recessão. No caso americano, equilibrar as relações comerciais com países com os quais possui déficit, caso da China, mas sem estancar as fontes de financiamento de sua dívida.

·Implantar uma gestão responsável, ajustando as contas públicase reduzindo o estoque da dívida pública em um horizonte de tempo que gere a percepção de segurança propícia à retomada do crescimento econômico.

O desafio para a economia americana é enorme[23], pois será necessário realizar todos os ajustes estruturais e ao mesmo tempo evitar o aumento do desemprego.

A economia mundial poderia continuar crescendo no mesmo ritmo dos últimos anos se a crise financeira não tivesse ocorrido? Provavelmente, não. O aquecimento econômico e crescimento do consumo já haviam levado os preços das commodities a uma curva ascendente insustentável.

Os organismos internacionais e os países devem se articular para o desenho de um novo modelo econômico que consiga desenvolver o mercado em patamares sustentáveis[24], substituindo parte do consumo movido a crédito, por consumo resultante da distribuição e elevação de renda e da aplicação de novas tecnologias.

O que começou como sendo uma crise financeira e bancária americana possui vários componentes clássicos de uma gravíssima crise econômica global e seus impactos ainda não foram completamente descritos. Não está descartada a possibilidade dela se transformar em grave crise social e, em muitos países, uma crise política. Parece que a crise de 2008 é pior que se pensava, vai durar um bom tempo e terá impactos profundos, inclusive no Brasil, apesar da situação econômica brasileira ser sólida.

Na realidade, o mundo econômico que conhecíamos até a quebra do Lehman Brothers em setembro desapareceu e construir um novo modelo econômico que ultrapasse as limitações do anterior será uma tarefa gigantesca, comparável apenas com os desafios enfrentados nas décadas de 1930 e 1940, após a grande depressão e a 2ª Guerra Mundial.


Referências Bibliográficas e outras fontes

§Bureau of Economic Analysis - BEA - U.S. International Transactions Accounts Data - Tabela "Table 1. U.S. International Transactions" publicada em dezembro de 2008.

·Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff, Abril de 2008, This Time is Different: A Panoramic View of Eight Centuries of Financial Crises.

§Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff, draft: Dezembro de 2008. The Aftermath of Financial Crises.

§Carta do IBRE, Fundação Getúlio Vargas, dezembro de 2008. Dilemas da crise apontam, mais uma vez, para a falta de poupança.

§Carta do IBRE, Fundação Getúlio Vargas, novembro de 2008. Crise financeira e Copom: o tanque monetário está cheio.

§Fortune, 25 de dezembro de 2006. More cream for the cats.

§GAO - United States Government Accountability Office, atualização de 2008. The Nation's Long-Term Fiscal Outlook Health Care Cost Growth and Demographic Trends Drive the Long-Term Fiscal Challenge. http://www.gao.gov/transition_2009/outlook/ - Acesso em janeiro de 2009.

§GAO - United States Government Accountability Office, janeiro de 2008. Testimony before the Committee on the Budge, U.S. Senate, Long-Term Fiscal Outlook - Action Is Needed to Avoid the Possibility of a Serious Economic Disruption in the Future. http://www.gao.gov/transition_2009 /outlook/ - Acesso em janeiro de 2009

§Martin Wolf, 2009 moldará o destino do mundo. Valor Econômico, 7 de Janeiro de 2009.

§Revista Veja, 5 de dezembro de 2008. Artigo sobre o preço dos imóveis nos EUA.

§The business week, 13 de outubro de 2008. A recession now seems unavoidable.

§Wynne Godley, Dimitri B. Papadimitriou e Gennaro Zezza, dezembro de 2008. Prospects for the U.S. and the World: A Crisis That Conventional Remedies Cannot Resolve.

§Wynne Godley, Dimitri B. Papadimitriou, Greg Hammssen e Gennaro Zezza, novembro de2007. The U.S. economy: is there away out of the woods?

§Outros sites visitados:

  • http://fas.org/sgp/crs/natsec/RL34319.pdf -
  • http://www.foreignaffairs.org/20050301facomment84201/david-h-levey-stuart-s-brown/the-overstretch-myth.html
  • http://www.ustreas.gov/offices/international-affairs/intl/fy2008/fy2008-budget.pdf
  • http://www.publicdebt.treas.gov/
  • http://www.treasurydirect.gov/NP/BPDLogin?application=np
  • http://www.cbo.gov/doc.cfm?index=3948&type=0
  • http://www.bls.gov/
  • http://finance.yahoo.com/q/hp?s=%5EDJI&a=09&b=1&c=1928&d=02&e=12&f=2009&g=m

Observação: O texto foi apresentado previamente para algumas pessoas, entre elas, ao Sr. Hugo Faria, executivo financeiro em Nova Iorque, ao Sr. Luiz Norberto Paschoal empresário paulista e ao Prof. Dr. Orlando Cattini, professor da FGV/EAESP. As sugestões recebidas foram analisadas e incorporadas ao texto. As contribuições recebidas abrangeram apenas a análise da situação e, portanto, nenhum dado ou informação de cunho sigiloso foi revelado, oferecido ou comentado.


ANEXO I – Pequeno resumo sobre a crise em 2008

No início de 2008, o debate econômico tratava basicamente de dois focos principais: a eventual desaceleração da economia americana e a elevação dos preços das commodities agrícolas com conseqüências severas para a segurança alimentar entre as populações mais pobres. Para lidar com a provável desaceleração econômica, o FED - Federal Reserve cortou no final de janeiro a taxa básica de juros em 0,75 pontos percentuais e em março o governo americano aprovou, sem uma discussão mais aprofundada, um pacote de ajuda de US$ 150 bilhões de restituição de imposto de renda para as famílias, mas o tempo demonstrou que esta medida fora praticamente inócua.

Entre meados de 2007 e maio 2008 a crescente percepção de risco no setor bancário levou investidores a intensificarem a aplicação de seus recursos nas bolsas de valores e de commodities concorrendo para a ampliação da elevação das cotações e reforçando o movimento de alta dos últimos anos. Esta elevação pode ser atribuída em parte ao aumento da demanda e, em parte, como resultado do aporte destes recursos especulativos. O aumento extraordinário dos preços das commodities já deveria ter sido considerado um sinal antecipatório da crise.

Em maio, contrariando os sinais vindos da economia americana, os preços das ações e das commodities atingiram picos históricos. A crise financeira tornou-se o centro das discussões e a divulgação de uma seqüência de fatos negativos trouxe volatilidade aos mercados globais culminando com a quebra do Lehman Brothers em setembro.

Porém, até mesmo bons tomadores de crédito exageraram. A crise atingiu inclusive os créditos Alt-A e prime. As típicas casas de subúrbio que mediam entre 200 e 300 metros quadrados, com as facilidades de crédito, dobraram de tamanho e o comprador, com o mesmo salário comprava também uma casa de veraneio. Mas o segmento comercial e industrial também foi atingido. Os escritórios, as sede de bancos e multinacionais, símbolos desta era, tornaram-se dispendiosos e justificáveis por modelos de negócio somente possíveis neste ambiente alavancado.

As bolhas hipotecarias têm parentes espalhados pela economia, o setor automobilístico é um deles. Não parece sustentável vender tantos carros no mundo desenvolvido onde todos já possuem carros. O sistema só funcionava com a oferta de financiamentos cada vez mais tentadores, levando as pessoas a trocarem de carro cada vez mais rapidamente, a cada 18 ou 24 meses, quando sabemos que os carros são produzidos com qualidade para durar mais de cinco anos, isto obviamente acabaria mal.

A crise bancária mostrava-se grave e confiança no sistema financeiro foi profundamente abalada, mas naquele momento não era possível determinar sua verdadeira extensão ou ainda afirmar se ela estaria restrita ao mercado americano. A confiança é fundamental para a saúde do mercado financeiro e a percepção que outros mercados poderiam estar expostos ao sub-prime deflagrou uma corrida de saques aos bancos e aos fundos de investimento que, aliado aos prejuízos causados por estes papeis nos balanços das instituições e o travamento do crédito interbancário, levou várias instituições à situação de insolvência.

Até então, o governo americano havia feito pequenas intervenções visando facilitar as operações interbancárias e resolver problemas pontuais de liquidez, oferecendo apoio para algumas aquisições e fusões no setor. Então, o governo foi instado a intervir mais diretamente e a forma, os volumes e a profundidade das intervenções tiveram caráter inédito no sistema capitalista.

Bancos e seguradoras, sinônimos de solidez e segurança por décadas, como a American International Group – AIG, Fannie Mae, Freddie Mac, Bear Stearns, Washington Mutual, Wachovia, citando apenas algumas das instituições americanas com problemas, estavam próximas do colapso e, de fato, algumas quebraram, ou foram adquiridas, ou ainda foram "nacionalizadas" (um eufemismo para "estatizadas"). O governo americano, após uma turbulenta discussão no congresso, lançou um pacote de ajuda para o resgate do sistema financeiro de até US$ 700 bilhões. Após ter sido aprovado ele teve a sua dinâmica de funcionamento alterada várias vezes o que demonstrou que as autoridades não sabiam bem o que fazer. O tesouro americano resgatou as agências hipotecárias americanas Fannie Mae e Freddie Mac, oferecendo garantias de até US$ 100 bilhões para cada uma delas.

A crise se alastrou, contaminando outros bancos e seguradoras ao redor do mundo, culminando, por exemplo, na quebra de todo o sistema financeiro da Islândia. Várias medidas foram adotadas pelos governos, tanto nos EUA quanto em outros países, para tentar restabelecer a confiança no sistema financeiro e restringir a extensão dos danos sobre a economia, mas as boas noticias acabaram não chegando e alguns dos maiores bancos do mundo, como o Citigroup, anunciaram prejuízos bilionários e notificaram que corriam o risco de falência.

Até aquele momento, havia a crença que países como Brasil, Rússia, China e Índia, entre outros, pudessem estar blindados e que suas economias iriam conseguir crescer e puxar a economia global. Mesmo tendo impactos assimétricos nos países e nas empresas, a primeira onda de choque da crise do sub-prime se espalhou rapidamente pela economia mundial. Até em países com um sistema bancário regulado e sem exposição a estes ativos, caso do Brasil, houve contaminação, verificada principalmente pela interrupção dos fluxos de crédito.

A partir deste primeiro momento da crise, novos desajustes ocorrem em ondas no sistema econômico, afetando a liquidez, a oferta de crédito e, por conseqüência, o nível da demanda e da oferta, o uso da capacidade instalada e principalmente, os preços relativos da economia, entre outros aspectos. A volatilidade e a imprevisibilidade se instalaram no mercado acionário e em todo sistema produtivo.

Considerando que as decisões econômicas passaram a basear-se em variáveis que oscilavam em uma abrangência desconhecida e sem tendência definida, seria justificável que os agentes econômicos desenvolvessem uma expectativa de eventuais quedas de preço. Esta possível "deflação" afetaria novamente o nível geral de demanda. Neste contexto, os agentes econômicos enfrentam dificuldades para realizarem suas previsões econômicas de curto prazo e para determinarem os riscos de suas operações.

Com a desorganização dos preços relativos, fato que já pode ser observado inclusive nas cotações cambiais e nos preços do capital (juros reais), os produtores perdem referencial e confiança para estabelecerem seus níveis de produção e os preços para seus produtos, ou ainda para saberem quais os custos reais e relativos dos componentes de sua cadeia de produção e, assim a produção travou. Muitas outras surpresas desagradáveis ainda poderão surgir.



[1]Um dos poucos economistas que previram a atual crise financeira.

[2] Paul Krugman, americano ganhador do Prêmio Nobel de Economia, é especialista em intercâmbios comerciais e articulista do New York Times. Foi um crítico severo da administração George W. Bush.

[3] Sub-prime – hipotecas de segunda linha no mercado americano. Os créditos hipotecários, inclusive os sub-prime foram transformados em papeis, "empacotados", avaliados por alguma agência de análise de risco de prestigio internacional e revendida para instituições financeiras em diferentes partes do mundo. Este mecanismo tinha a finalidade de diluir os riscos das operações. Porém, a inadimplência das hipotecas ganhou corpo mostrando que, aparentemente, os empréstimos teriam sido concedidos sem a necessária e rigorosa análise de credito. O resultado é que estes papéis geraram perdas generalizadas no sistema financeiro global.

[4]Reinhart e Rogoff, 2008. This Time is Different: A Panoramic View of Eight Centuries of Financial Crises.

[5]Reinhart e Rogoff, 2008. The aftermath of financial crises, pg. 1, 2 e 3.

[6]Idem.

[7]Reinhart e Rogoff, 2008. The aftermath of financial crises, pg. 1.

[8] Déficits gêmeos: a ocorrência de déficit público e de contas externas. Em certos países este tipo de crise resulta em fuga de capitais, redução de reservas internacionais, precedidas ou não por ataques especulativos contra a moeda local. Na crise brasileira houve o rebaixamento da nota de crédito concedida por agências de avaliação de risco. O estrangulamento financeiro é seguido por queda da atividade econômica e do emprego e o país busca crédito e apoio para restabelecer o seu equilíbrio macroeconômico nos organismos internacionais, como o FMI. A concessão dos recursos é precedida por exigências e contra partidas normalmente relacionadas á melhoria da situação fiscal, através da adoção de programas de redução do déficit público – muitas vezes ajustes para ageração de superávits e redução do estoque da dívida. Com a redução da atividade econômica seria possível obter ajuste nas contas externas. Muitas vezes são indicadas reformas estruturais e abertura econômica. A liberação dos recursos é parcelada e dependente do cumprimento de um rigoroso programa de metas. Nos últimos anos ocorreram crises em países como o México, a Rússia, a Argentina e o Brasil tendo como fator comum a insolvência nas contas externas.

[9]As melhorias ocorreram apesar dos gastos com as guerras do Iraque e do Afeganistão.

[10]Godley, Papadimitriou e Zezza, dezembro de 2008. Prospects for the U.S. and the World: A Crisis That Conventional Remedies Cannot Resolve, pg. 9.

[11]A dívida pública do governo os EUA é constituída de dívida com o público e com o próprio governo. Embora a soma dos dois tipos sejam utilizadas para discussões sobre o endividamento geral, só o que o governo deve para o público tem impacto sobre a economia, pois ao contrair empréstimos junto do público é reduzido o montante dos recursos disponíveis nos mercados financeiros para o investimento privado. Em contraste, o dinheiro que o governo deve a si mesmo não tem impacto sobre os mercados no presente, pois representa dívida de uma conta do Tesouro para outra. A maior parte dessa dívida interna diz respeito aos fundos federais.

[12]Fonte dos dados http://www.treasurydirect.gov/NP/NPGateway - acesso em janeiro de 2009.

[13] United States Department of Labor - Bureau of Labor Statistics. 12 Months Percent Change Series Id: LNS14000000 e Id: CES0000000001.http://www.bls.gov/ - acesso em fevereiro de 2009.

[14] Nouriel Roubini e Elisa Parisi-Capone, RGE Monitor.

[15] O Acordo de Basiléia I foi um firmado em 1988 e determinava que os bancos somente devessem emprestar até 12 vezes seu capital e reservas, porém ele não conseguiu evitar inúmeras falências de instituições financeiras na década de 90. Em 2004, o Comitê da Basiléia lançou o Acordo de Basiléia II em substituição ao acordo de 1988, que se fixa 25 princípios básicos sobre contabilidade e supervisão bancária.

[16]Reinhart e Rogoff, 2008. The aftermath of financial crises. Pg. 1, 2 e 3.

[17] Um fator de instabilidade e risco a ser considerado adequadamente é aquele decorrente do nível de recursos livres disponíveis em paraísos fiscais que não estão sujeitos a controle, (levantar documento do contador inglês Richard Murphy) além, de eventuais praticas contábeis que ocultam informações relevantes sobre exposição a risco em empresas que operem ou não nestes paraísos fiscais. (Vide caso Enron).

[18] Exemplo: A retração de economias como a dos EUA e a do Japão reduzirá as remessas de dinheiro de brasileiros que trabalham nestes países, em função da redução do nível de emprego.

[19] Os efeitos da crise serão assimétricos, alguns setores serão beneficiados e outros prejudicados. Quanto maior a participação das exportações no faturamento do setor, maior o risco de retração.

[20] As reduções, a principio, estarão mais relacionadas às vendas às montadoras que ao suprimento de peças de reposição.

[21] Os antigos bancos estaduais foram testemunhas dos efeitos decorrentes da negligencia na avaliação dos riscos na concessão de crédito.

[22]Bernard Lawrence Madoff, homem de negócios Americano ex-presidente da Bolsa NASDAQ que causou prejuízos a investidores do mundo inteiro, avaliados em mais de 50 bilhões de dólares.

[23]Entre os compromissos políticos da nova administração americana estão: reduzir o imposto de renda para 95% da população, salvar o sistema financeiro, ampliar a ajuda financeira aos devedores das hipotecas e às indústrias e dar acesso universal ao sistema de saúde.

[24]Utilização de fontes renováveis de energia, uso novas tecnologia de produção para redução do consumo energético e de gazes do efeito estufa, melhoria nos edifícios comercias e residências para um consumo mais racional das fontes de energia, produtos menos poluentes e mais propícios a reciclagem, veículos verdes, entre várias outras opções.