Em um determinado tempo e espaço, em uma realidade virtual  um pai e uma mãe, de crianças de idade variáveis entre três e dez anos, começaram da discutir as vocações que envolvem pais quando a questão é afeto, toque, apego, interação e cumplicidades. Na conversa, veio à tona um raciocínio: ”

“Trabalhamos tanto, estamos em contínuo lidar e tudo é em proveito do estômago, que aí fica folgado, empregando em vantagem sua quanto adquirimos”. Era o trecho de uma conversa entre os pés e mãos de um mesmo corpo sobre as suas reponsabilidades, exclusivamente em favor do estômago. Pais e mães precisam levar em conta seus entraves e limitações  em atualizar todo o fazer humano do seu tempo, para sair do analógico para o digital,  como única forma de manter o que há de melhor no seu histórico, seus conhecimentos prévios, em favor de uma criteriosa atualização.

Nesse raciocínio, todos os conhecimentos transmitidos pelos pais serão conduzidos a um espaço mental da criança que, mesmo na tenra idade deverá ser orientada. Tal orientação consiste em entender e interpretar o que os valores representam para a melhor aceitação do novo, do tecnológico, do moderno e do midiático. Em um universo dominado por esses pequenos gênios que precisam respirar o ritmo dos valores que mantêm a sociedade no comando da educação dos novos homens, a presença firme e determinada de pais conscientes do seu papel é imperiosa e necessária.

            Se os pés e as mãos se cansam de sustentar o estômago na manutenção do corpo como um todo, os pais estão se exaurindo na tentativa de atender às necessidades dos seus filhos. Tais necessidades consistes no fornecimento de requisitos, brinquedos, equipamentos que toda a modernidade  disponibiliza, desde as iguarias que os alimentam até os sofisticados celulares e computadores, para os que os mesmos falem a linguagem do seu tempo. Essas crianças, bem atendidas em seus interesses e, por vezes, caprichos, mesmo recebendo a melhor criação, a melhor educação, hão de conviver inevitavelmente om outras crianças que são carentes de tudo. Essas outras crianças são filhas do mundo, filhas de pais inexistentes, enquanto educadores, filhas de total ausência de valores, costumes e tradições que mantiveram unidas gerações a fio, ao longo de todos os tempos evolutivos.

Como ensinar aos nossos filhos sobre o amor, se na outra ponta o amor é um viés dos contos de fadas, também ultrapassados, no universo de conhecimentos? Como discutir ou esperar respeito pelo outro se as camadas mais carentes de todas as sociedades foram educadas a fazer o mundo girar em torno de um chip, de um aplicativo, de um arquivo externo que depende de rede, de técnica e totalmente desprovido de emoções, de sentimentos de reações humanas?

Reconhecer que a tecnologia é incrivelmente presente em todos os eixos de manutenção e construção de teia da vida, passa a residir no campo do lugar comum. Trata-se de uma realidade que não nos permite chocar-se ou mostrarmo-nos impactados ou descrentes de experiências registradas em outros tempos, espaços, sociedades que possam estar enquadradas na era da pedra polida, lascada, dos ventos uivantes, dos avatares....da vida. Mas é exatamente esse encantamento com os sempre últimos e surpreendentes lançamentos dos apetrechos que fazem homem, cobaia de si mesmo. Perde-se a consciência de que haja o que houver, conquiste-se o que for, criem-se os mais surpreendentes  robôs que choram, próteses que sentem cãimbras, quem está, ou deveria estar, no comando é o homem, agente do seu tempo, dos seus estudos e de suas descobertas.

E na conversa entre os pés e as mãos saiu uma decisão: “Não estamos mais para isso, vamos descansar, queremos folgar, e que o estômago vire-se  como puder.” Imaginemos que pais e mães, entre si, decidam desistir da tarefa aparentemente insana de se debater entre as dureza de uma boa palmada com a indiscutível liberdade que a criança de hoje está treinada a ter e a impor para os pais menos atentos. Naquele tempo, o exemplo era lição, hoje é punição; a proibição era um ato de amor, hoje motivo de constrangimento e frustrações; determinar o que precisava ser feito era a razão de ser pais, hoje é ser ultrapassado, é ser desatualizado com o moderno, como o cibernético, com o matemático, com o lógico, com o insensível.

No universo dos membros do corpo humano, não será somente o estômago que vai sentir falta da ação dos pés e das mãos, Todo o corpo vai se ressentir. Todo o corpo vai sucumbir pouco a pouco. Numa analogia bem estreita com essa briga entre pés, mãos e estômago, cabe uma comparação: os pais são os pés, se pararem de agir o corpo ficará inerte; as mãos são as mães que não podem parar de definir o que é melhor para os seus filhos, de calcular detalhadamente o sabor do abraço e o cheiro de um sorriso na hora certa. Nesse aspecto, tudo fugirá do alcance das mãos, eixo que nos fala tão de perto da segurança e da busca da felicidade.

Essa falência múltipla de órgãos redunda em fracasso total para o corpo humano. Se se discute uma comparação entre a necessidade premente de um órgão articular-se com outros para o funcionamento do todo, vale para a espécie humana e o caminho do sucesso: o pai patrocina e materializa o exemplo: a mãe articula os valores e finaliza o processo de obediência, não às regras, mas ao conjunto de princípios que regem as relações sociais a partir do que cada traz em si como costumes atitudes e capacidade crítica de discernimento entre o que é certo e o que pode nos trazer conflitos entre o ensinar dos pais e o aprender dos filhos.

Na sequência da analogia: “O estômago ficou em jejum; mas para logo todo o corpo caiu em debilidade; braços, pernas, pés e mãos foram dos primeiros a sentir um entorpecimento, uma languidez que os assustou; compreenderam que iam morrendo...”  A criança cresceu, os desafios começaram a se robustecer, as reflexões foram ficando mais necessárias, a consciência de que todos os equipamentos foram criados para beneficiar a qualidade de vida homem começa a cobrar a fatura. A prótese não é parte de um corpo, um chip não se incorpora ao humano; o aplicativo não tem a força de um sentimento; um “like” não diz sim para quem pede um colo, um afago, um olhar, um abraço.

Há uma grande lacuna documentada de um repertório que assegure que as crianças de hoje, quando alcançarem suas vidas adultas, com seus diplomas adquiridos por meio de sofisticados meios eletrônicos trazem requintes de inteligências múltiplas, de redes poderosas que fazem do cérebro uma reserva que fica à margem da emoção do pensar, do sentir, do sonhar, do prazer de ser, do valor do ter porque merece saber o que faz, o que quer, o que pode porque lhe cabe.

E, partindo da máxima “Não se cobra de quem não tem”, as crianças quando forem pais não poderão dispor daquilo que não compõe o seu universo de conhecimento. Elas não poderão dar conta do que não vivenciaram, não poderão aplicar no seu momento, o que lhe foi negado em nome de comportamentos que transformaram a relação de pais e filhos. Tal transformação passou a ser natural instituir uma relação de amigos que acertam ganhos e perdas por meio de negociações sem o devido comprometimento das partes: pais mandam, filhos obedecem; pais ensinam e filhos aprendem; famílias formam, transformam e transferem valores para aqueles que no porvir darão sequência à história da espécie humana. Onde estão sendo formados os pais da terceira próxima geração, quando muito pouco ou quase nada restar das três últimas gerações passadas?

Lição: Todos somos membros de um vasto corpo, que é a sociedade; cada um exerce funções especiais, mais subidas, mais humildes, porém todas indispensáveis para a prosperidade e até para a existência de todos.

O pensamento original da funcionalidade de membros de um corpo comparado com a estrutura social de uma família que tem sobre si, a responsabilidade com a manutenção e formação das famílias espera-se que seja descoberta uma artéria, veia de corte, não uma data, uma fato, uma lei, uma ruptura. Urge que se pense mais no real de cada um, no sentimento de cada um que move o mundo por meio das relações sociais que iniciam invariavelmente na família. Pode ser que todo esse posicionamento seja pouco alvissareiro já que é politicamente correto apostar nas inovações. É possível que alguns, em nome de muitos, pensem em rever o comportamento que nos conduzem através dos tempos em buscava da felicidade.

Será que tudo que contraia quem não sabe precisa ser abolido? Será que nos  séculos passados nas rudimentares condições de vida se conseguiu forjar homens e mulheres de fibra que tantos honram a espécie e não lhes seja rendidos méritos. Como as crianças que precisam comer e não sabem onde encontrar poderão saciar as suas necessidades  de sobrevivência? Como esperar que homens e mulheres críticas e conscientes do seu papel de cidadão poderão ser merecedores de reconhecimentos se eles, ao longo da vida, viveram de facilidades, de concessões, de direitos sem nenhum dever?

Precisamos nos questionar: os avatares nos rondam, os androides se multiplicam, os seres de luz passeiam por entre os comuns... os robôs choram e sentem saudade, a inteligência artificial nos emociona, mas as crianças não podem ficar sozinhas. Mesmo que isso não signifique dar condições de autonomia. Essa tal autonomia precisa ser resultante de balizamento, olhares, acordos e conversas francas. Elas podem e devem brincar sozinhas. Nessa atividade, elas incentivam a imaginação, desenvolvem a independência social, conseguem calma, diminuem a agitação, se preparam para a escola e garantem maior tempo livre para os pais.

Entretanto, enquanto não estiverem prontas para enfrentar um mundo de desafios, de catracas e de armadilhas, sem que estejam preparadas desde cedo para serem fortes, definidas e decididas, não devem falar, decidir, por si mesmas.

  • Sebastião Maciel Costa