A CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES DE TRÂNSITO
Por Leandro de Souza | 11/04/2011 | DireitoA CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES DE TRÂNSITO
RESUMO
Os crimes previstos no ordenamento jurídico brasileiro são classificados conforme diversos aspectos, dentre eles, em relação ao bem jurídico tutelado. Nesse aspecto os crimes se classificam em crimes de dano e de perigo. No entanto, certa dificuldade surge na doutrina ao classificar os crimes de trânsito nesse aspecto, por conta da divergência na identificação do bem jurídico tutelado.
Nesse âmbito, a partir da análise da intenção do legislador ao prever os crimes de trânsito e ao bem jurídico que possivelmente quis tutelar, o presente estudo buscará esclarecer as divergências entre os posicionamentos hoje existentes
acerca dessa classificação, e concluir quanto a melhor posição a ser adotada.
INTRODUÇÃO
Os crimes, segundo doutrina predominante, podem ser classificados quanto à
afetação ao bem jurídico tutelado, em crimes de dano ou de perigo. De acordo com melhor doutrina, Guilherme de Souza Nucci1 define crime de dano
como "os que se consumam com a efetiva lesão a um bem jurídico tutelado". Já os
crimes de perigo o mesmo autor define como aqueles em que: "contenta-se com a mera probabilidade de dano. Trata-se de um juízo de probabilidade que se funda na normalidade dos fatos, vale dizer, conforme o que usualmente costuma acontecer, o legislador leva em consideração o dano em potencial gerado por uma determinada conduta para tipifica-la". Estes são ainda divididos em crime de perigo abstrato e de perigo concreto que, para Damásio E. de Jesus, ao citar Claus Roxin2: Perigo presumido (ou abstrato) é considerado pela lei em face de
determinado comportamento positivo ou negativo (valoração ex ante). Não
precisa ser provado. Ocorre nos casos em que o comportamento não apresenta probabilidade real de dano ao bem jurídico, i.e., não o expõe a perigo de dano. É a lei que o presume júris et de jure, sob o fundamento de que a periculosidade típica da conduta já é motivo para a sua apenação, sem que fique na dependência da produção de dano (Claus Roxin, Derecho penal; parte general, trad. Diego Manuel Luzón Pena, Miguel díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Madri, Ed. C, p. 336). Diante disso, para que o perigo seja considerado não é necessário provar sua superveniência". "Perigo concreto é o real, o que na verdade acontece, hipóteses em que o dano ao objeto jurídico só não ocorre por simples eventualidade, por mero acidente, sofrendo um sério risco (efetiva situação de perigo)". 1 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Editora RT. São Paulo, 2005. 5ª edição. Página 122.
2 Apud JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 3 e 6. 9
A partir desses conceitos, surge dúvida doutrinária quanto à classificação dos crimes de trânsito quanto a esse aspecto da afetação ao bem jurídico tutelado.
Para alguns autores seriam os crimes de trânsito crimes de perigo concreto,
necessitando assim da prova da exposição concreta de alguém a perigo efetivo.
Já para o entendimento predominante, os crimes de trânsito são crimes de dano, ou lesão, considerado não no sentido físico, mas à segurança no trânsito.
Diante disso, esse estudo buscará esclarecer as implicações da adoção de uma e
de outra teoria de acordo com a definição do bem jurídico a ser tutelado, e concluir a melhor a ser adotada do ponto de vista do Código de Trânsito Brasileiro e do
ordenamento jurídico brasileiro. 10
CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES
Os crimes, tipificados segundo o Ordenamento Jurídico Brasileiro, são usualmente
classificados, pela maioria dos doutrinadores, dentre eles Guilherme de Souza
Nucci3 em:
- comuns e próprios: os crimes, conforme possam ser cometidos por qualquer
pessoa são comuns, ou quando exigem sujeito ativo especial ou qualificado, ou seja,
só podem ser praticados por determinadas pessoas são crimes próprios.
- instantâneos e permanentes: nos crimes instantâneos a consumação ocorre com
uma única conduta e o resultado é instantâneo, ainda que a ação se prolongue no
tempo. Já os crimes permanentes embora a consumação ocorra com uma única
conduta, a situação antijurídica se prolonga no tempo conforme a vontade do
agente.
- comissivos, omissivos, comissivos por omissão e omissivos por comissão: os
crimes comissivos são praticados por uma ação do agente, os omissivos por uma
abstenção, os comissivos por omissão são os delitos de ação praticados por
omissão do agente que tem o dever de impedir o resultado, e, os omissivos por
comissão são aqueles normalmente cometidos por abstenção, mas,
excepcionalmente podem ser praticados pela ação de alguém.
3 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Editora RT. São Paulo, 2005. 5ª edição.
Páginas 119 a 124.
- de atividade e de resultado: conforme não necessitem de resultado naturalístico,
são os formais e de mera conduta os crimes de atividade. Se necessitam de
resultado naturalístico são crimes de resultado.
- de dano e de perigo: os crimes de dano se consumam com a efetiva lesão a um
bem jurídico tutelado, já os de perigo se consumam com a mera probabilidade de
haver um dano.
- unissubjetivos e plurissubjetivos: os crimes unissubjetivos podem ser praticados
por uma só pessoa, e os plurissubjetivos só podem ser praticados por mais de uma pessoa, independente se todas devam ser penalmente punidas.
- progressivos e complexos: essa classificação está diretamente ligada ao fenômeno da continência, que, quando é explícita, ou seja, um tipo penal expressamente envolve o outro, trata-se de crime complexo. E, quando implícita, um tipo penal tacitamente envolve o outro, trata-se de crime progressivo.
- habitual: no crime habitual a consumação ocorre através da prática reiterada e
contínua de várias ações, preenchidos alguns requisitos para essa caracterização,
será punido o conjunto das condutas.
- unissubsistente e plurissubsistente: no crime unissubsistente a prática ocorre com
um único ato, já no plurissubsistente, com vários atos. No entanto, alguns delitos
admitem as duas hipóteses.
- forma livre e forma vinculada: nos crimes de forma livre não há forma prevista em
lei para a prática do delito, ou seja, não há qualquer vínculo com o método. Já nos
crimes de forma vinculada, a fórmula expressamente prevista no tipo penal deve ser observada para que se caracterize o cometimento do delito.
- crimes vagos: nos crimes vagos o sujeito passivo do crime é indeterminado pois
atinge toda a coletividade.
- crimes remetidos: são as condutas tipificadas que fazem expressa remissão a
outras.
- crimes condicionados: são aqueles crimes que dependem do implemento de uma
condição para se configurarem.
- crimes de atentado: são os crimes em que o tipo penal prevê a forma tentada do
delito equiparada à forma consumada.
AFETAÇÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO: CONCEITO
MATERIAL DE CRIME
O ordenamento jurídico brasileiro, em seu Código Penal, não define crime, cabendo à doutrina tal definição.
No entanto, a definição de crime não é essencialmente objetiva, pois ora considera
aspectos internos, da essência do crime ou de seu agente, referente ao conceito
material de crime; ora aspectos externos, puramente nominal do crime, referentes ao conceito formal, que, considerando as características ou aspectos do crime, gera o conceito formal analítico.
Para o completo desenvolvimento do presente estudo, necessário tecer
considerações mais profundas acerca do conceito material de crime, ou seja,
conforme Julio Fabbrini Mirabete4 "a razão que levou o legislador a prever a punição dos autores de certos fatos e não de outros, como também conhecer o critério utilizado para distinguir os ilícitos penais de outras condutas lesivas, obtendo-se assim um conceito material ou substancial de crime".
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. Volume 1. 21ª edição, 2004. Editora Atlas. Páginas 95 e 96.
Dessa forma, podemos afirmar que, de acordo com a intenção do legislador de
prever um crime como tal, há sempre um bem jurídico a ser tutelado por conta dessa previsão. Nesse âmbito nos ensina Julio Fabbrini Mirabete5:
"Tem o Estado a finalidade de obter o bem coletivo, mantendo a ordem, a
harmonia e o equilíbrio social, qualquer que seja a finalidade do Estado
(bem comum, bem do proletariado, etc.) ou seu regime político
(democracia, autoritarismo, socialismo, etc.). Tem o Estado que velar pela
paz interna, pela segurança e estabilidade coletivas diante dos conflitos
inevitáveis entre os interesses dos indivíduos e entre os destes e os do
poder constituído. Para isso é necessário valorar os bens ou interesses
individuais ou coletivos, protegendo-se, através da lei penal, aqueles que
mais são atingidos quando da transgressão do ordenamento jurídico. Essa
proteção é efetuada através do estabelecimento e da aplicação da pena,
passando esses bens a ser juridicamente tutelados pela lei penal".
Assim, podemos definir, materialmente ou substancialmente o que vem a ser crime
segundo Jiménez de Asua6, que "considera o crime como a conduta considerada
pelo legislador como contrária a uma norma de cultura reconhecida pelo Estado e
lesiva de bens juridicamente protegidos, procedente de um homem imputável que
manifesta com sua agressão perigosidade social".
Nos ensina também Guilherme de Souza Nucci7, que crime no prisma material "é a concepção da sociedade sobre o que pode e deve ser proibido, mediante a
aplicação de sanção penal. É, pois, a conduta que ofende um bem juridicamente
tutelado, ameaçada de pena. Esse conceito é aberto e informa o legislador sobre as condutas que merecem ser transformada em tipos penais incriminadores".
Embora, conforme Guilherme de Souza Nucci, não haja ainda um conceito material inatacável de crime, claro está o objetivo do legislador, ao tipificar determinadas condutas, em proteger bens jurídicos.
A partir desse conceito, surge a classificação dos crimes quanto à afetação ao bem jurídico tutelado, conforme já demonstrado no capítulo anterior.
5 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. Volume 1. 21ª edição, 2004. Editora Atlas. Páginas 96.
6 Apud MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. Volume 1. 21ª edição, 2004. Editora Atlas. Página 96.
7 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Editora RT. São Paulo, 2005. 5ª edição. Página 111.
CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES QUANTO À AFETAÇÃO AO BEM
JURÍDICO TUTELADO
Conforme já analisado, os crimes se dividem quanto à afetação ao bem
juridicamente tutelado pela lei penal em crimes de dano e de perigo.
CRIMES DE DANO
O dano consiste na alteração de um bem, sua diminuição ou destruição; a restrição ou sacrifício de um interesse jurídico, conforme define Heleno Cláudio Fragoso8.
Sendo assim, os crimes de dano, também chamados de lesão ou de mera conduta, são aqueles que só se consumam com a efetiva lesão do bem jurídico. Guilherme de
Souza Nucci9 completa afirmando que "trata-se da ocorrência de um prejuízo efetivo e perceptível pelos sentidos humanos".
8 Apud JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 1. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Editora RT. São Paulo, 2005. 5ª edição.
Página 122.
O professor Damásio E. de Jesus10 traz como exemplos dessa modalidade de
crime, o homicídio culposo no trânsito e as lesões corporais culposas no trânsito,
previstos, respectivamente nos artigos 302 e 303 do Código de Trânsito Brasileiro:
"Artigo 302 ? Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
Penas ? detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição
de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor".
"Artigo 303 ? Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo
automotor:
Penas ? detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e suspensão ou
proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo
automotor".
4.2 CRIMES DE PERIGO
O perigo não consiste na mera possibilidade de dano, mas sim na probabilidade de sua ocorrência.
É possível analisarmos o perigo sob dois aspectos: o objetivo, para o qual o perigo
constitui o conjunto de circunstâncias que podem fazer surgir o dano; e o subjetivo
que consiste no juízo do julgador, baseado na experiência e no caso concreto, sobre a probabilidade de ocorrência do dano. Dessa forma, podemos afirmar que os crimes de perigo se consumam com a probabilidade de ocorrência do dano.
O professor e autor Damásio E. de Jesus11 traz como exemplos dessa modalidade de crime, os crimes de perigo de contágio venéreo, rixa e incêndio, previstos pelo Código Penal Brasileiro.
Nos crimes de perigo, este pode ser individual, quando expõe o interesse de uma
pessoa ou de um número determinado de pessoas ao risco, ou coletivo ou comum, quando expõe os interesses jurídicos de um número indeterminado de pessoas ao risco. JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 1. JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 1.
Os crimes de perigo se dividem ainda em crimes de perigo abstrato e concreto.
4.2.1 Crime de perigo abstrato
Nessa modalidade de crime o perigo é presumido pela norma que pressupõe ser
perigoso o fato praticado. Ou seja, o comportamento não apresenta probabilidade
real de dano ao bem jurídico, mas a lei presume esse perigo, com o fundamento de
que a periculosidade típica da conduta já é motivo para a sua apenação. Dessa
forma, não é necessário provar a ocorrência do perigo, nem ao menos sua
superveniência.
Segundo o professor Damásio E. de Jesus12, "é o chamado ?delito obstáculo? do
Direito Penal francês, em que o tema da periculosidade da conduta não integra o
tipo, constituindo simplesmente motivação da lei (ratio juris)".
O professor Damásio13 traz um exemplo para facilitar a compreensão dessa
modalidade criminal, "ex.: o fato de ?deixar o condutor de veículo, na ocasião do
acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente,
por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública?, constitui crime de
omissão de socorro (CT, art. 304). O perigo, segundo a doutrina, é presumido.
Decorre da simples inércia do motorista, não se interessando a lei pela
superveniência de qualquer evento posterior ao comportamento omissivo".
Por tratar-se de presunção absoluta que completa o tipo penal, ou seja, não
permitindo prova em contrário, à acusação cabe somente a prova da realização do
comportamento. Isto porque a lei por si só, já completa o tipo penal incriminador,
presumindo que em decorrência da conduta há perigo para o bem jurídico.
12 JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 4.
13 JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 3 e 4.
Por conta disso surgem inúmeras críticas na doutrina e jurisprudência de violação a princípios constitucionais segundo os quais é baseada a lei penal brasileira, tais
como o princípio da lesividade, da culpabilidade e da responsabilidade penal
pessoal.
Luiz Flávio Gomes14 critica a adoção dessa modalidade de infração em nosso
ordenamento jurídico já que "mesmo quando a conduta mostra-se inócua, em
termos de ofensa ao bem jurídico protegido, de acordo com a ampla jurisprudência,
impõe-se a condenação", ofendendo o princípio da lesividade, segundo o qual não
há que se falar em punição quando não ocorre qualquer lesão ao bem jurídico.
Além disso, para o autor, como a conduta não é completamente realizada pelo
sujeito e a outra parte é completada pela presunção da lei, há violação ao princípio
da culpabilidade, fundamento do moderno Direito Penal brasileiro, além da
responsabilidade penal pessoal já que ninguém pode ser culpado pelo o que não
fez. Em suma, tais princípios se mostram incompatíveis com a adoção de presunções
legais.
Crime de perigo concreto
O perigo concreto é o real, quando o dano ao bem jurídico não ocorre por uma
eventualidade, mas a situação de perigo efetivamente existiu.
Nessa modalidade de crime o comportamento apresenta a real probabilidade de
causar dano ao bem jurídico, sendo caracterizado o delito através da prova da
ocorrência desse perigo.
A crítica que aqui se impõe é que a dificuldade prática de provar o perigo concreto,
normalmente conduz à impunidade.
14 Apud JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 4.
CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES DE TRÂNSITO QUANTO AO BEM
JURÍDICO TUTELADO
Há divergência na doutrina quanto à classificação dos crimes de trânsito no que
tange ao bem jurídico tutelado, se de dano ou de perigo concreto. Não se discute, no entanto, a possibilidade de consideração destes como crimes de perigo abstrato, pois, é entendido que estes "falecem ante o primeiro filtro de constitucionalidade15".
Isto porque, não se pode presumir a existência de um fato perigoso,
"a conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência e fato não se
presume: existe ou não existe. A conduta ameaçou o bem jurídico tutelado
e por isso é típica ou não o expôs a perigo e o fato é atípico. A essência do
conceito de crime é a ofensa ao bem jurídico16."
15 ROESLER, Átila da Rold. Novas (e velhas) polêmicas sobre os crimes de trânsito: artigo jurídico. Teresina, ano 8, n. 250, 14 de março de 2004. Disponível em: