A Capoeira Escolar em tempos de pandemia e distanciamento social

 

É complicado. Nem eu e, creio que, muita gente nunca pensou numa situação como esta. Fazer vídeos, mostrar a importância da Capoeira para se manter no mercado de trabalho e, muito além disso, e que considero um fator muito mais sério, mostrar que a Capoeira não é apenas uma opção de lazer no ambiente escolar.

Como sempre ouvi o Mestre Duende falar, “a Capoeira é energia viva”, ela está em constante movimento de evolução e adaptação aos novos tempos, mantendo suas raízes e tradições. Partindo deste conceito, pode-se pensar que é até fácil para o profissional da Capoeira se adequar a esta nova realidade mas, “não é bem assim que a banda toca”. Há diversas barreiras que impedem que pensemos nisso no ambiente escolar, principalmente no universo da Educação Infantil. Isso porque, neste segmento, em várias unidades de Ensino, a Capoeira é simplesmente mais uma opção de atividade (assim como a dança, a música, o teatro, e etc…) que serve de vitrine para os pais e o momento das nossas aulas serve de espaço para conversa entre coordenação e a/o professor/a daquela turma.  Infelizmente, em sua grande maioria, não há uma obrigatoriedade de apresentação de Planejamento prévio nem Planos de Aulas, o que faz com que se pareça que a atividade seja apenas uma forma de recreação (não que a Recreação não precise de planejamento, refiro-me a uma atividade sem direcionamento, tal como o recreio).

Não que não se tenha essa utilidade mas, será que é só isso que podemos esperar da Arte Capoeira?

Logicamente que dentro dessa idéia não posso culpar apenas a coordenação da Unidade Escolar por isso pois, muitos de nós, profissionais da Arte, nos acomodamos e chegamos na aula sem planejamento prévio e partimos para a criatividade do momento (muitos nem lembrando da aula anterior), resolvendo-se na hora sobre o que se seguirá sem, com isso, manter um aprendizado continuado e ascendente. Muitas vezes trazendo o movimento pelo movimento, o treinar o corpo, o treinar o jogo, quando sabemos que a Capoeira está muito além disso.

Alguns profissionais, que conheço e converso, atribui essa prática a falta de estímulo, por estarem cansados de tentar mudar, segundo eles, o conceito que a coordenação tem acerca da Capoeira e não obter nenhum resultado. Entendo que isso é verdade mas também sei que o fato de não ter a exigência de apresentação do Planejamento e/ou do Plano de Aula não impede que o façamos. Trata-se de uma forma de organização do nosso trabalho, de demonstrar o nível de importância que damos a atividade que nos sustenta financeiramente e que nosso discurso de valorização e respeito está muito além das exigências de uma coordenação, que muitas vezes nem entendem sobre qualquer atividade proposta e oferecida na Escola, tendo em vista que, como já disse anteriormente, estas atividades são apenas mais uma opção de lazer.

Mas creio que este é um assunto que deve ser mais aprofundado em outro momento pois o que realmente quero abordar é como o profissional da Capoeira vem se reinventando e aprendendo novas formas no ensino da Capoeira em tempos de distanciamento social.

Estarei mentindo se disser que não fiquei apreensivo pelos professores de Capoeira serem demitidos por sua atividade não fazer parte da grade curricular, mas vejo muitos colegas fazendo lives, vídeos-aulas e conferências para tentar suprir a falta das aulas no ambiente escolar e manter-se no mercado de trabalho. Podemos até pensar de forma positiva e dizer que, dentro deste cenário aterrorizante de doença e morte, fomos forçados a utilizar ferramentas que já estavam disponíveis mas que não havia estímulo para a sua utilização. E agora trazemos o que há por trás das aulas e a importância da nossa atividade num contexto mais amplo, que vai da atividade física, passando pela História e Geografia, até o incentivo a leitura e escrita, tudo isso no despertar constante do interesse dos nossos alunos na nossa Cultura. Essa forma recreativa de apresentar a atividade procura contribuir no desenvolvimento das aptidões físicas e intelectuais do alunado. Para Vygotsky, as brincadeiras combinadas ao processo de ensino, são excelente oportunidade de aprendizagem, além de propiciar às crianças desenvolvimento físico, motor, intelectual, psicológico, aprimora as habilidades sociais, a interação e o raciocínio.

Temos na Capoeira uma atividade que está além do corpóreo. O  que pensar da utilização das cantigas de Capoeira como estímulo neurolinguístico? Ou incentivo a leitura e escrita? Podemos pensar no ensino Geométrico com os passos da Ginga, sem falar no nosso principal ambiente de jogo, a Roda? E a teatralidade demonstrada no jogo, no fingir que vai e não vai, no sorriso estampado no rosto para enganar no jogo?

Tudo isso e mais um pouco são estímulos desenvolvidos pela Capoeira. A pouco esquecidos, ou colocados sem planejamento, mais que voltam a serem pensados quando passa-se a elaborar essa nova forma de ensino.

Pensando de forma mais prática, a elaboração e execução das aulas trás a tona um cuidado que talvez estivesse sendo utilizado apenas como um detalhe, um enfeite, e não como parte integrante e fundamental da Capoeira.

Posso citar alguns exemplos:

  • Muitos profissionais preferiam a utilização do pandeiro ao berimbau em suas aulas. Talvez pela dificuldade de transporte ou local para se guardar na escola. Nas novas aulas vemos, em sua grande maioria, a presença do berimbau, que é um dos maiores símbolos da nossa Arte;

  • Era muito fácil observar que não havia uma seleção de cantigas para as aulas, apenas a escolha por serem cantigas de Capoeira. Hoje vejo que estão sendo selecionadas de acordo com o ritmo e conteúdo das atividades, alguns utilizando apenas cantigas voltadas para o público infantil.

Esses são apenas alguns exemplos, poderia citar vários outros, mas todos eles servem para ilustrar o fato que os cuidados a estes detalhes estão sendo retomados e faz com que haja um momento para preparação das aulas.

Podemos até pensar em outra questão, para nossos alunos (e alguns pais/mães/responsáveis) o que está contido nas aulas é apenas diversão, para nós profissionais, em eixos temáticos, no que diz respeito aos Conteúdos Conceituais está o conhecer a origem da Capoeira compreendendo as diferentes formas de jogar, conhecer e reconhecer os diversos instrumento, identificação e reconhecimento dos movimentos do corpo, bem como o seu controle. Dentre os Conteúdos Procedimentais podemos proporcionar a utilização de várias formas de comunicação quando há uma intervenção do desenvolvimento dos conceitos, a demonstração da tranquilidade e clareza na compreensão dos conceitos, bem como reconhecer a aplicabilidade do conteúdo adquirido além do ambiente de aula. Já os Atitudinais, vem da valorização da Capoeira não apenas como atividade física e, incorporando nessa valorização, a nossa Cultura e a demonstração e organização nessa prática, dentre outros.

Se formos fazer uma abordagem com o olhar na atividade físico-motora, podemos pensar em conteúdos como: Psicomotricidade, percepção do corpo no espaço, coordenações oculomanual, oculopedal e visomotora, orientação espacial, organização espacial, estruturação espaço-temporal, esquema corporal. Tudo isso pensando no estímulo do desenvolvimento das habilidades, que podem ser; as valências físicas (equilíbrio, força, velocidade, flexibilidade, coordenação motora grossa, fina, finíssima e ampla e capacidade rítmica) e/ou perceptivas (acuidades visuais, auditivas e tato, lateralidade, agilidade, atenção e destreza).

Questões sociais também são abordadas, não apenas na condução das aulas, como também nas nossas cantigas, como por exemplo nos trechos dessas cantigas voltadas ao público infantil:

“Estudo na Escola/ treino na academia/ Respeito a minha mãe/ o meu pai e minha tia” (ABADÁ-CAPOEIRA)

“Minha mãe sempre me disse/ filho meu tem que estudar/ tem que jogar Capoeira/ para ter o que ensinar” (Ginga Mundo)

Essas são algumas das maravilhas que podemos encontrar na Capoeira e está colocado em nosso olhar quando propomos nossas atividades e observamos as tentativas de execução de cada movimento, na coordenação do cantar e bater palmas, na reprodução das cantigas, na respostas em movimentos propostos pelas cantigas, na observância evolutiva no comportamento com o outro, no desenvolvimento da segurança no andar, na mudança de conduta ao se dirigir ao outro.

Essa é uma das diversas formas de ver a Capoeira e estamos aprendendo uma nova forma de aplicá-la. A Energia Viva. Propondo novos conceitos, com a preocupação de manter os antigos, respeitando assim as tradições. Evolução com manutenção e cuidado com as nossa raízes para que todo esse movimento não destrua e sim fortaleça dentro de suas diversas possibilidades criativas.

Será que até se encontrar a melhor forma de aplicá-la, neste novo formato, não ocorrerá erros? Lógico que sim. Mas temos que pensar em algo que o filósofo francês Gaston Bachelard considerava como “Positividade do Erro”, para ele quando você erra é porque está buscando aprender e isso faz parte da construção do conhecimento. O importante é que a cada erro possamos parar e reavaliar nossas ações para que, cada vez mais, venhamos a contribuir com a nossa Arte Capoeira!