Bianca Braga de Carvalho

São Paulo, 2019

 

1 Poder Constituinte: Breve Contextualização Doutrinária

O Poder Constituinte é o nome dado para aqueles que, visando expressar a vontade que emana do povo, desenvolvem ou alteram a constituição de um país. Para esse, atribui-se duas subdivisões: Originário e Derivado.

Segundo MORAES (2017), o Poder Constituinte Originário é inicial, ilimitado, incondicionado e permanente. Inicial porque é criado após uma revolução ou convenção. Ilimitado porque o detentor do poder constituinte baseia-se nas suas convicções e pode desenvolver o documento Constitucional como bem entender os seus costumes e situação social vigente. Incondicionado porque é um poder soberano que independe de outro para se estabelecer como Constituição. E permanente porque prevê, de regra, a durabilidade e perenidade de suas normas ali criadas, não se assumindo que outro documento virá para substitui-lo.

O Poder Constituinte Derivado literalmente deriva do Poder Constituinte Originário, ou seja, é previsto no texto Constitucional desenvolvido pelo Poder Originário, é limitado e condicionado por esse mesmo porque deve seguir as diretrizes e normas estabelecidas por, de forma a não descumprir as legalidades lá garantidas e de exercer as regras Constitucionais.

Partindo do Poder Constituinte Derivado, vale destacar também suas duas subdivisões: Reformador e Decorrente. O Poder Constituinte Derivado Reformador é aquele que possui o poder de alterar o texto constitucional sob as devidas regras já pré-determinadas no documento original. No caso específico do Brasil, que possui um documento rígido no quesito estabilidade, é submetido um processo dificultoso para possíveis alterações do texto através de uma PEC – Projeto de Emenda Constitucional (ANEXO A). São as chamadas Emendas Constitucionais, e elas são propostas pelos órgãos com autoridade para fazê-las, sendo estes representantes escolhidos democraticamente que formam o Congresso Nacional

Brevemente sobre o Poder Constituinte Derivado Decorrente, este é essencialmente o poder dos Estados-membros da federação. Nesse modelo de Estado, cada um dos entes governamentais possui a autonomia que lhe é dada pela constituição, porém subordinada aos princípios constitucionais ilimitativos (FILHO, 2014).

2 Breve Contextualização Histórica

Em 13 de março de 1964, João Goulart, o popular Jango, então presidente do Brasil e anteriormente vice de Jânio Quadros, anunciou o Comício da Central e assinou dois decretos que foram mal recebidos pela oposição conservadora (essencialmente, a extinta UDN - União Democrática Nacional e o PSD - Partido Social Democrático). Ao discursar, ele o fez especialmente para o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) que organizou o evento convidando à participar sindicatos, servidores públicos, estudantes e trabalhadores de áreas rurais. Tais decretos foram, primeiramente, uma Reforma Agrária que desapropriou terras de tamanho superior a cem hectares que estavam localizadas num raio determinado próximas a ferrovias, açudes[1] públicos e rodovias; a segunda,  a tomada de posse das refinarias de petróleo privadas, o que desagradou os proprietários destas de Minas Gerais e São Paulo. O parlamento da época era formado majoritariamente pelos grandes latifundiários e essas ações serviram ainda mais de incentivo para o discurso da oposição militar que acusava Jango de ser comunista. O seu partido, PTB, defendia ferrenhamente que o latifúndio era a causa da desigualdade social e atraso econômico no país. Em 1964, estima-se que 41% da população brasileira vivia em área rural, e a maioria desse número vivia em situação de pobreza. Esses números, publicados naquele mesmo ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, fermentaram a discussão sobre a necessidade da reforma agrária, e o PCB (Partido Comunista Brasileiro) ganhava gradativamente força através das Ligas Camponesas, criadas na década de 50. Essas associações do governo Jango com grupos esquerdistas fomentaram o desagrado do parlamento. No dia 30 de março de 1964, iniciaram as reuniões entre a oposição e efetivamente foi desenrolado o golpe que se sucederia no dia seguinte. Este seria concretizado no dia 1 de abril de 1964, através do primeiro Ato Institucional instituído por Arthur da Costa e Silva, Francisco de Assis Correia de Mello e Augusto Hamann Rademaker Grunewald, três militares do alto comando. Na ocasião, iniciaram também as taxações de subversivos [2] àqueles que fizessem oposição ao recém-ocorrido golpe.

3 As Constituições de 1946, 1967 e 1969

No dia 01 de abril de 1964 começou oficialmente uma nova era política no Brasil. E em 09 de abril de 1964, o primeiro AI - Ato Institucional - foi criado, sob a justificativa de evitar o avanço comunista e restaurar a economia brasileira. No artigo 1º desse primeiro Ato Institucional, expressa-se que a constituição de 1946 é mantida como oficial, e alterada somente quando discriminada no texto do AI.

Lê-se, no Artigo 2º, que ainda existe o congresso nacional – ele não foi dissipado, e as eleições para presidente e vice passaram a ser indiretas, realizadas pelo Congresso dentro dos prazos a cumprir a partir da publicação daquele Ato Institucional. Nesse mesmo texto, no parágrafo 2º, expressa-se que não há inelegibilidades para os candidatos concorrendo aos cargos chefes do alto executivo. E no 10º, por sua vez, determina que:

No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais.

Ou seja, com o Ato Institucional em questão, os direitos e garantias constitucionais poderiam ser suprimidos em prol da suposta paz e honra nacional. Desde 1988, os direitos políticos são resguardados constitucionalmente no Artigo 15(ANEXO B), e não podem ser abolidos, somente suspensos ou perdidos em casos de cancelamento da naturalização brasileira, incapacidade civil total, condenação criminal concretizada durante o período de sua eficácia, improbidade administrativa ou descumprimento de obrigação civil descrita no artigo 5º, inciso VIII. No período de vigência dos Atos Institucionais houve uma supressão de grande parte dos direitos políticos e civis, outorgados para a população sob risco de penas previstas naqueles textos. Uma vez criada a Constituição Cidadã, o voto direto, secreto e universal passou a ser cláusulas pétrea.

Em seguida, no artigo 3º do mesmo, o AI determina que o presidente da república poderia criar PECs (no texto original da época chamado de emenda da Constituição) e que elas seriam aprovadas se houvesse a maioria absoluta de votos no Congresso Nacional. E no artigo seguinte, o 4º, expressa-se também que o presidente da república pode enviar projetos de lei de qualquer gênero, e que se não fossem analisados dentro de 30 dias pelo Congresso Nacional, eles seriam automaticamente aprovados.

A Constituição de 1946 era essencialmente visada à reestruturação agro econômica do país embutida numa política altamente militarizada prevendo, em seu texto, intervenção militar nacional, impostos diversos e interceptações de ligações e correspondências quando julgadas necessárias, e até mesmo intervenção militar vinda de outros países - implicitamente, pode-se aferir que essa intervenção viria dos Estados Unidos da América dado o contexto nacionalista alinhado a ele durante o período Vargas e Dutra numa verdadeira luta contra o comunismo.

Através de uma série de Atos Institucionais, a Constituição de 1946 foi tendo suas leis gradativamente revogadas e substituídas por outras impostas pelos Altos Governantes até a criação de uma nova Constituição em 1967, cuja duração foi de aproximadamente dois anos, quando houve a criação de outra, em 1969. A de 1967, por sua vez, era um documento cheio de Atos Institucionais que violavam quaisquer princípios que são garantidos na Constituição de 1988. Um deles, é o Princípio da Irretroatividade da Lei, que, sinteticamente, expressa a proibição constitucional de retroação da lei a não ser em caso de benefício ao réu. No Ato Institucional 10, de 16 de maio de 1969, a lei passou a permitir o incremento de novas sanções a penas já julgadas e em curso de cumprimento para crimes – estes que foram previstos anteriormente nos Atos Institucionais 1, 2, 5 e 6. Além disso, o Ato Institucional de número 13 permitia o banimento ou exílio de brasileiros considerados perigosos para a Segurança Nacional. E também havia o Ato Institucional de número 14, de 5 de setembro de 1969, que reescrevia o texto do artigo 150 da Constituição vigente, permitindo, a partir daquele momento, pena de morte, prisão perpétua, banimento e confisco para os cidadãos considerados revolucionários ou subversivos nos termos que a lei determinasse. Esse é outro Ato Institucional que viola os princípios do Código Penal atualizado (ANEXO C), o chamado Princípio da Humanidade ou Dignidade Humana, em que não aplicar-se-iam penas cruéis de banimento, tortura ou pena de morte – este está previsto no Código Penal, artigo 38, incluído através da Lei nº 7209 de 1984. E, finalmente, no mesmo ano de 1969, na data de 14 de outubro, o Ato Institucional 17 dá poder ao Presidente da República do Brasil de alocar para a reserva os militares que tentassem atentar contra a coesão das Forças Armadas[3].

4 Conclusão

Os princípios constitucionais e de interpretação constitucional foram criados efetivamente e resguardados principalmente a partir da Constituição de 5 de outubro 1988, e pode-se inferir que através do estudo da história do Brasil viu-se necessária a implantação de cláusulas que protegeriam os direitos e garantias do cidadão brasileiro, num ordenamento que fizesse respeitar o texto determinado pelo Poder Constituinte Originário e cuidar para evitar pontas soltas que pudessem abrir uma janela para o descumprimento das leis lá redigidas, como ocorreu nos anos de chumbo do Brasil. Atualmente, essa proteção para o cidadão se encontra no artigo 60, e são as cláusulas pétreas. São elas o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes e os direitos e as garantias individuais. Existem também as cláusulas pétreas implícitas, que assim se tornam por associação. Existe, por exemplo, o Princípio da Interpretação Conforme e o Princípio da Não Contradição, que visam garantir a interpretação do texto Constitucional de forma a não interferir nas leis, direitos e garantias já previstos e acabar, assim, ferindo a Constitucionalidade.

Após esse estudo, conclui-se, portanto, que após o Golpe de 1964, o Brasil outorgou uma nova Constituição ao alterar indiscriminadamente o texto Constitucional promulgado em 1946 através dos Atos Institucionais que permitiam suprimir direitos, ignorar normas anteriormente descriminadas no texto Constitucional, e ao deslegitimar diversos direitos políticos para, em seguida, elaborar uma Constituição de cunho impositivo em 1967 e 1969, privando diversos direitos dos cidadãos no país e criando uma compilação jurídica sem a representação prática e real do povo. Foi, então, uma Constituição outorgada.

 

Referências

Constituição Federal. Artigo 5º, inciso VIII da Constituição Federal de 88. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10730780/inciso-viii-do-artigo-5-da-constituicao-federal-de-1988. Acesso em 08/04/2019.

NETO, Aluísio. Prosa Rápida: Diferenças entre validade, vigência e eficácia da lei tributária. Disponível em: https://www.estrategiaconcursos.com.br/blog/prosa-rapida-diferencas-entre-validade-vigencia-e-eficacia-da-lei-tributaria/. Acesso em 07/04/2019.

O Globo. No Comício da Central, Jango nacionaliza refinarias e desapropria terras. Disponível em: http://twixar.me/HKwK. Acesso em 06/04/2019.

PINHEIRO, Letícia. E ele voltou... o segundo governo Vargas. FGV CPDOC. Disponível em: encurtador.com.br/hzAC2. Acesso em 07/04/2019.

Planalto. Cláusulas pétreas, as regras da Constituição que são intocáveis. Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/mandatomicheltemer/acompanhe-planalto/noticias/2018/10/clausulas-petreas-as-regras-da-constituicao-que-sao-intocaveis. Acesso em 08/04/2019.

Planalto. Constituição de 1946. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm. Acesso em 08/04/2019.

Planalto. Atos Institucionais da Constituição Federal de 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/_AITs_CF1967.htm. Acesso em 08/04/2019.

Planalto. Decreto de Lei 2848 de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em 07/04/2019.

Senado. Há 50 anos, ditadura derrubava governador de São Paulo. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/06/06/ha-50-anos-ditadura-derrubava-governador-de-sao-paulo. Acesso em 08/04/2019.

Senado. 1964 – Poucos antes do golpe, reforma agrária esteve no centro dos debates no senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/03/24/1964-pouco-antes-do-golpe-reforma-agraria-esteve-no-centro-dos-debates-no-senado. Acesso em 08/04/2019.

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira.  O Poder Constituinte. 2014 Editora Saraiva: 6ª edição.

MORAES, Alexandre de. DIREITO CONSTITUCIONAL. 34ª edição. São Paulo: Atlas, 2018.

PAULO, Vicente. ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 3. ed. São Paulo: Método, 2008.

 

 

 

 

 

Anexos

 

ANEXO A – Artigo 60 da Constituição Federal

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I -  de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II -  do Presidente da República;

III -  de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

§ 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I -  a forma federativa de Estado;

II -  o voto direto, secreto, universal e periódico;

III -  a separação dos Poderes;

IV -  os direitos e garantias individuais.

 

ANEXO B – Artigo 15 da Constituição Federal

 

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

I -  cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;

II -  incapacidade civil absoluta;

III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

IV -  recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;

V -  improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.

 

ANEXO C – Artigo 38 do Código Penal

 

Art. 38 - O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

 

 

[1] Lagos ou barreiras artificiais criadas através de represas, usadas para abastecer regiões agrícolas, principalmente

[2] Conforme texto original.

[3] Conforme texto original.