A CRIAÇÃO GEME EM DORES DE PARTO
Deus criou todas as coisas do nada, o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, e entregou-lhes o cuidado da criação: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Deus criou o homem à sua imagem; homem e mulher os criou e abençoou: Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se arrastam sobre a terra. Dou-vos toda erva que dá semente sobre a terra, as árvores frutíferas para vos servirem de alimento" (1). O ser humano, imagem e a semelhante do Criador, traz na sua natureza as marcas do DNA da Divindade. "Javé, que é o mortal para te lembrares dele, o filho de Adão e Eva, que venhas visitá-lo? Pouco menos que um deus o fizeste, coroando-o de glória e beleza" (2). Adão e Eva foram constituídos curadores um do outro e dos semelhantes, com missão de manter e preservar a criação. Mas, entenderam dominar como devastar a criação e oprimir os semelhantes. Ora dominar vem de ?dominus?, senhor e senhor é quem cuida, não quem oprime. "O maior dentre vós torne-se como o mais jovem e o que governa, como aquele que serve. Chamais-me Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou. Eu, porém estou no meio de vós como aquele que serve" (3). Por causa deste equívoco, a criação, ontológica e moralmente boa, foi molestada por quem deveria cuidar dela: o ser humano, imagem e semelhança de Deus, a obra prima da
criação, espelho do Criador. Investiu insensatamente contra si, os semelhantes e as criaturas, desafiou o Criador pretendendo ser como deus. É o veneno da rebeldia ética contra Deus e tudo que é sinal dele na criação: as criaturas, que se mantêm vivas e funcionam em harmonia umas com as outras; valores éticos que balizam as ações dos seres livres: liberdade, igualdade, fraternidade, justiça, democracia, verdade, amor e oportunidades de crescimento pra todos; ordem econômica dirigida para o bem-estar geral, não para lucro e enriquecimento de alguns e empobrecimento da maioria; ordem social que permita a todos viverem no respeito mútuo; o credo religioso pessoal e seus lugares teológicos: perdão, compaixão, misericórdia. O ser humano atentou contra a ordem justa da criação e contra o Criador. Por não assumir a condição criatural, mas querer ser deus, gerou o caos, desordem ecológica na criação a seu cuidado, a
dor e tristeza. As conseqüências do grande equívoco não tardaram a aparecer: por inveja, Caim matou Abel e a insensatez do mal transbordou pra toda a criação, mortalmente atingida pelo poder devastador do mal. "Até quando se lamentará a terra e ficará seca a erva do campo? Por causa da maldade dos seus habitantes, perecem os animais e pássaros. Pois dizem: Deus não vê nosso futuro. Por isso se lamentará a terra, desfalecerão todos seus habitantes, desaparecerão animais selvagens, aves do céu, até os peixes do mar. Toda a criação geme e sofre as dores do parto até hoje, anseia em expectativa pela revelação dos filhos de Deus, na esperança de também ela ser libertada da escravidão da corrupção, para entrar na liberdade gloriosa dos filhos de Deus. Não só ela, também nós que temos as primícias do espírito, gememos interiormente suspirando pela redenção do nosso corpo" (4) e (5). A corrução da criação se chama pecado do mundo, que enveneno todos os seres criados. A violência se alastra na cidade e no campo. Baleias agonizam na praia fugindo da poluição dos mares. Espécies morrem envenenadas por rios poluídos e os agrotóxicos das plantações. A ganância e o lucro sem escrúpulo fazem a lei. Quem pode intervir para mudar a situação faz vistas grossas e ouvidos de mercador: omite-se por covardia.
Qual a origem do pecado e como ele envenena a criação? O ser humano é limitado por natureza e um ser limitado só produz atos limitados. Por isto, ele é potencialmente pecador. "Eu nasci na iniqüidade, no pecado minha mãe me concebeu". Quer dizer que o ser humano é mau por natureza, essencialmente
incapaz de fazer o bem? Absolutamente, não. "Deus é bom, o Pai vos ama", diz Jesus; dele não podem proceder atos maus. Tudo que cria é bom. O ser humano e os outros seres criados são ontologicamente bons, porque o Criador é bom. O efeito (criação) reflete a Causa (Deus). Sendo bom, tudo que Deus faz é
sinal da sua bondade. "Senhor, tu amas tudo que criaste e não te aborreces com nada que criaste. Se fosse pra odiá-lo não o terias feito de modo algum" (6). O ser humano foi criado ontologicamente bom, não é mau no seu ser, pois é obra do Criador bom por natureza, que não gera seres maus. Mas, somos
pecadores, concebidos no pecado. Donde vem este paradoxo? Somos criaturas, imperfeitos constitutiva
e estruturalmente, não o Criador. Portanto, é na nossa estrutura ôntica que somos falíveis, capazes de
atos falhos. Seres imperfeitos só geram atos imperfeitos, até os bons. Como nossa bondade ontológica é
relativa, somos potencialmente pecadores. Nossa essência é boa, mas imperfeita: capaz de atos bons, mas imperfeitos, só relativamente bons. Como somos livres e responsáveis, se nossos atos imperfeitos nos prejudicarem, aos nossos semelhantes e à natureza, não são só atos imperfeitos, mas eticamente maus. A prática do mal é o limite extremo das ações limitada. Sob a ótica da fé, atos propositalmente maus são pecados atuais, não potenciais. Pecados que ofendem o Criador e as criaturas. Logo, quando dizemos que somos pecadores, gerados e nascidos no pecado, precisamos distinguir entre pecado atual, potencial, putativo e do mundo. Somos estruturalmente capazes de pecar, pecadores potenciais. Não significa que necessariamente pecamos, não podemos evitar o mal. Sim, podemos evitar, não cometer o mal. Ser pecador potencial significa apenas que somos falíveis, capazes de falhar, de praticar atos éticos
maus, prejudiciais a nós, aos semelhantes e outros seres. A condição pecadora potencial nos é inerente,
permanece até quando não falhamos. "Uma vez pecador, sempre pecador" (Martin Lutero). Por sermos limitados, somos ontologicamente falíveis, não moralmente maus. Nossa falibilidade congênita não nos leva necessariamente a pecar. Tendo liberdade de escolha, podemos praticar atos bons ou maus; atos que favorecem ou prejudicam os irmãos, à criação, a nós. Aceitar seus limites significa reconhecer Deus como criador e eu como criatura, assistida pela presença envolvente, gratuita do Pai, pela fé. Mas, fora da fé, explícita ou implícita, que nos une ao Salvador, nossa falibilidade nos levará inevitavelmente à desgraça. Unidos a ele pela fé, recebemos dele energia do Espírito filial, que nos capacita a praticar atos conforme nossa natureza boa. "Somos criaturas suas, criados em Cristo Jesus, pras boas obras que Deus antes tinha preparado para que andássemos nelas. Nossa capacidade vem de Deus, que opera em nós o querer e o operar, segundo sua vontade" (7). A simbiose com Jesus nos capacita a praticar obras iguais, não só semelhantes às dele. Mas, se negamos sua presença acolhedora, agindo com liberdade absoluta, inevitavelmente falharemos. Se formos fiéis ao nosso ser, não cairemos na tentação de viver separados de Deus e perdermos o rumo (pecado). Agir como criador, não como criatura, é a tentação incessante do ser humano de todos os tempos. Ora, viver e agir separado de Deus é ser injusto consigo e a criação, limitada como nós e carente de apoio. Unir-se a Deus não significa necessariamente ter religião, mas ter consciência da relação criatura-Criador, dos limites e do bem que a criatura pode praticar. Com religião ou não, agir com ética, "fazer tudo bem feito é a santidade". A consciência dos nossos limites condiciona nosso agir a livra-se do mal. Mas, se agimos com liberdade ilimitada, insana, pretendo "ser como deus",
necessariamente falharemos. Funcionando como seres absolutos, separados dos valores éticos, fora dos nossos limites, praticamos a injustiça, tornamo-nos maus. As vítimas dos pecados alheios são pecadores putativos, que levam sobre si a culpa e os efeitos mortais de pecados que não praticaram. Esta maldição chama-se pecado do mundo: pecado sofrido, não praticado por suas vítimas. As vítimas do pecado do mundo são bodes expiatórios dos que praticam o mal e não assumem. Por nosso amor e a toda criação, Jesus toma sobre si as dores e desgraças das vítimas do pecado do mundo, voluntariamente se faz bode expiatório vicário, no nosso lugar. Ele é o Cordeiro de Deus, que doa livremente a vida pelos irmãos e pela criação inteira. Quando nos fizerem bodes expiatórios, digamos com Jesus: "Pai, perdoa-os, não sabem o que dizem nem o que fazem" (8). Para o pecador potencial não se tornar pecador atual, oração e vigilância são os remédios: "Quem está de pé, cuide que não caia. Vigiai e orai para não cairdes em tentação; pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca. Não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal" (9). Mas, se não resistimos à tentação, tudo não está perdido. Penitência, arrependimento, pedido de perdão, jejum, boas obras, vigilância, oração são os remédios eficazes. Para os pecados que injustamente nos imputam os remédios são: paciência, jejum, oração, boas obras, pedido de perdão por aqueles pecados que nos acusam. Assim, participaremos do sacrifício do Cordeiro de Deus, resgatando a criação com ele, "completando no nosso corpo o que falta aos sofrimentos de Jesus Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja" (10).
Somos pecadores, não escaparemos da realidade de nossa fragilidade congênita, que pode traduzir-se
em atos prejudiciais ao semelhante e induzir outros ao erro. Paulo Apóstolo traduz dramaticamente esta realidade: "Realmente não consigo entender o que faço; pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto. Ora, se faço o que não quero, reconheço que a lei é boa. Na realidade, não sou mais eu que pratico a ação, mas o pecado que habita em mim. Sei que o bem não mora em mim, na minha carne. O querer o bem está, pois, ao meu alcance, não, porém o praticar. Pois, não faço o bem que quero, mas o mal que não quero. Ora, se faço o que não quero, já não sou que estou agindo, mas o pecado que está em mim. Verifico esta lei: quando quero fazer o bem, é o mal que se me apresenta. Comprazo-me na lei de Deus segundo o homem que crê; mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros. Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? Graças sejam dadas a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor" (10). Eis o retrato da nossa condição pecadora congênita, que não nos faz necessariamente pecar. O bem que fazemos tem grande poder transformador da sociedade e preservação da natureza. O mal tem grande pode devastador. Nossos atos maus têm repercussão social mortal e nem sempre temos controle sobre as conseqüências sociais dos mesmos. A responsabilidade social de quem crê é grande. Cada ato nosso pode multiplicar o bem ou o mal no mundo. Mas, nada de pânico. "Se pecarmos, temos como advogado junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo. Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados. E não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo" (11). Esta é a nossa firme fé. Ela é o contraveneno eficaz contra o pecado do mundo e os pecados pessoais. O Autor e realizador da nossa fé é venceu o mundo dominado por Satanás. Unidos a ele pela fé, nós também o venceremos. "Coragem, eu venci o mundo. Vossa vitória sobre o mundo é vossa fé" (11)
Geraldo Barboza de Carvalho

Referências bíblicas:
(1) Gn 1,26-31; (2) Sl 8,5-6; (3) Lc 22,25-27; Jo 13,13; (3) Jr 12,4; (4) Rm 8,19-22; (5) Sb 11,24; (6) Ef 2,10; 2 Cor 3,5; Fl 2,13 (7) Lc 23,34; (8) Jo 6,63; (9) Cl 1,24; (10) Rm 7, 14-24; (11) 1 Jo 2,1-2; (12) Jo 16,33; 1Jo 5,4.