Resumo:

     Tendo dedicado atenção ao comportamento de crianças da Educação Infantil e tendo tido como foco, crianças mais facilmente suscetíveis a fortes lideranças, o que pode causar conflitos nas interações entre elas, refletimos sobre como agir no sentido de reduzir danos no processo ensino-aprendizagem. O trabalho foi desenvolvido a partir de leituras sobre o tema, observação de comportamentos e contato com professores da Educação Infantil responsáveis por grupos de crianças entre três e cinco anos.

Palavras-chave:

Liderança / Submissão/ Liberdade.

Introdução:

               A observação do comportamento de crianças em grupos de Educação Infantil nos faz constatar, apesar dos cuidados em proporcionar o melhor dos ambientes no qual todas as crianças encontrem espaço para expressarem-se livremente, a presença “natural” de crianças que comandam e crianças comandadas. As questões que nos colocamos são: a liderança e o deixar-se liderar são comportamentos naturais? E até que ponto? Quando atuar e como podemos fazê-lo para atenuar os mandos e desmandos e a passividade, a fim de diminuir discrepâncias, agressividade, submissão e baixa estima em nossos pequenos? Como evitar que extremos atrapalhem o processo de ensino-aprendizagem?          

           Dona de um corpo do qual não se apercebe, desde seu nascimento, a criança é pura pulsão (Freud, Os Três Ensaios sobre a Sexualidade, 1949), e age segundo características próprias e segundo comportamentos aprendidos no meio (Coll, Marchesi, 2014). Considerando a existência do que chamamos de “líder nato”, estaríamos colocando, em primeiro plano, características genéticas e desprezando os comportamentos aprendidos?

             A criança que apresenta forte tendência à liderança deveria ser, indiscutivelmente, estimulada a sê-lo, já que vivemos em um mundo cada vez mais competitivo e carente de líderes? Um “líder natural” não deveria ser eleito e aceito pelo grupo segundo características semelhantes a seus eleitores, invés de ser imposto?

               O próprio termo “liderança” é muito bem aceito socialmente e quem o defende, o separa da definição de autoritarismo. O nosso “líder nato” em questão, aceita, pelo menos, algumas regras? Respeita seus coleguinhas durante as brincadeiras? Ou será que assume, se conseguimos observá-lo, um pouco de longe, a figura de mais um simples mandão? Se for assim, nosso líder nato estará, com certeza, submetendo crianças submissas a seus jogos e mandamentos. Isso lhe dá satisfação. É desse modo que descarrega sua tensão. Dependendo do nível de controle, das atitudes que toma para exercer seu controle sobre os outros, do nível de sofrimento infligido ao outro, nosso líder precisará de ajuda, tanto para a proteção das crianças à sua volta como para sua proteção.

                Muito criticado pela participação no livro “A Personalidade Autoritária”, devido à busca de características de traços comuns que ajudariam a identificar o indivíduo autoritário, Adorno assina a obra que irá influenciar por muito tempo, estudos sociológicos que vincularão a personalidade autoritária ao autoconceito, que está determinado pela identidade social e por como o indivíduo se percebe como pertencente a grupos sociais. Poderíamos então considerar um outro tipo de indivíduo que aderiria totalmente ao líder autoritário, atribuindo a ele a personalidade conhecida como “submissão autoritária”. O preconceito, a cega adesão a valores da sociedade em que se está inserido, a ausência de práticas críticas na vida escolar, a total aceitação das regras impostas, sem reflexões, também seriam características da personalidade autoritária.

               Aprendemos com Bandura que as crianças imitam os adultos. Considerar que uma criança que aja de forma mais agressiva possa estar sendo tratada com agressividade, possa estar sofrendo castigos e punições, possa estar repetindo o padrão de comportamento ao qual está exposta em casa, provavelmente trará mais clareza sobre várias de suas ações. A criança que apanha, que vai sempre pro castigo como, se o castigo fosse sempre a melhor solução, ou ainda, a criança que é tratada aos gritos, dificilmente apresentará comportamento diverso quando em grupo, com seus coleguinhas.  Ou ainda, a criança que já se habituou a esse tipo de tratamento e não se rebela em casa, reproduzirá sua indiferença em frente aos outros “sargentos” que forem aparecendo pelo caminho, deixando-se dominar, ou pior ainda, achando que a submissão é a sua única saída. Se não conhecem outro tipo de relação, tenderão a repeti-lo.  O mesmo vale para os outros cuidadores, incluídos, naturalmente, os professores. Para lidar com crianças pequenas é necessário envolvimento, aceitação e compreensão constantes. Sem diálogo, sem autenticidade, sem desejo genuíno de construção e renovação contínuas com os outros profissionais, com a família, com as crianças, dificilmente, elas, as protagonistas dos nossos esforços, se libertarão de nossos próprios vícios e limitações, imitando o que não fomos capazes de transformar em nós mesmos, em seu benefício.

              Acreditamos que, às crianças, deve-se proporcionar a possibilidade de reflexão.  Pouco a pouco, vão obtendo autonomia e vão deixando de obedecer cegamente a quem lhes impõe regras arbitrárias. Quando experimentam situações nas quais podem exercer suas capacidades na resolução de novos problemas, crescem mais seguras e mais capazes de compreender seu espaço e reconhecer o espaço do outro. A obediência cega, aquela do “basta um olhar” como autoridade inquestionável, pode causar danos em sua socialização, levando-as a comportamentos extremos de autoritarismo ou submissão, ou seja, ou repetindo as ações de seus cuidadores, ou abandonando-se a elas, tanto em família, quanto na escola, nas relações com os coleguinhas e com os educadores.

           Não podemos permitir que nossos pequenos “líderes” se tornem tiranos e, ao mesmo tempo, não podemos permitir que nossas crianças que, sem dificuldade, se submetem a “leis inventadas” durante atividades ou brincadeiras, tornem-se seus humildes súditos.

             Paulo Freire também destacava a “aderência” ao opressor, situação na qual os oprimidos chegariam a admirar o opressor e a objetivá-lo. O precisamos desejar para os meninos, hoje, é que cultivem a liberdade.

          “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” (Paulo Freire, 1983, p 27).

                 Nossos líderes em questão são facilmente detectáveis enquanto interagem nas brincadeiras dentro ou fora da sala. Crianças autoritárias podem tornar-se agressivas. Não esperam, não dividem, odeiam perder, se frustram muito facilmente, reagindo de forma negativa, têm enorme necessidade de punir quem as controla ou quem não as obedece. Ser questionado é motivo de sofrimento e o faz sentir ameaçado e desafiado em suas próprias fraquezas.

                Espera-se da criança entre três e cinco anos de idade maior facilidade no controle das emoções. Os limites e proibições deveriam provocar reações mais brandas. Ela já dá conta de expressar verbalmente sua afetividade e anseios. Já é capaz de discriminar emoções em seus amiguinhos. Até os cinco anos, em geral, são capazes de demonstrar empatia e comunicar desagrados.

                As relações com os cuidadores são a base para o desenvolvimento emocional das crianças e para suas relações futuras, quando ela for obtendo melhor manejo de suas emoções. Precisamos estar atentos para que nossas crianças possam desenvolver-se em segurança.

                 Os relatos a seguir citam comportamentos de criança líder (autoritária) e criança submissa alunas de Educação Infantil, guardado total sigilo sobre as crianças e outras pessoas envolvidas. As contribuições de avós, mães e professores foram muitas. Foi preciso escolher só alguns casos.           

                  P. é um menino doce e encantador que ama dançar. Tem sete anos. Quando pediu à mãe para fazer aulas de dança era ainda novo demais para ser aceito na academia. Já está no ballet há dois anos. Obviamente, enfrenta problemas na escola, principalmente com o líder, também por causa da dança, que nunca escondeu de ninguém. Na escolinha onde estudam há um acordo: que as crianças tentem resolver entre elas seus perrengues, antes de dirigir-se a um adulto. Parece ótima medida para diminuir a quantidade de “dedos-duros”. Parece. Um dia, P. tem a cara arranhada em forma de Z por um alfinete. Seu líder teria perdido a paciência com sua total falta de aderência a regras de comportamento por ele impostas. Ser punido significa para a criança, segundo Piaget, ter feito algo errado. Não saber o que fez de errado, principalmente, porque o errado em seu caso parece ser simplesmente existir, P. não pode ser abandonado a seu sofrimento.  Piaget afirmava que para a criança de seis, sete anos, não há atenuantes para seus erros.

                    Ferido, P. lembrou-se ainda de “ter que tentar resolver sozinho seus problemas”.  Foi até a enfermaria. Lá, passaram algodão embebido em algum líquido que fez estancar o sangue. Somente na madrugada, quando acordou chorando, sua mãe pode ver os riscos finos em seu rosto, com algumas pontinhas vermelhas.

                A família de P. o escuta, considera seus relatos, permite a sua participação nas conversas “de adulto”, pondera sobre as ações a serem tomadas. Após o relato do filho, pai e mãe são capazes de resolver tão particular situação na escola, no melhor dos modos. Todos os envolvidos pareceram mostrar real interesse em promover mudança em seus comportamentos e em buscar estimular o desenvolvimento moral nas relações na escola.

               A frequência entre educadores, do silêncio para evitar problemas, estarrece. A boa vontade que todos os envolvidos mostraram, quando pressionados, não evitou que a criança fosse mandada para casa, num primeiro momento, como se nada tivesse acontecido. Nós, educadores, precisamos de coragem para assumir nossos erros, para esclarecer equívocos. Precisamos de coragem, principalmente, para pedirmos desculpas quando é necessário. Do contrário, que mundo estaríamos construindo para as crianças, que nos observam tão de perto, que percebem nossos medos e acovardamento?

 

                M., aos quatro anos, chegou a uma nova escolinha e logo se encantou por uma menina de sua classe, que, no mesmo dia, receberia as honrarias de “melhor amiga”. Loira e linda como “uma princesa”, a amiga de M. manda e comanda com extrema desenvoltura.  As mães das duas também tornam-se amigas. Qualquer observação no sentido de alertar sobre o poder de controle da amiga e a total submissão de M. é mal vista. Pequenos “acidentes” e desavenças, são coisas de criança. Apenas quando M. muda de escolinha, um ano depois, e também na nova escolinha elege rapidamente outra loira e linda como uma princesa, como sua nova melhor amiga, quando a segue, obedecendo e agindo como quando em companhia de outras pessoas ou crianças não age, imitando seus gestos, desobedecendo, porque sua líder desobedece, é que os responsáveis de M, se dão conta de que há algo a fazer para intervir. M. chega a casa, com apenas cinco aninhos, e fala da melhor amiga: “Ela parece gostar de me ver triste”.

 

                     Intervir em casos assim é na maioria das vezes, uma coisa de nada. Um simples gesto, algumas palavras, pequenas modificações de posição ou papéis nas brincadeiras, um trabalho especial com todo o grupo, ou ainda, pura observação, permitirá avaliar a gravidade ou não do problema e dará subsídio às ações com as famílias, se for o caso, que garantirá a confiança das crianças em seus educadores. Lembremo-nos ainda de que as discussões e desavenças entre crianças em fase de Educação Infantil são ensaios sobre como relacionar-se e solucionar problemas.

                   Nossa tarefa como facilitadores é sempre a de incentivar práticas que levarão nossas crianças ao auto respeito e à autoestima, orientando-as nesse sentido, sem nunca perder de vista as necessidades individuais. O que funciona muito bem com uma criança pode vir a ser um desastre para outra. A observação atenta de cada um permite conhecê-los em sua individualidade e preferências.  

                   Janet Gonzalez Mena em seu livro Fundamentos da Educação Infantil (2015, p.53) propõe permitir que as crianças expressem sempre seus sentimentos.  Quando lhes é permitido fazê-lo, e ainda, quando ao adulto é permitido fazê-lo, os conflitos parecem chegar mais facilmente a uma solução. A autora dá vários exemplos que tendem a substituir o velho “Por que você fez isso?”, em seus mais variados tons, por versões de “Vejo que você está bravo”. (chateado/ com raiva). Nos casos relatados acima, poderíamos pensar em uma saída das situações, pela via da fala, tentando evitar que as crianças agredissem ou se deixassem agredir, permitindo que elas falassem antes sobre o que estavam sentindo. Não se trata de conseguir evitar todo e qualquer comportamento inadequado, mas de “demonstrar uma resposta construtiva” como diz a autora. (p.117).

                 Se estimuladas a colaborar e a serem ajudadas por outras em suas necessidades, se estiverem envolvidas em atividades adequadas que fazem experimentar a partilha, o revezamento, o respeito e a confiança, tornar-se-ão gradualmente menos egocêntricas. Se observadas em suas idades, em seus estágios de desenvolvimento, em seu contexto social, cultural e econômico e se nelas investirmos a partir dessas observações, conquistando sua confiança, proporcionando a liberdade que lhes é necessária e fundamental para o seu desenvolvimento, permitiremos que cresçam muito mais independentes e que tenham autoestima, que é o que garante maior controle emocional.

                 Não há necessidade de domínio sobre os outros na criança que se sente bem com ela mesma. Quando se sente importante em sua classe, em sua escola, quando é apoiado na busca de soluções para problemas, quando é fortalecido em suas fraquezas e inseguranças, explora mais, aprende mais, conquista seu espaço, sem ter que lançar mão de nenhuma agressividade.

             A criança precisa e deve ser escutada e precisa reconhecer sentimentos para que possa aprender a manejá-los melhor..

           ”Uma criança se sente prestigiada quando alguém se importa o bastante para ouvir. Os simples atos de ouvir e de indicar que você escuta ajudam a criança a desenvolver a autoestima – um fator importante para o bem-estar psicológico.” 1

1 Mena, Janet Gonzales. Fundamentos da Educação Infantil. AMGH Editora Ltda, Porto Alegre, 2015.     

         Considerações finais:

                Assim como Freud, que em seus estudos sobre a sexualidade, buscava compreender o que há de infantil no adulto, busca-se hoje, compreender em trabalhos com crianças, o que ela traz em forma de reprodução, em suas relações com outras crianças, o que ela observa nas suas relações com outros adultos e nas relações entre os adultos que a cercam e julga ser repetível, justamente porque não experimentou ainda novas formas de relacionamento. Muitas vezes, reproduz cenas que presencia em casa, em cenas quotidianas em que membros da família representam papéis de liderança e de submissão. Muitas vezes, repetem, sem que os profissionais da escola percebam, comportamentos aprendidos na própria escola, caso os níveis de hierarquia sejam os tradicionalmente verticais e impeçam interações horizontais. Desafiados todos os educadores comprometidos com suas crianças, a lutar por formas inovadoras e libertárias de lidar com comportamentos não aceitos socialmente, para que se transformem em atitudes de tolerância, aceitação e solidariedade.

Referências:

Bourcier, Sylvie. Revista on line. Naître et grandir. Junho, 2011.

Coll, C.; Marchesi, A.; Palácios, J. & cols (2004). Desenvolvimento Psicológico e Educação: Psicologia Evolutiva. Vol. 1. pp. 23-27.

Fini, Lucila D.T. Desenvolvimento Moral: de Piaget a Kohlberg. Trabalho apresentado no V Encontro Nacional de Professores do PROEPRE, Faculdade de Eduação, UNICAMP, Lindóia, São Paulo, 1988.

Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, São Paulo, 1970.

Freud, Sigmond. Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Vol.VII, 1905.

Mena, Janet Gonzales. Fundamentos da Educação Infantil. AMGH Editora Ltda, Porto Alegre, 2015.

PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

Rodrigues, Marlene. Psicologia Educacional. McGraw-Hill do Brasil, São Paulo, 1976.

Adorno, T.W., Frenkel-Brunswik, Else, Daniel J. Levinson e R.Nevitt Sanford, Harper & Brothers. The Authoritarian Personality. Direitos de Cópia Comitê Judeu Americano, 1950. http://www.ajcarchives.org/main.php?GroupingId=6490.

------------------- Textos Escolhidos. Nova Cultural, São Paulo, 1996.

 

Sites:

ttp://br.guiainfantil.com/materias/educacao/comportamento/criancas-submissas-como-

mudar-o-seu-comportamento/

http://www.escolapsicologia.com/erros-que-os-pais-cometem-quando-falam-com-as-criancas/

http://educarparacrescer.abril.com.br/comportamento/como-lidar-autoritarismo-criancas-743000.shtml

http://www.pead.faced.ufrgs.br/sites/tutoriais/apresenta_arquiteturas/meadc/edu136/20012/alinen/cert3.html

http://www.scielo.mec.pt/pdf/aps/v22n1/v22n1a04.pdf

http://www.ajcarchives.org/main.php?GroupingId=6490

http://www.child-encyclopedia.com/emotions/according-experts/emotional-development-childhood

http://naitreetgrandir.com/fr/etape/3-5-ans/comportement/fiche.aspx?doc=prevenir-intimidation

http://www.freudonline.com.br/livros/volume-07/vol-vii-2-tres-ensaios-sobre-a-teoria-da-sexualidade-1905/

http://www.ajcarchives.org/main.php?GroupingId=6490