“Havia um país chamado Brasil, mas absolutamente não havia brasileiros”                                                                                                                                                        (SÜSSEKIND: 2006, p.21)

A partir do final do século XVIII, o mundo viu a Revolução Industrial começar na Inglaterra e iniciar um novo modo de produção nunca antes acontecido na história da humanidade. Viu, também, na França, o começo da derrocada do absolutismo e a disseminação de ideais racionalistas e iluministas. Essa “dupla revolução”, como denomina Eric Hobsbawm, construiu o alicerce para que, no século XIX, grande parte do mundo experimentasse profundas transformações sociais, políticas, econômicas, artísticas e literárias, “[...] a partir de uma base europeia, o melhor, franco-britânica. ” (HOBSBAWM, 2005, p. 13).

Quando eclodiu a Revolução Francesa, em 1789, não só o rei Luís XVI (1754-1793) e Maria Antonieta (1755-1793) teriam seus destinos mudados, impulsionados pela excitação que o movimento causou em toda Europa, também os artistas de todo o continente convergiriam para sua produção uma carga de sentido nunca vista antes, porque morrem-se os reis, elevam-se os homens.

Colocando-se o homem como centro da sua própria vida, a produção artística mudaria daquele momento em diante; a primavera do ser, aquilo que ele sente, não mais se esconderia atrás das sombras de reis, mas desabrocharia no universo pessoal, na arte que explode no espírito de cada um de nós, filha do amor, filha da tristeza, enamorada da liberdade, apaixonada pelos prazeres, tal qual uma reflexão tardia de Epicuro (341 a.C – 306 a.C). Projetava-se uma réstia de luz, de inocência; uma réstia de treva ou a pálida languidez às quais, alternada e fatidicamente, a existência  está sujeita, mas, viva a vida! Viva a enfadonha morte! Bebamos com aquele lorde inglês boêmio e triste, que escreveu, no poema “Uma taça feita de crânio”: “Beba inda quanto é tempo, uma outra raça/ Quando tu e os teus fordes nos fossos/ Pode do abraço livrar-te da terra / E ébria folgando profanar os teus ossos” (ALVES apud BYRON: 1913, p.77).

Do passado, ilumina-se o herói, a coragem, o amor, o fausto de cada um de nós por pertencer a um país, a origem (re)nasce sublime, mitificada, de todas essas direções, para seguir outras diversas, nasce um novo mundo.

Pelo final do século XVIII e até meados do XIX, o mundo pode ver ascender na Europa, um movimento cultural e artístico que ajudaria a construir a noção de identidade nacional que temperaria também os mais importantes acontecimentos no Novo Mundo. Um pouco depois, esse movimento pintaria uma aura heroica nas novelas de cavalaria medievais, valorizaria e daria uma face mítica ao amor e a todos os outros sentimentos naturais do ser humano, escancararia a sede pelo prazer (igualmente natural do ser humano), na contramão de um dos seus antecessores, o barroco, o medo do pecado praticamente se extinguiu em função do próprio ser. Essas eram as características fundamentais do romantismo.

Na literatura, podemos ver a influência que grandes obras como: Fausto, Os Sofrimentos do Jovem Werther e Egmont, de Goethe (1749-1832); os volumes de poemas líricos, de William Wordsworth (1770-1850); Byron’s Poetical Works, de Lord Byron (1788-1824); Os Miseráveis e Notre Dame de Paris, de Victor Hugo (1802-1885) e Conde de Monte Cristo e a Dama das Camélias, de Alexandre Dumas (1802-1870); que teriam, em seu tempo, invocado a idealizada liberdade, os sentimentos e o heroísmo.

Nas artes plásticas, pode-se dizer que o marco inicial (mesmo ressalvando-se aqui a dificuldade em precisar um marco inicial de um movimento cultural) foi a tela O pesadelo (1781) de Henry Fuseli (1741-1825), no qual se vê um monstro terrível em cima do corpo sonolento de uma mulher. A partir deste momento, a pintura romântica iria ser identificada com o grande esforço e estudo nas representações das paisagens; um diálogo quase dependente da literatura, pois a mesma evocava os temas do passado; a pouca presença de representações alegóricas (em função de um ideal de simplicidade). Ainda sobre a temática, abordava-se o tema das grandes guerras, como forma de engrandecer a nação e/ou as origens da mesma. Outras grandes obras, essencialmente românticas, foram: Três de maio de 1808 (1814) de Goya (1746-1828), Liberdade guiando o povo (1830) de Eugéne Delacroix (1798-1863), O viandante sobre um mar de nuvens (1818) de Caspar David Friedrich (1774-1840).

Na escultura romântica, via-se a menor incidência do ideal do romantismo, ela, simplesmente, utilizava-se dos moldes clássicos de estatutária para representar temas semelhantes aos da literatura, uma das principais obras são: Ugolino e seus filhos (1867) e A Dança (1869), ambas de Jean-Baptiste Carpeaux (1827-1875).

Na arquitetura, o romantismo iria se expressar principalmente pela busca de regresso aos padrões estéticos do passado: a criação de “jardins ingleses” (que levavam esse nome dada a disciplina com que eram elaborados) e os estilos: neo gótico, como, por exemplo, na Igreja Votiva em Viena, na Áustria, que foi construída em 1853, neo renascentista, como o Museu Nacional de Belas Artes, da Suécia, construído em 1866, neo manuelino, como o Palácio Real do Bucaço, em Portugal, construído de 1888 até 1907, entre outros.

Na música romântica, que ocorreria de diferentes formas nos países europeus, podemos dar o exemplo de grandes compositores como Chopin (1810-1849), Richard Wagner (1813-1883), Franz Schubert (1797-1828), entre outros.

A perspectiva adotada aqui, é, a partir do conceito de sujeito do Iluminismo, fornecido por Stuart Hall em seu livro “Identidade Cultural na Pós Modernidade” nortear a compreensão dos diferentes ângulos observados nas sociedades europeias:

O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo "centro" consistia num núcleo interior, que pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo — contínuo e "idêntico" a ele — ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa (HALL: 2006, p.2)

Deste modo, o sujeito europeu contemporâneo à época do Iluminismo buscou a partir da razão, centrar a si mesmo em si mesmo, o que influenciaria o Brasil passado algum tempo.

1.1 As linguagens artísticas e a construção do Estado-Nação: escrevendo, pintando e esculpindo uma identidade brasileira.

A chegada do sujeito iluminista no Brasil viria em conjunto com D. João VI e os nobres portugueses que fugiam da tomada de Portugal por Napoleão, e, após 54 dias de viagem iriam aportar no Rio de Janeiro.

Sendo impedido de regressar à Europa, D. João VI iniciou uma série de transformações na paisagem e no comportamento da colônia, com o intuito de fazer do Brasil, especialmente o Rio de Janeiro, lugares próprios para a recepção e acomodação de um rei e sua corte.

Dentre os feitos do rei luso, podemos destacar a criação do Banco do Brasil, aberturas dos portos às nações amigas (1808), a inauguração da Biblioteca Real, da Academia Militar, mas principalmente a convocação de um grupo de artistas, ora fugitivos da perseguição napoleônica, ora por vontade própria, através de Lebreton, esses artistas eram: Grandjean de Montigny, Nicolas Antoine Taunay, August Marie Taunay, Charles Pradier, François Ovide, entre outros (CAMPOFIORITO: 1983, p.21).

A Missão Artística Francesa (1816) teve o objetivo de retratar o dia a dia da colônia, da corte, bem como também, através da criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios (1816) incentivar a produção de artistas no próprio território servindo ao Estado.

Entretanto a instituição funcionaria precariamente, passando por três decretos (1816, 1820 e 1826) até de fato cumprir a função pela qual foi designada, virando no ano do último decreto Academia de Belas Artes, com o Brasil já independente politicamente de Portugal.

Nesta época o Brasil começaria a sofrer influência do Romantismo, movimento que ocorrera anteriormente no Velho Continente, mas manteve os mesmos ideais do movimento europeu. Dois fatos ajudam a demarcar o que se colocou como sendo o início dessa escola no Brasil, ambos ligados a Gonçalves de Magalhães: o primeiro foi a publicação Suspiros Poéticos e Saudades (1836) e, o segundo, foi o começo da revista Nictheroy - Revista Braziliense, cujo primeiro número saiu no mesmo ano, que serviria como forma de contato entre os artistas da época e como instrumento de fomentação da arte romântica. A partir deste momento, passamos a vivenciar, no Brasil, o romantismo. Este movimento se dividiria em três fases, que ficaram conhecidas como: Indianismo, Mal do século e Condoreira.

Na primeira fase, se buscou valorizar o índio idealizado, ou seja, construído com os moldes europeus, que eram tirados do herói das novelas de cavalaria. Os principais escritores desse momento foram: José de Alencar, Gonçalves Dias e Gonçalves Magalhães. Na segunda, sob a influência de Lord Byron e Alfred Musset, Álvares de Azevedo, Fagundes Varella e Junqueira Freire tornaram-se expoentes desta fase, que ficou conhecida como “Mal do século”, pois seriam correntes temas como tristeza, idealização do amor, morte, entre outros. Na terceira e última, sob a influência de Victor Hugo, Castro Alves, Tobias Barreto e Sousândrade (pelo conteúdo de seus poemas) seriam os ícones da geração condoreira, que buscava explanar o caráter libertário e social de suas obras.

Nas artes plásticas, nomes como Victor Meirelles, Pedro Peres, Augusto Duarte executariam grandes obras na Academia Imperial de Belas Artes, como Primeira Missa no Brasil (1860) e A Elevação da Cruz em Porto Seguro (1879), esse tema especificamente será pormenorizado ao longo deste capítulo.

Na literatura ou nas artes plásticas brasileiras da época do Segundo Reinado, as representações buscavam a criação de ícones para uma construção de identidade idealizada. Nobilitou-se o índio ao nível de herói, contudo, os artistas invocaram o passado (quando os conquistadores chegaram ao Brasil) e a partir do mesmo idealizaram o “bom selvagem” de Rousseau para alimentar a representação do país que visava à ascensão de ser considerado “civilizado”.

Assim, buscamos observar o olhar dado para as representações de nativas, musas de obras da literatura neoclássica e do romantismo: Lindoia, de O Uraguai, de Brasílio da Gama; Paraguaçu e Moema de Caramuru, de Santa Rita Durão; Iracema e Marabá como expoentes personificados da primeira fase do romantismo brasileiro, respectivamente de José de Alencar e Gonçalves Dias.

         Comparando, o século XIX na Europa com o do Brasil, vemos a ascensão de uma classe que não tinha título de nobreza, entretanto, tinham um padrão de vida elevado em relação ao proletariado de novos trabalhadores com novas preferências, seja em ambientes urbanos ou rurais; a nobreza, em consequência disso, perde gradativamente os privilégios, pois se necessitava do dinheiro dos novos ricos para a manutenção da própria sociedade. No Brasil, desde a vinda da Família Real, os ricos proprietários de terra e de escravos buscavam nobilitarem-se comprando títulos ou prestando favores à realeza.

          Nesse sentido, a troca de favores entre esses grupos sociais, fomentou a mudança tecnológica que, por sua vez, alimentava essa relação e fez do século XIX o alicerce para grandes conquistas científicas que iriam porvir.

Na segunda metade do século XIX, a sociedade brasileira viu-se mudando a percepção de si mesma e do mundo, influenciada pelos eventos que ocorreram em diversas áreas da sociedade. A criação da primeira Constituição (1824), símbolo da idealizada nação, a gradual extinção do trabalho escravo, a ascensão do comércio de café e de outras culturas fizeram as cidades crescerem – mesmo que não de uma forma justa, com direitos iguais para todos os segmentos que a formavam - e, nelas, começar um esboço incipiente de produção industrial.

Após a aprovação da Lei Eusébio de Queiroz (1850), que foi o marco inicial da extinção gradual do comércio negreiro no Brasil, (mesmo tendo sido ignorada por muito tempo) os investidores buscaram aplicar o seu dinheiro, que outrora fomentava a vinda de negros cativos para o Brasil, agora na produção industrial com mão de obra assalariada e, nesse compasso, foram instaladas diversas fábricas de chapéus, sabão, tecidos, bebidas alcoólicas, entre outros. E, para propiciar essa nova onda econômica no país, foram inaugurados quatorze bancos, diversas companhias de navegação comercial a vapor, empresas de seguro, estradas, estradas de ferro, empresas de transporte urbano, entre outras.

Centrando-se nas províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, proporcionou, nessas regiões do país, a redução da dependência do latifúndio, provocando ao mesmo também, a diminuição da mão de obra, pois a mesma se dirigia aos centros urbanos para a nova atividade econômica.  

No entanto, coube ao romantismo brasileiro, uma importante tarefa de caráter político, histórico, social e cultural, dentro do interesse da monarquia na época: identificar as raízes brasileiras para cultuar as mesmas – de forma idealizada -, o que, na época, representava um começo do projeto indianista e nacionalista do Império. Sobre o início da literatura essencialmente brasileira, acerca desse tema, Süssekind diz que:

“Qual é a origem da literatura brasileira? ”, pergunta literalmente Gonçalves de Magalhães, em 1836, no seu “Discurso sobre a história da literatura do Brasil”. E, mesmo ressaltando a ausência de um “caráter nacional pronunciado que a distinga da portuguesa”, sugere o século XVIII como marco de uma abertura verdadeira da “carreira literária para o Brasil”. Mais severo, José de Alencar, nas suas críticas à “Confederação dos tamoios” do próprio Magalhães, vinte anos depois, sugeria que tal fundação ainda não se completara e lamentava, dirigindo-se a um misto de interlocutor e utopia nacional: “Brasil, minha pátria, por que com tantas riquezas que possuis em teu seio, não dás ao gênio de um dos teus filhos todo o reflexo de tua luz e de tua beleza? ” (SÜSSEKIND: 2006, p.16)

Desta forma, Flora Süssekind, ao citar a preocupação de dois importantes escritores da época do romantismo, Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, consegue salientar a preocupação romântica de achar uma raiz, uma origem, para criar uma memória de nação, mas não puramente como um retrato histórico e sim com a face heroica/mítica característica desse movimento, que buscava, também, contrapor-se ao neoclassicismo/arcadismo. Ainda sobre o papel dos escritores românticos, Süssekind, nos diz que:

A partir do nada: é, pois, como “eternos Adãos” que parecem se definir escritores e estudiosos no Romantismo brasileiro. Caberia a eles nomear, classificar o que diferenciaria a sua literatura nacional de outras. E estabelecido o marco inaugural, o destino da produção cultural que a ele se seguisse seria repeti-lo sem cessar apenas “desenvolvendo” o que aí já se achasse “em embrião”. (SÜSSEKIND: 2006, p.17)

Tornava-se, então, a partir deste momento, essencial o descobrimento de um marco inaugural para dirigir a produção cultural do país no mesmo sentido, a partir desse “embrião” literário.

A valorização do índio brasileiro sob uma perspectiva europeizada é o que se convencionou chamar de indianismo, que Alcmeno Bastos (2011, p.14) define como “[...] A representação ficcional literária do índio brasileiro [...]”, difere-se a partir desse momento, da literatura indigenista que Mariátegui (FIGUEIREDO (org); CARRIZO apud MARIÁTEGUI: 2012, p. 219) definiria como “[...] É ainda uma literatura de mestiços. Por isso se deve chamar indigenista e não indígena [...]” assim o indigenismo se caracterizaria por uma visão crítica dos costumes indígenas, a literatura indígena pela visão do próprio sobre si mesmo e sua sociedade, e finalmente, o indianismo seria a idealização a partir da figura mítica do índio, o estilo deu-se através de diversos movimentos literários, mudando de corpo e forma justamente por este motivo.

Em 1559, o francês Pierre de Ronsard (1524-1585) lança Ode contre Fortune inspirado em um índio brasileiro; mais tarde, Lope de Vega (1562-1635) criaria uma personagem chamada Brasília, em sua publicação El Brasil restituído (1625); o jesuíta José de Anchieta (1534-1597) viria ao Brasil para catequizar os nativos e também publicaria seu livro com tal temática, Fala aos índios pelo padre José de Anchieta, originalmente em tupi.

O primeiro texto escrito por um brasileiro sobre o tema seria publicado em 1769, por Basílio da Gama (1741- 1795): o poema épico intitulado O Uraguai. Mais tarde, Santa Rita Durão (1722-1784) publicaria O Caramuru, seguido, anos depois, por Souza Caldas (1762-1814) com o livro Ode ao Homem Selvagem.

No século XIX, esforços do Império centraram seu olhar na busca de um autêntico representante brasileiro. Mesmo com a independência política, em 1822, o negro ainda era escravizado e isso lhe tirava o caráter de cidadão; já o branco, mesmo depois de anos de colonização, ainda era visto como puramente europeu e, então, o índio se tornou a representação da essência de brasilidade necessária para a projeção de nação idealizada que se desejava ter.

Ao adotar a temática indianista, o romantismo brasileiro se tornou peça fundamental no projeto monárquico da época (embora seja difícil definir com precisão qual surgiu primeiro) e invocando o mito do descobrimento e a valorização das raízes do “povo brasileiro” (que ainda não se reconhecia como tal), as artes românticas brasileiras criaram um caminho para a construção de uma identidade nacional, que serviria ao Estado, para fortalecer-se sobre os seus súditos e ao próprio romantismo brasileiro para exaltar, à sua maneira, o que o europeu havia exaltado/exaltava: o nacionalismo.

Dentre as várias noções e esboços do que se compreende como Nação, podemos adotar aqui, a que nos fornece Samuel Pinheiro Guimarães:

Nação, em seu sentido político moderno, é uma comunidade de indivíduos vinculados social e economicamente, e que compartilham certo território, que reconhecem a existência de um passado comum, ainda que divirjam sobre aspectos desse passado; que têm uma visão de futuro em comum; e que acreditam que esse futuro será melhor se se mantiverem unidos do que se separarem, ainda que alguns aspirem modificar a organização social da nação e seu sistema político, o Estado. (GUIMARÃES: v.22, n.62, p.145, 2008)

Sabe-se que a identidade nacional, citada por Samuel Pinheiro, é de vital importância para a ascensão de um Estado, pois ela confere um sentimento grupal a todo o povo, que ajuda em momentos de crise e de glória, aumentando, com isso, a pujança daquele Estado e a facilidade para governá-lo.

A identidade nacional demanda uma invenção de tradições, que, paradoxalmente, busca o passado, entretanto lê o mesmo de uma maneira ideal para uma construção idealizada de Estado–Nação. Como Hobsbawn nos fala:

Consideramos que a invenção de tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição [...] espera-se que ela ocorra com mais frequência (a invenção de tradições): quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para os quais as “velhas” tradições foram feitas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis; quando as velhas tradições, juntamente com seus promotores e divulgadores institucionais, dão mostras de haver perdido grande parte da capacidade de adaptação e flexibilidade; ou quando são eliminadas de outras formas. (HOBSBAWN: 2014, p.11-12)  (PARENTESES NOSSOS)

Se a partir do que nos diz Eric Hobsbawn analisarmos o caso do Brasil, veremos que a invenção de tradições (com o propósito de alimentar o nacionalismo e o Estado–Nação) foi crescente quando as instituições (ou o legado) portuguesas deixaram de ser válidas para a Nação que o Brasil pretendia ser, tanto por não pertencerem, de fato, ao país, como pela falta de flexibilidade em admitir-se a cultura lusa como brasileira e também pela eliminação política dos laços entre as mesmas.

Quase trezentos anos de colonialismo e de exploração por parte de Portugal, fizeram o Brasil ter um padrão socioeconômico diferente em relação a outros países. Com o desenvolvimento que despontou no país a partir de 1808, sobre essa repentina ascensão cultural, social, econômica e política do Brasil, Salles nos diz que “O Brasil, por ser um país novo, não possuía esta mesma história longínqua no tempo, assim, a construção de mitos e tradições estava sendo consolidada” (SALLES: 1996, p. 30-32). Um pouco mais tarde, com a independência, o Brasil, agora Império Brasileiro, não teve tempo hábil de formar-se ou projetar-se como nação nem para o mundo nem para si mesmo. Malerba nos diz que: “Buscou-se alcançar este objetivo por vias políticas, mas, sobretudo, através da construção de uma identidade nacional” (MALERBA: 2007, p. 82).

Esta identidade nacional, como citado anteriormente, seria fomentada principalmente pelo romantismo e, vê-se, então, a principal contribuição da arte romântica para a posterioridade, da qual Gonçalves Dias seria o principal expoente. Nesse momento, o próprio D. Pedro II frequentava as reuniões quinzenais do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico do Brasil), empenhado no processo de criação dessa memória coletiva. Essa memória coletiva iria ajudar a forjar o Estado-Nação programado pelo imperador, através do nacionalismo, que, segundo nos escreve Anderson:

[...] poucas coisas mostraram (se mostram) mais adequadas a essa finalidade da ideia de nação. Admite-se normalmente que os estados nação são “novos” e “históricos”, ao passo que as nações a que eles dão expressão política sempre assomam de um passado imemorial, e, ainda mais importante, seguem rumo a um futuro ilimitado. É a magia do nacionalismo que converte o acaso em destino [...] (ANDERSON: 2008, p. 38-39)

Nesse sentido, o nacionalismo serve como uma fé no Estado, que acredita nesse “futuro ilimitado” (ANDERSON: 2008, p.39), apresentando neutralidade ou pouca influência religiosa, como segue falando Anderson: “É claro que não estou afirmando que o surgimento do nacionalismo no final do século XVIII foi “produzido” pelo desgaste das convicções religiosas [...] Também não estou sugerindo que o nacionalismo tenha, de alguma forma, “substituído” historicamente a religião” (ANDERSON: 2008, p.39), desta forma, o nacionalismo coexiste com a religião com o mesmo fervor de devoção, entretanto, abrange camadas (ou pretende abranger) diversas da sociedade que, independentemente de quaisquer ideologias que o adotam, trabalha para as circunstâncias socioculturais que o originaram, bem como também pode trabalhar contra elas mesmas, como o romantismo tentava extinguir o passado do Brasil Colônia e idealizar um passado índio, mas que comportava-se seguindo os modos europeus (“civilizados”). Desta forma, o Estado-Nação alimenta o nacionalismo para projetar-se com uma imagem louvável para os demais, mesmo que isso lhe custe a veracidade ou a distorção dos fatos que pouco a pouco o compuseram.

Neste ano de 1860, Victor Meirelles de Lima termina uma encomenda do imperador D. Pedro II, a obra Primeira Missa no Brasil, além de cronologicamente ser a primeira representação do evento ocorrido em 1500, ela também foi pioneira, pois foi a primeira obra a representar o indígena nas artes visuais. Meirelles fundamentou suas representações a partir do estudo de diversos documentos da época, como a Carta de Pero Vaz de Caminha. Mesmo sendo ficcional, Primeira Missa no Brasil representa o florescer, se tornando um texto visual, ela dá luz ao nascer de uma identidade visual do Brasil.

Antes mesmo de ser executada, a obra já nasce como símbolo da história oficial do país: através dela, o Brasil contava ao mundo de onde havia surgido e em que direção pretendia guiar-se no futuro. Ela eleva a si mesma como símbolo nacionalista que remete ao tempo em que foi executada. Deste modo, para Nascimento Junior:

É ela mesma o resultado do encontro de ideias e culturas diferentes. A paisagem é idealizada, a cena é idealizada, mas tudo é apresentado como se fosse a verdade histórica, como se a pintura fosse uma revelação divina, e por isso está ali no Museu Nacional de Belas Artes para dar exemplo, para aconselhar, para narrar a nação, para ensinar a amar o alto e o trono, em nome da cruz, de Deus e de sua majestade e, consequentemente, mostra um olhar sobre o novo mundo recém “descoberto” e em processo de organização. (NASCIMENTO JUNIOR, 2008, p. 4)

 

Então, podemos evidenciar o caráter quase universal de conhecimento da obra, quando nos referimos ao universo da sociedade brasileira. Os ideais de Meirelles, a procura de um mito fundador, a construção de uma identidade idealizada brasileira, ainda hoje habitam o nosso imaginário, incontáveis estudantes através de várias gerações acostumaram-se a vê-la nos livros e nos cadernos escolares e universitários.

O IHGB fomentou a produção cultural inclinada para a construção de uma idealizada identidade nacional através da literatura e das artes plásticas e também mesclou o academicismo com o imaginário, tendo, como produto, um mito representado como real. A obra de Meirelles consegue transferir “ao espectador um sabor romântico, uma coloração espontânea, enfim, mais massa do que linhas, mais vibração do que contornos” (KELLY: 1979, p. 25).

A construção idealizada de uma identidade nacional, no Brasil, buscava unir a população como um todo, para que o país recém-nascido não vivesse o mesmo caos que a Europa e grande parte da América Latina sofriam naquela época. E, para alcançar tal objetivo, buscou-se, através da literatura, das artes plásticas e diversas outras artes, imprimir o caráter de nação ao Brasil, com memória presente e um promissor futuro.

A representação de Meirelles regressa ao passado, quando, em 1500, foi celebrada a primeira missa em território brasileiro e apresenta um país católico, de natureza transcendental, mas também, por outro lado, sugere um processo de colonização com um caráter cruzadístico, mas pacífico, em que os nativos e os portugueses conviviam sem tentar sobrepor-se. Nesse sentido, o Brasil idealizado era, acima de quaisquer aspectos, magnânimo, homogêneo, cristão (católico) e harmonioso.

Ainda no intuito de uma construção idealizada identitária do Brasil, como citado anteriormente, D. Pedro II fomentou a produção cultural do país, Alegoria ao Império Brasileiro (1872) se tornaria uma solenidade dessa intenção, objetivaria fomentar uma imagem de um Brasil Império autêntico e poderoso.

A obra analisada nesta parte do capítulo I nos chama a trilhar os diversos entendimentos que se tem sobre “alegoria”. A origem da palavra provém do grego “allós” (outro) e “agourein” (falar), sendo compreendida como “outra forma de falar”. É uma figura de linguagem como a parábola, a fábula ou a metáfora, sendo esta muito confundida com alegoria, no que se refere ao conceito de ambas, no entanto, a diferença reside no fato que a alegoria é uma acumulação de metáforas com o objetivo de elaborar a expressão de uma ideia de forma não direta, ou não óbvia, podendo-se concentrar, na alegoria, a emotividade e/ou o estilo próprio de composição artística de um artista específico ou do contexto em que se encontra.

Para as artes visuais, alegoria significa algo como a não necessidade de uma supressão de conceitos, entretanto, mantendo-se a preservação do sentido das unidades imagéticas transmitindo uma imagem pujante e coerente.

Amplamente utilizada em todas as culturas ao redor do mundo, a alegoria pode ser facilmente identificada quando a expressão artística carrega uma mensagem a ser passada que busca nortear um padrão moral. Desde a Idade Antiga podemos ver gregos e romanos utilizando-se desse artifício para compor o vasto legado histórico, social e filosófico que nos foi deixado, dentre as grandes personalidades daquelas penínsulas, podemos destacar o uso da alegoria no “Mito da Caverna”, na República de Platão (Livro VII); a história do estômago e seus membros no discurso de Menenius Agrippa e muitas outras, entre as quais, as Metamorfoses, de Ovídio.   

 Podemos identificá-la, também, diversas vezes nas obras de tradição judaica e, posteriormente, cristã, como, por exemplo, na Bíblia. A alegoria perpassa de tal forma a tradição cultural ocidental, que Hansen, ao se referir ao livro sagrado cristão, nos diz:

[...] “dois livros” escritos por Deus. Um é o livro visível, a Natureza; o outro, quando Ele Se dedica às línguas e escreve em hebraico, grego e latim, é o das Escrituras. Cada um deles –Natureza e Bíblia- tem um dentro e um fora havendo portando, um sentindo literal manifesto e um sentindo espiritual cifrado [...] os teólogos leram as marcas de Deus no mundo segundo três graus de proximidade: a sombra, figuração distante e confusa de Deus; o vestígio, figuração distante, mas distinta; e a imagem, figuração próxima e distinta. (FREITAS apud HANSEN, v.2, n.3, p.256, jul./dez., 2014 GRIFO DO AUTOR)

 

A vivência entre os dois livros – o visível e o invisível - no Ocidente, dentro de viagens de sentimentos, poder e sonhos, proporcionou, ao longo da história, mudanças do uso da alegoria que inferiram maciçamente na produção de expressões artísticas, quer seja na literatura, nas artes plásticas ou outrem, podemos estabelecer comparações de alegoria entre as artes para compreender o seu peso nos diversos e adversos momentos da relação entre o homem e o reflexo de sua alma nas artes.

No romantismo, que predominou durante a primeira metade do século XIX, o uso da alegoria seguiu a tendência árcade (quanto ao pouco uso), tanto que Goethe – grande referencial do romantismo europeu - nos diria, referindo-se à alegoria, que ela era “artificial, mecânica, árida e fria” (FREITAS apud GOETHE, v.2, n.3, p.252, jul./dez., 2014), o romantismo prezava os sentimentos e o heroísmo que se inclinavam para a pessoa amada e para a nação.

Em uma rara exceção desta ausência de temas alegóricos, se encaixa a obra analisada nesta subseção do capítulo I, Alegoria do Império Brasileiro (1872) de Chaves Pinheiro, que carrega o caráter alegórico, pois o artista adicionou elementos típicos da indumentária monárquica (cetro, escudo e manto) ao personagem dando, desta forma, um engrandecimento à imagem final. Os grandes objetivos da escultura são: idealizar o índio como grande representante e herói da nação e, a partir deste pressuposto, demonstrar a pujança e a força do Império Brasileiro. O termo “alegoria” representa a intenção de dar outro olhar ao Império. 

Tanto na sua mais importante obra (Estátua Equestre de D. Pedro II) quanto em Alegoria do Império Brasileiro, vemos a intenção de Pinheiro em demonstrar a força e o poder do imperador/Império. A antropóloga Lilia Schwarcz a considera “o documento mais emblemático de sua geração ao embutir no título da obra a intenção do projeto [...]” 3 (SCHWARCZ, 1998, p.147)

O diferencial na ovação do império na representação do indígena, é que esta celebra a mais profunda origem do povo brasileiro, vestida com tanga e cocar étnicos e travestida com elementos da indumentária monárquica que tanto lhe conferem poder e força, como conferem, ao Império, a pujança e a força do modelo do índio. Sobre essa obra, Piccoli nos diz que:

Merece atenção especial a escultura Alegoria do Império Brasileiro (1872), de Chaves Pinheiro. O corpo do herói grego – adequado, em se tratando de uma obra de academia - traz um cocar à guisa de coroa, uma tanga de penas e os pés descalços como a indicar um homem da selva que domina a natureza. Ao invés de arco e flecha, no entanto, carrega o cetro dos Bragança, um escudo decorado com o brasão imperial e um manto semelhante ao do imperador sobre os ombros. Essa imagem do bom selvagem ornado com os símbolos da monarquia sugere o nascimento de uma nova civilização, nobre, por descender não apenas das mais importantes casas europeias, mas também de uma estirpe de valentes guerreiros (PICCOLI: 2010, p. 3).      

                   A temática indianista, presente nessa obra de Chaves Pinheiro, confere ao índio retratado um porte viril e corajoso, aos moldes da escultura clássica e da estatuária neoclássica. O caráter cerimonial da obra, sem movimento, talvez muito se dê pela influência do mestre de Pinheiro, Marc Ferrez.

                 A biografia de Chaves Pinheiro demonstra a adversidade que se encontrava na época para o desenvolvimento da arte sem o patrocínio do Império. Por outro lado, o laço estreito com a Academia proporcionava uma evolução técnica da arte e permitia aos artistas trocar experiências e, atualmente, muito nos dizem sobre aquela época, por primariamente celebrarem os fatos históricos para o período.

A temática da obra ainda nos leva a crer na inclinação pessoal do artista para o romantismo, para a representação idealizada de heroísmos em função do nacionalismo.  O conceito de “alegoria” se encaixa na escultura de Pinheiro por perpassar a obra de um sentido político, nacionalista e indianista, acumulando as metáforas e engrandecendo-se apoiada nesses três aspectos marcantes do século XIX.

Pedro Perez, imaginando os antecedentes do episódio da Primeira Missa, executou, em 1879, A Elevação da Cruz em Porto Seguro, em que ele segue a ideia de Meirelles de uma colonização pacífica que acreditava na missão divina de si mesma e que motiva a reação não violenta dos índios quando da chegada da cristandade naquela terra.

Perez dialoga com a obra de Meirelles quando, além da temática e do teor da representação, ele adota um aspecto cromático na organização compositiva. Em ambas, o grupo principal do ato aparece sob uma luz, uma região mais clara, cercados por jesuítas e nativos. No primeiro plano, uma árvore solitária emoldura um dos lados da tela e opõe-se também à densidade da mata no outro extremo. Vê-se o uso de coqueiros em ambas para a cena ser identificada como ocorrida genuinamente em tempos do novo mundo.

Todas essas obras representam a formação de uma memória coletiva brasileira, servindo à história o conjunto de intenções imperiais (governamentais) e do romantismo que queriam projetar no país. Mas a construção dessa memória coletiva também necessitava de personagens heroicizados, únicos, nobres de coração, sem deixar de serem representados como nativos, mas com amores, misticismo, com sofrimentos, carregando em si e dando à luz pedaços da identidade nacional idealizada.

Notas:

1. Capítulo I, da Dissertação de Mestrado, do Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas, linha de pesquisa: Gênero, Etnia e Identidade, da Universidade do Grande Rio Professor José de Souza Herdy - UNIGRANRIO, defendida em 2015 e publicado pela  primeira vez.. Título: Cansada(s) de viver: do mito romântico das heroínas nativas à iconografia brasileira oitocentista.

2. Orientadora: Professora Doutora Vera Lúcia Teixeira Kauss - Profa. Adjunto I - UNIGRANRIO

3. Diagramação, layout, formatação e revisão ortográfica: Paulo José Viana de Alencar - Graduando do IACS - UFF - Niterói - RJ

4.Dissertação com conceito A pela Banca Examinadora.

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³SCHWARCZ, Lilia. As barbas do imperador - D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras: 1998. p.147.