A CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA PELA AÇÃO PEDAGÓGICA

 

                                                                                                                      Arnaldo Nogaro[1]

                                                                                                                         Ivania Nogaro[2]

 

RESUMO

O texto que segue é o resultado de uma reflexão que nasce após lermos o trabalho de pesquisa de um aluno de mestrado e sentir-nos atraídos a uma reflexão sobre a escola, o aluno, a ação pedagógica e outros componentes que constituem a realidade da educação de nosso país. O objetivo central do mesmo é encontrar elementos que nos permitam compreender em que medida o fazer cotidiano dos espaços escolares oportunizam, permitem, a construção da autonomia. Começamos por construir um entendimento sobre o que vem a ser autonomia, estendemo-nos no debate a respeito do papel do professor nesse processo e, num terceiro momento, queremos demonstrar que a autonomia se constitui nas relações, no coletivo, apresentando-se como uma alternativa de um fazer grupal que supera a posição egocêntrica da supremacia do sujeito isolado. Poderíamos afirmar que entre os vários e significativos papéis da escola, um deles e contribuir para que o aluno aprenda e desenvolva meios de autogerir-se e tornar-se co-responsável pela sua constituição como ser ontologicamente inacabado que vive a condição própria, de sua natureza mais íntima, de exercitar-se, experimentar-se enquanto se faz. Portanto, não há autonomia absoluta, ela é substrato para que cada um possa experimentar a condição de sujeito de si e do mundo que o rodeia, na teia de relações que se tecem no convívio dos homens.

 

Palavras-chave: Autonomia. Ação pedagógica. Escola.

 

ABSTRACT

 

THE CONSTRUCTION OF AUTONOMY THROUGH PEDAGOGICAL ACTIONS

 

This text is the result of a reflexion that raised after we have read the research work of a master student and we felt attracted to reflect about the school, the student, the pedagogical action, and other components that constitute the reality of education in our country. The central aim is to find elements that allow us to comprehend to what extent the daily activities create opportunities, or allow, the construction of autonomy. We start building an understanding about what autonomy is, then we debate about the role of the teacher in this process and, in a third moment, we want to demonstrate that autonomy is constituted on the relations, on the collective, being an alternative of a group performance that overcomes the egocentric position of supremacy of the isolated individual. We can declare that among the various and significant roles of the school, one of them is to contribute for the student to learn and to develop ways of self-administration, and to become co-responsible for his constitution as an ontologically unfinished being that lives his/her own condition, his more intimate nature, to exercise, to try while it has been done. Therefore, there is not an absolute autonomy, it is a substract so that each one can try the condition of an individual of himself and the world around him in the web of relations performed due to the living of mankind.

 

Key words: Autonomy. Pedagogical actions. School.

 

 

Sobre a compreensão de autonomia

 

            A sobrevivência da escola, como instituição que se preocupa com a aprendizagem e com geração e a transformação do conhecimento, está associada à sua capacidade de permanecer próxima dos problemas que estão ocorrendo na sociedade hodierna e da sua capacidade de responder com agilidade às interpelações que surgirem. As tensões vividas pela educação, neste contexto, remetem à discussão do grau de autonomia que a escola possui frente a estes processos e também a uma análise da possibilidade de uma ação autônoma por parte do professor. O esforço de nossa reflexão se dá no sentido de tratar da autonomia enquanto princípio a ser assumido pela escola e pelo professor. Hoje, até que onde podemos falar de uma escola autônoma? É possível falarmos de autonomia do professor? O trabalho da escola auxilia na construção da autonomia do aluno? Esta é uma das dicotomias vividas pela escola e pelo professor: como construir e construir-se como autônomo num contexto de dependência? É possível auxiliar na construção da autonomia de outros sujeitos? Como? Para Marchesi (2006), é preciso reconhecer que as dificuldades do sistema educacional não procedem apenas das exigências atuais e das mudanças sociais, mas, em grande parte, de suas próprias contradições que, sem dúvida, se tornam mais visíveis e, inclusive, se agravam no momento atual.

            O processo de mudança da sociedade atual projeta para a escola papéis um tanto que diferenciados daqueles desenvolvidos tradicionalmente; ela absorve a responsabilidade de responder a outras demandas, que vão além da tradicional transmissão dos valores e do conhecimento acumulados. Contribuir com o desenvolvimento social e afetivo, atender às diferenças individuais, dar sentido à aprendizagem, eis algumas de suas novas incumbências. Mas o que tudo isso tem a ver com a autonomia? Tem sentido debater sobre este tema? Esta questão não é “pacífica” em nossas escolas?

            Na origem grega, auto-nomia (lei própria), significa independência, auto determinação, direito de auto dirigir. Segundo Abbagnano (1968), autonomia é um termo introduzido por Kant para designar a independência da vontade em relação a todo desejo ou objeto de desejo e sua capacidade de determinar-se em conformidade com uma lei própria que é a da razão. Para Ferreira (1999), autonomia tem vários sentidos, entre os quais a faculdade de governar-se a si mesmo; direito de se reger por leis próprias; liberdade ou independência moral ou intelectual; condição pela qual o homem pretende poder escolher as leis que regem sua conduta. Para Dalbosco, a autonomia da escola,

[...] pensada num nível bem concreto, tem a ver com a constituição, em seu interior, de grupos orgânicos de discussão, de estudos e de pesquisa, que possam solidificar o caráter utópico e o potencial crítico que deve reinar na escola, sendo que essa potencialidade crítica deve ser conduzida com base numa independência responsável dela em relação ao seu ambiente externo. (2002, p. 7).

 

            Para Lück (2006), a questão da autonomia é complexa, dinâmica e envolve situações submetidas a controvérsias, críticas e restrições, apesar de ser considerada como uma necessidade para o desenvolvimento de qualquer ação humana. Na visão de Cassol, para que a autonomia aconteça algumas condições são necessárias, e dentre elas está a convicção de que “[...] só acontece na ação livre, plena de moral, como finalidade e necessidade do homem enquanto indivíduo.” (2006, p. 15). Em síntese, a autonomia é a maneira do homem conceber, mas também de transformar o mundo. É o resultado da interação do pensar e do agir humano.

 

Como um conceito complexo, a autonomia demanda um conjunto de fatores concomitantes, a fim de que seja caracterizada como um movimento dirigido para a tomada de decisão e assunção competente de responsabilidades pela escola e sua comunidade. (LÜCK, 2006, p. 102).

           

            Ela tem como princípio o atendimento da necessidade e orientação humana de liberdade e independência, que lhe garantem espaços e oportunidades para a iniciativa e a criatividade, que são impulsionadoras do desenvolvimento pessoal e organizacional.

 

A contribuição do trabalho do professor

           

            A ação pedagógica do professor se dá dentro de um contexto complexo e determinado por diversos componentes: estrutura organizacional da escola, aparato legal, valores sociais e culturais, estrutura curricular, desempenho de colegas professores, etc. Na percepção de Tardif (2005), a estrutura organizacional não é apenas uma realidade objetiva, um ambiente neutro dentro do qual seu trabalho é feito: ela constitui uma fonte de tensões e de dilemas próprios dessa profissão, tensões e dilemas que eles precisam resolver diariamente, para dar continuidade e realizar suas tarefas profissionais. Enfim, são vários fatores que devem ser levados em consideração para fazermos uma análise de como o professor age e de qual o grau de liberdade que possui para tomar decisões e desenvolver seu trabalho. Freire (1997), é enfático ao afirmar que ao pensar sobre o dever que tenho, como professor, de respeitar a dignidade do educando, sua autonomia, sua identidade em processo, devo pensar também, como já salientamos, em como ter uma prática em que aquele respeito, que sabemos dever ter ao educando, se realize em lugar de ser negado.

 

 

 

Aumentar o espaço para a autonomia das escolas e dos professores é lhes oferecer, e lhes exigir, uma maior responsabilidade. Reduzir esse espaço, ou não facilitar os meios para se mover dentro de seus limites, contribui para reduzir a responsabilidade individual e coletiva. (MARCHESI, 2006, p. 27).

 

            O exercício da responsabilidade por parte do professor é partilhado, pois o ato de educar não é isolado e lacônico, ao contrário, é comunitário, coletivo, uma atividade correlata, intersubjetiva. No pensar de Lück (2006), não existe autonomia quando não existe a capacidade de assumir responsabilidades, isto é, de responder por suas ações, de prestar contas de seus atos, de realizar seus compromissos e estar comprometido com eles, enfrentando reveses, dificuldades e desafios inerentes a esse desafio. Sempre educamos alguém, há um sujeito com o qual nos relacionamos, estabelecemos o diálogo, fazemos trocas. Portanto, a responsabilidade no ato educativo é uma co-responsabilidade, como ato de alguém para e com outro sujeito.

Autonomia pedagógica é superação da condição excludente das instituições de ensino, dos podres públicos e dos conceitos moldados há décadas pelas doutrinas positivo-liberais pondo-se a serviço do ser humano e concentrando-se na sua dignidade, na possibilidade que todos os seres humanos têm de construir-se, de corporificarem seus desejos, suas vontades, seus sonhos. Ansiedade pela realização pessoal, profissional e da coletividade. (CASSOL, 2006, p. 26).

           

            O professor instiga, provoca o aluno, mas em última instância é este que decide sobre seus atos e suas ações. “A tarefa do professor – portanto, sua responsabilidade – está em oferecer ao aluno, a cada aluno de sua sala de aula, a possibilidade real de aprender. Mas, em última instância, é o aluno que deve assumir a responsabilidade pela sua aprendizagem.” (MARCHESI, 2006, p. 27). Não se trata de um simples processo de repartir responsabilidades, como comumente é apresentado, mas de desdobrá-los, ampliando-as.

            A aprendizagem do aluno não é uma tarefa que se realiza de forma individual, no entanto, ela acontece, sobremaneira, com a interferência do professor. Para Brandão (2005), não se ensina, a não ser pela criação de um clima de reciprocidades vividas, antes de serem pensadas e ensinadas, que corresponda a esse valor. O clima de um cenário interativo e pedagógico criado e partilhado por meio de gestos e de práticas, mais do que de e com palavras. O professor organiza uma dinâmica para levar o aluno a pensar, a falar, a executar processos mentais cuja finalidade é modificar o comportamento anterior adotado pelo aluno. O discurso e a comunicação do professor interferem no jeito de ser e existir do aluno, que modificado, produz novas práticas sociais e grupais, é assim que afirmamos que alguém aprendeu. Para chegar a esse objetivo o professor lança mão de suas diferentes capacidades formativas e metodológicas, epistemológicas e pedagógicas, ou seja, ele se envolve como um todo para produzir uma reação à sua interpelação. A isto denominamos capacidade pedagógica do professor. A concretização ou não desta capacidade é a que diferencia o professor que obtém “resultados”, do que não consegue “resultados” junto aos alunos.

 

As atitudes e as expectativas de cada professor, a organização de suas aulas, a metodologia que utiliza e os critérios de avaliação e de valorização que emprega influem de forma direta nas emoções, no auto-conceito, na auto-estima, na identidade como aprendiz e na motivação dos alunos. (MARCHESI, 2006, p. 37).

 

            Mas há um questionamento que precisa ser feito: pode o aluno aprender sem a interferência do professor? Sim. O aluno pode aprender sem o auxílio do professor e isto é muito comum, no entanto, naquelas aprendizagens onde há um grau maior de complexidade torna-se importante e imprescindível o auxílio e a intervenção do professor. E poderíamos dizer que quanto maior é a dificuldade apresentada pelo aluno maior é a dependência e a necessidade do professor. Portanto, para aqueles alunos que são mais dependentes do mestre, torna-se crucial e imperioso depender dele para superar suas limitações e adquirir sua autonomia. Ou seja, poderíamos dizer que a dependência é a causa de sua própria superação. Quando a escola se propõe a trabalhar nesse sentido com seus alunos, a construção de sua autonomia, se constitui em processo por si só pedagógico. “[...] os alunos menos capazes, aqueles com limitadas habilidades para a aprendizagem, necessitam de um bom ensino, quer dizer, de professores que adaptem o ensino a suas possibilidades.” (MARCHESI, 2006, p. 41).  Mas é preciso que haja um reconhecimento desta dependência, mapeando-a com a finalidade de contorná-la e apontar soluções para deixá-la para trás.  Supomos para tanto um professor adequadamente formado capaz de perceber estes fenômenos e interferir positivamente em favor da resolução das situações problemáticas. Trata-se de uma postura do educador enquanto sujeito do processo, o que na visão de Tardif (2002), significa ser ator no sentido forte do termo, isto é, um sujeito que assume sua prática a partir dos significados que ele mesmo lhe dá, um sujeito que possui conhecimentos e um saber-fazer provenientes de sua própria atividade e a partir dos quais ele a estrutura e a orienta.

 

 

Autonomia como exercício coletivo

 

            O professor precisa ter bem presente qual é o seu papel e qual o grau de interferência que deve ter para não ferir a responsabilidade que é própria e intransferível do aluno neste processo de vencer suas próprias limitações. De acordo com Lück (2006), a autonomia, como todo processo social, está sujeita a naturais ambigüidades, contradições e conflitos que emergem da sua dinâmica com expressões específicas e peculiares em cada situação. Por isso podemos afirmar que este processo necessariamente precisa se constituir como dialético e eivado de contradições, para que as diferentes subjetividades possam manifestar-se. “Todo processo de maturação para a autonomia é conflituoso.” (CASSOL, 2006, p. 30). Caso contrário, o professor faz, determina, e o aluno executa, sem se dar conta de que não está agindo como sujeito e muito menos desenvolvendo potencialidades que o auxiliarão a caminhar por conta própria. Seus passos precisam ser incentivados, mas devem contar com seu desejo e vontade para prosseguir em frente.

A autonomia do professor em sala de aula, como qualidade deliberativa da relação educativa, se constrói na dialética entre as convicções pedagógicas e as possibilidades de realizá-las, de transformá-las nos eixos reais do transcurso e da relação de ensino. (CONTRERAS, 2002, p. 198).

           

            Observando o espaço escolar sob o ângulo que acabamos de expor, vamos perceber que ele é um ambiente híbrido e por vezes, antagônico, onde a dureza das regras contrasta com a criatividade e a flexibilidade dos professores ao desenvolverem suas tarefas com os alunos, o que dá à escola uma certa especificidade que a diferencia de outros espaços de convivência e trabalho. Na ótica de Tardif, transpondo-nos para a escola de hoje, tanto a autonomia quanto o controle burocrático constituem dimensões inerentes à organização do trabalho escolar e docente. “Ensinar é trabalhar num ambiente organizacional fortemente controlado, saturado de normas e regras, e, ao mesmo tempo, agir em função de uma autonomia importante e necessária para a realização dos objetivos da própria escola.” (2005, p. 100). A construção da autonomia vai depender da criatividade e da capacidade de agir nos meandros da burocracia e da maior ou menor ousadia em “transgredir” as normas e os controles que constituem a vida escolar. E isto é uma ação que parte do sujeito que deseja transpor os limites que o impedem de ser.

            Quando afirmamos que a autonomia se constrói a partir dos sujeitos, dos indivíduos não significa que supomos ou defendemos uma postura individualista, egocêntrica. O que precisamos definir é que a autonomia só se reconhece e se constitui como razão de ser nos sujeitos, são eles que agem dentro das instituições e na relação com seus pares. Para Dalbosco, ao pensarmos na autonomia não podemos fazê-lo como

 

[...] isolamento da escola em relação à sociedade e sua desresponsabilização em relação ao poder político-jurídico-administrativo, pois isso não só não é possível, como não seria aconselhável, uma vez que tal isolamento poderia conduzir as relações que se estabelecem no interior da escola para um dos dois seguintes extremos: ao anarquismo e ao autoritarismo. (2002, p. 7).

 

            A autonomia está relacionada com o desempenho do professor, com seu fazer, “saber fazer”, mas não como ato mecanicista, e sim como alguém que elabora, conduz, planeja, executa, como componentes necessários e dinâmicos do seu trabalho diário. Ele não , apenas, segue um planejamento de rotina, definido e estruturado, mas possui uma atitude criadora e criativa ao mesmo tempo que executa uma ação. Segundo Lück (2006), a autonomia é imprescindível para quem trabalha na educação, principalmente pela necessidade de tomar decisões rápidas exigidas pelas mudanças que ocorrem na sociedade e para que os professores sintam-se comprometidos com os avanços promovidos por essas mudanças. “Mas, acima de tudo, adotando-se uma perspectiva de cidadania e de responsabilidade social de todos, pelos destinos das organizações em que atuam e das quais são usuários.” (LÜCK, 2006, p. 63).

            O trabalho do professor está permeado pelas dimensões sócio-culturais. É um trabalho de interação permeado pela troca e pelas relações intersubjetivas. É uma ocupação socialmente reconhecida e com responsabilidades públicas. Estes elementos trazem toda uma significação específica que carrega de sentido o trabalho docente. Enquanto que outras profissões caracterizam-se pelo trabalho individualizado e até isolado das relações concretas do cotidiano, o professor experiência práticas permeadas pelas relações sociais e pelo império do coletivo. A perspicácia e a capacidade de compreender e sentir os objetivos e interesses que perpassam o coletivo onde o professor vive contribuem para o êxito de seu trabalho. Para Contreras, a autonomia se reveste do componente política na medida em que

 

 

[...] a autonomia profissional dos professores, entendida como processo progressivo de emancipação, não estaria desconectada da autonomia social, ou seja, das aspirações das comunidades sociais por criar seus próprios processos de participação e decisão nos assuntos que afetam suas vidas. (2002, p. 186).

           

            Dentro do componente político, falar em autonomia plena somente é possível a partir da ótica de quem quer impor um discurso, exercer a dominação, sobrepor-se aos demais. O discurso e as práticas políticas de libertação constroem-se a partir de uma noção de autonomia possível, porém não plena. No pensar de Cassol (2006), a autonomia é uma questão de coerência, de cidadania e de ética. Precisamos acreditar nela, difundi-la e aliar-se. Mais ainda, é preciso incorporá-la. Entendê-la como uma conquista. Este ponto de vista vem coincidir com o que pensa Freire (1997) ao afirmar que ensinar respeito à autonomia do aluno. “O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros.” (p.66).

            Não há como falarmos em autonomia sem nos remetermos às questões do profissionalismo, do cotidiano do professor, das suas relações e embates do dia-a-dia. Ela está diretamente referenciada a questões como: tempo do professor, condições de trabalho, material didático de apoio, incentivo da direção, salário, etc. “Ou seja, a autonomia no ensino é tanto um direito trabalhista como uma necessidade educativa.” (CONTRERAS, 2002, p. 195).

            Na ótica deste mesmo autor, é uma construção e não um requisito prévio que possuímos para a ação.

O importante dessa perspectiva é que autonomia não é exatamente uma condição que se possui como requisito prévio à ação. Entendida como qualidade na forma pela qual nos conduzimos, entendida circunstancialmente, a autonomia profissional é uma construção que fala tanto da forma pela qual se atua profissionalmente como dos modos desejáveis de relação social. É que a autonomia não é uma definição das características dos indivíduos, mas a maneira com que estes se constituem pela forma de se relacionarem. (2002, p. 197).

 

            Quando afirmamos que alguém possui autonomia ou é autônomo, imaginamos que este possua uma liberdade quase que absoluta para agir ou desenvolver determinada tarefa ou atividade. Associamos sua forma de ser à alguém que possui “poder” para assim proceder ou ser. Um sujeito capaz de mover diferentes obstáculos que se apresentam por suas potencialidades ou qualidades de uma determinada função que ocupa. Esta concepção “absoluta”, “idealista” de autonomia, quando na dimensão real e concreta das relações com o mundo e com e com as pessoas não se efetiva.

 

A autonomia não tem a ver com o inquebrantável das condições e com a ausência de inseguranças, mas com a oportunidade e o desejo de considerar tanto as convicções quanto às inseguranças em matéria de trabalho profissional, enfrentando-as e problematizando-as. Reconhecê-las, entendê-las e entender a nós mesmos entre elas não é possível sem outras perspectivas, sem outros colegas, sem outras pessoas. (CONTRERAS, 2002, p. 211).

           

            Autonomia absoluta não é possível, sempre que formos falar em autonomia temos que considerá-la relativa. De acordo com Cassol (2006), a autonomia não pode ser considerada absoluta, nem tampouco plena. Dessa forma estar-se-ia contradizendo a dialética presente da existência humana e, por conseguinte, nas suas relações e interações com o meio.

Não é possível plenificar o sujeito com um estágio de autonomia plena, nem permanente. O próprio fato de o indivíduo conquistar a condição de sujeito – condição que pela própria essência não deixará escapar jamais – se constitui em relativa autonomia. A firmar a absolutização da autonomia é, igualmente, negar as individualidades e processos que a constroem. Modo que colocaria a própria autonomia na condição de não reconhecimento e distanciamento do compromisso com a diversidade, com o reconhecimento da diferença. (p. 30-1).

           

            A autonomia enquanto atributo identificado com o indivíduo surge diante da necessidade que nós possuímos de defender-nos perante a ingerência de estranhos em nossas vidas. O direito de defender-nos, de preservar nossa identidade humana e profissional nos autoriza a tomar determinadas decisões, de nossa vontade, como mecanismos de proteção e de sobrevivência no seio do grupo. Para Cassol (2006), assumir a condição autônoma representa para o indivíduo tornar-se sujeito e co-responsável pelo caminhar solidário e frutuosos da mesma sociedade em que ele próprio, seus mestres e a escola estão inseridos. Indivíduo aqui entendido, também, como aluno, ser em formação, apto a construir-se coletivamente e aberto a esta possibilidade permanentemente epistemológica. 

Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. [...] A autonomia enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia d autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas de liberdade. (FREIRE, 1997, p. 121).

             

            Assim, a autonomia fica compreendida e se desenvolve num contexto de relações. Mas há um ponto nevrálgico de ser levado em consideração: ela ocorre nas relações, mas é primordialmente uma decisão dos sujeitos, isto a caracteriza como tal. Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir, a autonomia vai acontecendo pelas inúmeras decisões que vão sendo tomadas em nossa vida.

            Para Marchesi (2006), as mudanças mais significativas que se estão produzindo na sociedade, além de incidirem no trabalho dos professores, modificam as atitudes, a cultura, os estilos de aprendizagem e os comportamentos das novas gerações de alunos, o que nos faz pensar em como organizar os currículos, as tarefas escolares, a formação dos professores, enfim a vida nas escolas, diante deste quadro. Um olhar sobre as novas alternativas de formação docente que estão sendo criadas e que estão em plena atividade (cursos a distância, aligeirados, via satélite, etc), fazem com que nos questionemos sobre a real eficácia e conseqüência desses processos formativos no sentido de capacitar o professor para gerir, conduzir e interferir no quadro de mudanças percebido e vivido pelas novas gerações. Que profissional está sendo formado? Que referenciais teórico-práticos estão sendo incorporados que lhe permite agir com segurança perante estas transformações? Qual o grau de autonomia com que consegue agir? Que experiências são vivenciadas ao longo do processo de formação? Como se prepara para aprender ao longo da vida? Na visão de Lück (2006), a construção da autonomia se efetiva mediante a transformação da cultura escolar, adotando-se uma “cultura da autonomia”, que permitiria, progressivamente, mudança do modo de ser e de fazer de tudo o que acontece na escola. Tal possibilidade tem maior probabilidade de êxito se contarmos com professores com formação adequada para isso.

A autonomia profissional significa, por último, um processo dinâmico de definição e constituição pessoal de quem somos como profissionais, e a consciência e realidade de que esta definição e constituição não pode ser realizada senão no seio de própria realidade profissional, que é o encontro com outras pessoas, seja em nosso compromisso de influir em seu processo de formação pessoal, seja na necessidade de definir ou contrastar com outras pessoas e outros setores o que essa formação deva ser. (CONTRERAS, 2002, p. 214).

 

            É possível falar em autonomia do educador sem autonomia da escola? Até onde uma implica a outra? Podemos falar em autonomia observando a estruturação legal, política, social da escola hoje? Quais as implicações ao falarmos em autonomia? Que relações são possíveis? São muitas as interrogações e poderíamos ir definindo algumas situações, iniciando, pela evidência factual de que não há autonomia absoluta, isto é, a escola é uma instituição dependente de outras instituições, pessoas, órgão e entidades. Como diminuir esta dependência e aumentar sua autonomia? Para Marchesi (2006), é necessário lembrar que a autonomia das escolas não é um objetivo em si mesmo, mas um meio para se conseguir outras finalidades de maior importância: melhorar a qualidade e a equidade na educação.

 

 

Considerações finais

            A autonomia é algo que o sujeito desenvolve, constrói. É um empreendimento da pessoa que procura resultado, orientação para suas ações. Um indivíduo autônomo age livremente de acordo com um plano próprio, ou seja, sobre as concepções construídas de forma consciente ao longo dos anos de sua vida. Não somos autônomos somente em função dos anos que passamos na escola de formação ou no convívio com nossos alunos, mas pelo nosso empenho em conquistá-la enquanto elemento constitutivo de nossa identidade como educadores. Para uma escola diferente é preciso que o professor pense e atue diferente. Não mais será possível uma ação autônoma sem uma autonomia da vontade do dever, ou seja, das ações humanas serem efetivadas por um imperativo do sujeito.

            A escola precisa construir sua proposta educativa de tal forma que se institua num espaço de respeito à autonomia, à liberdade e ao engajamento ao outro. Ela precisa organizar-se para que os que nela convivem possam aprender, exercer e re-aprender a liberdade de ser e de agir. Cabe, portanto ao educador, tornar-se primeiramente autônomo, revendo sua prática pedagógica, para que possa auxiliar na construção da autonomia de seus próprios alunos.

            A autonomia da escola envolve também a formação da autonomia de seus estudantes. E essa autonomia passa, necessariamente, pela oportunidade de discutir as relações no interior da instituição escolar e o modo como acontece a prática pedagógica. É um processo de identidade entre sujeitos e escola, de forma que a partir da relação dialógica, a escola desenvolva a formação cidadã de seus estudantes e esteja acessível à participação, inclusive promovendo-a. A escola não pode ser autônoma se no seu interior não se evidenciarem práticas de autonomia cidadã. É por meio de práticas construtivas e de emancipação dos sujeitos que consolidaremos este espaço como mediação possível para a autonomia dos sujeitos. A autonomia é um princípio que se efetiva ao perpassar todo o sistema de ensino e até mesmo a sociedade.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ABBABGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre You, 1968.

 

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Aprender o amor: sobre um afeto que se aprende a viver. São Paulo: Papirus, 2005.

 

CASSOL, Claudinei Vicente. Autonomia na escola pública no Norte do RS: da crise de projeto nas escolas estaduais à intersubjetividade criadora. São Leopoldo, maio de 2006 (Dissertação de Mestrado).

 

CONTRERAS, José. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.

 

DALBOSCO, C. A gestão democrática – formação permanente. Agosto, 2002 (mimeo.).

 

FERREIRA, Aurélio B. De Holanda. Novo Aurélio séc. XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

 

LÜCK, Heloísa. Concepções e processos democráticos de gestão educacional. Petrópolis: Vozes, 2006.

 

MARCHESI, Álvaro. O que será de nós, os maus alunos? Porto Alegre: Artmed, 2006.

 

TARDIF, M. Saberes docentes & formação profissional. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002.

 

________ O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis/RJ: Vozes, 2005.



[1] Doutor em Educação – UFRGS. Professor da URI – Campus de Erechim.

[2] Pedagoga. Professora da rede pública do Estado do Rio Grande do Sul.