A cidade nasce com a religião

Por: Prof. Ms. Marcelo Vagner Bruggemann

Um dos maiores historiadores do estudo de cidades e arquitetura urbana do século XX, Lewis Mumford (1982), diz que a cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos, graças a prática desenvolvida no período paleolítico de enterrar os mortos e de retornar em intervalos determinados e períodos regulares a esses locais. Dessa forma, os homens desse período criam pontos de encontro cerimonial, formas rituais, que podem ser o germe da cidade. Mesmo que a aldeia venha a se constituir somente no período neolítico, após o desenvolvimento da agricultura, ou juntamente, já que o plantio necessitava que as pessoas estivessem estabelecidas para a sua execução e para a domesticação dos animais, um certo animismo tomava conta da vida cotidiana. E nesse momento, pode-se pensar na presença de uma deusa organizando o espaço de convivência desses agrupamentos humanos. Foram as mulheres que cavaram e plantaram a terra, que construíram os primeiros recipientes de barros, que teceram cestas. Foram as mulheres que domesticaram o primeiro animal. Quando a vida já estava mais ou menos estabelecida e estabilizada, o homem usurpa o poder da mulher com seus negócios e com o desenvolvimento da economia e, finalmente, com a necessidade de aquisição de bens e terras, com as lutas de conquistas de novos territórios.

Lá estava a presença anímica da deusa criadora e do deus usurpador. De um modo ou de outro, ambos davam estabilidade espiritual a seus agrupamentos humanos e à vida da cidade que começava a surgir, na forma que conhecemos. Ambos mantinham ligados os indivíduos em torno da crença de um princípio ou poder superior, sobrenatural, do qual dependiam seus destinos e ao qual se devia respeito e obediência. A cidade fundamentava-se no princípio de uma força superior que a qualificava como um local sagrado; Roma antiga tinha o seu terreno sacralizado por um sacerdote e oferecido a um determinado deus, antes da colocação da pedra de fundação. E, assim, a cidade se desenvolve, na sua história; acolhendo, protegendo e permitindo a seus cidadãos uma vida tranquila e segura; em outros momentos, a cidade se transforma numa mãe terrível, que semelhante a Cronos, devora seus filhos; mas, mantém sempre o sentido de união e o significado de religare como fundamento de sua organização.

A religião sempre esteve próxima à formação das cidades. No Egito antigo, elas eram formadas ao redor das construções das mastabas e das pirâmides; na Idade Média, ao redor dos castelos e das Catedrais e sempre definiram pontos de poder e de disputa com o poder de imperadores e reis. Ao lado do Palácio, ou em oposição estratégica, estava lá uma Igreja, no compartilhamento do poder, e na divisão do dinheiro dos impostos. O poder administrativo e o poder do clérigo caminharam e caminham lado a lado.

O espaço público da igreja e do centro administrativo sempre foram bem demarcados na organização do espaço urbano. Sempre foram os locais mais privilegiados e visíveis do território. Sempre sobre um monte. Sempre no centro. Sempre uma fortaleza; quando não, tinham rotas de figas para fortalezas, como o Castelo de Sant’Angelo, próximo ao Vaticano.

Na organização social e política a religião, conforme mostra Durand (1980), a religião é uma das “ordens” que constituem a cidade, reagrupadas em duas grandes classes, das quais saem quatro funções – que agregam mais uma, a Imperial, como a que dá coerência às outras -, sendo uma delas a “sacerdotal”, constituída pela dialético do poder mágico e do poder gnóstico.

Analisando a organização do espaço das cidades coloniais brasileiras, é possível perceber a função administrativa e a função marcial próximas à função sacerdotal; isto é, a administração, a cadeia e a igreja agrupavam-se em uma mesma área central, geralmente. Depois a Igreja se destaca e ocupa locais mais dignos e destacados para que a presença do divino fosse notada, mas não só isso; para que sua presença fosse marcada como uma forma de poder reverencial.

Até hoje, essa é uma marca na organização das cidades. As praças e suas igrejas são mais importantes do que o edifício da prefeitura, ou qualquer outro. Mesmo em lugares de acesso pouco fácil, ou “inadequado” por não ser um local central ou visível, as igrejas se colocam imponentemente, como o Templo de Salomão, em São Paulo, que modifica a vida da região e mesmo a dinâmica do local, pois surgem novos comércios e outros são modificados, dado a força da crença e o poder instituído às religiões. Ou então, ideologias religiosas que constroem igrejas com a forma das antigas igrejas medievais, numa possível demonstração de autoridade e esplendor da fé, mesmo que uma fé punitiva, lembrando o desempenho da igreja, nesse período.

O importante é que a cidade, ainda que contemporânea, tem na sua organização espacial, um setor para a Capela, a Igreja, a Matriz, a Catedral. A exemplo de Brasília, com a beleza de sua Catedral.

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Bibliografia: 

MUMFORD, Lewis – A cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. Tradução: Neil R. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

DURAND, Gilbert – A cidade e as divisões do reino – para uma antropologia das profundezas. In: BRILL, E. J. - O um e o diverso, Eranos 1976, v. 45, Leiden, 1980.