A Cabala Compositória

Chama-se Cabala compositória o segundo modo de explicar que tem Aritmética; o qual é quando com novas ordens se comutam e transferem umas por outras as letras de qualquer dicção, formando delas diferentes sílabas, vozes e sentido do que antes tinham, como se vê na profunda erudição de gregos e latinos, e hoje na dos vulgares naquele gênero de símbolo compositório que chamam anagrama, cujo nome bem significa o ofício da de movimento, e gramma, que é letra, mostrando assim que movendo-se as letras, tirando-as de um lugar e pondo-as em outro, nova sentença: e nestas tais composições floresceram os franceses sobre as mais nações das boas letras.
Este modo da Cabala compositória semelhante ao da resolutória se declara, e enobrece muito com outro lugar de São Jerônimo explicando a Jeremias. Onde o santo doutor é de parecer que havendo o profeta de intimar da parte de Deus a Nabucodonosor o castigo que determinava dar-lhe (figurado no Cálice, que mandava beber os ímpios reis), começou ameaçando aos de Egito e da terra Ausitidis e Filistim, Ascalônia, Gaza, Acaron, Azon, Idumea, MOab, Tiro e Sidon; aos eis insulanos; e aos danthema, bus, e a todos os de Arábia e Ocidente; os zambros; os de Elam; os medos; e a todos do Achilo, longe e perto; e quando depois de tão notável aparato (o qual parece que por lhe facilitar o perigo pôs diante) houve enfim de falar Jeremias na destruição de Babilônia, por não concitar contra si inutilmente a indignação do rei bárbaro, usou de tal artifício, que converteu (segundo a regra compositória) o nome de Babel, de quem queria profetizar, no nome de Sesach, que em lugar de Babel, sentenciou, dizendo: Et Rex Sesach bibet post eos. Mostrando assim, com alto mistério, que a palavra Sesach se devia entender e dava a entender Babel, e não Sesach, que tal reino não havia então no mundo.
A prova disso é que se nós lêssemos por ordem o alfabeto hebraico, começaríamos em Aleph, como os gregos em Alpha, e em A os latinos; e acabaríamos em Thau, como em Ômega os gregos, e os latinos em Zeta. Porém, se alternando o período comum dos alfabetos lêssemos o dos hebreus transportando-o e sorteando-o, quando o fazemos ler aos moços quando aprendem, para maior desembaraço e exercício de memória, acharíamos que, assim como regularmente, no nosso A B C, corresponde o A ao Z, o B ao X, o C ao V, o D ao T, o E ao S, o F ao R, o G ao Q, o H ao P, o I ao O, o L ao N e fica sem parelha a letra M, assim pela própria ordem no alfabeto hebraico fica no meio sem alguma parelha ou companhia a letra Lamed, da qual vindo uma vez atrás e passando outra adiante para buscar parceira ( como na ordem que fazendo de uma maneira Babel, fazem da outra SEsach, segundo a ordem, porque à letra Lamed se lhe busca anteposta, ou proposta outra letra com que varões de juízo para conhecimento
E não pareça deste modo de exposição elementar da Cabalaaa compositória deduzido tão violentamente, que se não haja admitido pelos Doutores Eclesiásticos muitas vezes em alguns lugares escuros, que com outro sentido não poderão interpretar-se; ou ainda naqueles que, sendo interpretados de outra maneira, não excluem interpretação elementar, como se vê em outro famoso lugar do Apocalipse, onde falando São João do Anti-Cristo, como ali entendem todos os intérpretes, diz assim: Qui habet intellectum, computet numerum bestiae, numerus enim hominis est, et numerus ejus sexcenti sexaginta sex. Das quais dizem palavras, números e sinais Santo Ireno, Hyppolito, Aretha, Ticonio e Pramasio deduzem o nome que haverá de ter o Anti-Cristo: uns dizem que se chamará Teytão, quase gigante; outros, Aateinoe, que quer dizer Latino; outros Antemos, que vale soberbo, porque somando o valor dos números, que significam todas as letras de que estes nomes se compõem, vem cada um por sua via a formar o número de 666, como diz o Espírito Santo: Et numerus ejus sexcenti sexaginta sex, que é o final proposto aos varões de juízo para conhecimento da besta Anti-Cristo, de que no Apocalipse vezes se fala.
Mas Anio Viterbo, intérprete de Beroso Chaldayco, é de parecer que pelo próprio número 666 se denota e soletra o nome Mafoma. Donde Pererio, trazendo em seu favor a Nicolao de Lira, tem para si que não só os números reduzidos a letras, que dos números se produzem, produzem também em si outros números, que denotam os anos da duração da seita maometana: assim o sente Santo Antonino de Florença, Genebrardo, Clotoveo, Lucas B e Aureolo, sendo também não poucos os autores que verificam, no nome de Lutero, os mesmos números e as próprias letras, como se refere Matute.
Escuríssimo, mas de grande utilidade à inteligência desta Doutrina, é outro lugar que os cabalos observam naquele famoso tetragramaton I H V H, que Deus de si inculcou a Moisés, para nome de sua quando lhe disse: Hoc est nomem meum in ceternum, et hoc memoriale meum in generatione, et et generatione: no qual nome, ou letras, dele são tantos os mistérios que se descobrem, que justamente lhe chamaram os gregos, isto é: Non vocatus; porque nele se denota cabalisticamente o número 72 e, neste número, infinitos mistérios, como veremos nesta maneira.
É de saber que pelo valor positivo dos hebreus vale a letra Jod, que é a primeira do tetragramaton I H V H, 10; o primeiro He, que é a segunda letra, vale 5. A letra Vau, que é a terceira, vale 6, e o He, que é a quarta, vale 5, os quais números somados todos juntos valem 26. Mas somando-se sempre um valor sobre outro, valerão as próprias letras deste tetragramaton 72, como faremos, dizendo assim: Se o Jod vale 10, o He vale 15, o Jod e o He e o Vau valem 21, o Jod, o He, o Vau e o He último valem 26. Do número 72 procedem, então, aqueles 72 nomes de Deus, que se deduzem do próprio tetragramaton, que são: 1.Vehuiah, 2.Jeliel, 3.Sitael, 4.Elemiah, 5.Mahasiah, 6.Jelaeh, 7.Achaiah, 8.Cahetal, 9.Haziel, 10.Aladiah, 11.Laviah, 12.Hahaiah, 13.jazafel, Pahaliah, 21.Nelehael, 22.Jeiafel, 23.Melahel, 24.Haiviah, 25.Nithhaiah, 26.Haaiah, 27.Jezalel, 28.Seechiah, 29.Reiael, 30.Omael, 31.Lecabel, 38.Haamiah, 39.Rehael, 40.Jeiazel, 41.Hahahel, 42.Michael, 43.Vevaliah, 44.Jelahiah, 45.Seealiah, 46.Ariel, 47.Asaliah, 48.Michacel 49.Vehuel, 50.Daniel, 51.Hahasiah, 52.Imamiah, 53.Nanael, 54.Nithael, 55.Mebahiah, 56.Poiel, 57.Nemamiah, 58.Icialel, 59.Harael, 60.Mizarael, 61.Umabel, 62.Jahhahel, 63.Anuel, 64.Mihiel, 65.Damahiah, 66.Mavakel, 67.Eiael, 68. Habuiah, 69.Rochel, 70.Haiael, 71.Jabamiah, 72.Muniah. Os quais com tremor e temor eram nomeados.
Porque os hebreus denotando os atributos altíssimos de Deus por estas duas partículas, El e Jah, os significavam de tal modo, que guardaram sempre a partícula Jah, para quando queriam nomear a Deus benéfico, como se vê na versão hebreia, porque São Jerônimo diz: Si iniquitates observaveris, Iah Domine, quis sustinebit; e quando fortíssimo o denunciavam pela partícula El, o que também se vê naquele lugar dos números, onde dizem os rabinos: Fortissime El, Deus Spirituum omnis carnis, num uno peccante contra omnes irae tuce desaeviet... Da ótimo, pela fortaleza, máximo, segundo se lê em Marco Túlio.
E daqui se toma a razão, porque todos os nomes dos Santos Anjos que se escrevem na sagradaa Página acabam na partícula El, como vemos nos Arcanjos Michael, Gabriel, Rafael e nos Anjos Raziel, Jophiel, Peliel, Malthiel, Virel e outros. Donde se entende aquele lugar do Êxodo: Ecce ego mito Angelum meum, a qual cláusula acaba nestas palavras: Audi vocem ejus, ne exacerbaveri eum, quia non ignoscet sceleribus vestris, quoniam nomenmeum est in illo.
Estes 72 misteriosos números compreendidos no grande tetragramaton I H V H se denotam por outro não menos misterioso nome, que os hebreus dizem Schemhamephoras, o qual abraça o valor de todos e em cuja virtude se incluíam notáveis maravilhas, que algumas tocaremos quando falarmos do vigor que há ou pode haver nos nomes. Aqui também se prova aquela notabilidade observada dos sábios e quase universalmente conhecida, que o nome inefável de Deus, como por lei natural, em todos os idiomas do mundo é tetragramaton e consta de quatro letras, que foi sem dúvida a causa de que os hebreus chamassem santas a estas quatro letras I, H, V, H, de que consta o nome divino Jeová.
Esta tão alta maravilha, argumenta e prova Marcilio Fesino, não podia obrar-se senão por ordem sobrenatural e divina; cita seu Commentario in Philebum e diz de si: Ubi probatur, non potuisse in hoc uno gentes omnes, non nisi divinitus convenire. Porque se bem observarmos o Divino nome, segundo o proferem as mais das gentes do mundo, veremos palpavelmente esta verdade. Os judeus lhe chamaram Jeová por IHVH, os caldeus, Eloha, os sírios, Eloa, os etíopes, Amlau, os cassírios, Adão, os gregos, Theos, os egípcios, Theut, os persas, Syre, os latinos, Deus, os italianos, Idio, os espanhóis, Dios, os lusitanos, Deos, os franceses, Dieu, os alemães, Godt, os flamengos, Goth, os ingleses Gotd, os mogores, Orfi, os polacos, Pegav, os dálmatas, Bogi, os sarracenos, Abgd, os mouros, Allà, os índios, Zimi, os valaoc, Zeul, os lingenos, Odel, os húngaros, Iten. E ainda que barbaramente os biscainhos lhe chamam Jamgascoa, observam a própria lei do tetragramaton, porque rigorosamente são quatro letras, JAM, gas, co, a, as de que consta este nome.
Omitimos, com razão, outros exemplos, como o do nome Mesiha, que se denota pelo número 398, e alguns semelhantes, porque deixando com suficiência e claridade exposto o que dizemos, todos os mais exemplos, argumentos e provas não servem à doutrina nem autoridade do que se trata, e são somente umas vãs escumas produzidas da vaidade da erudição, com que Autores de ordinário confundem sua doutrina com repreensíveis demasias, vício mui semelhante ao pleonasmo aborrecido dos gregos e pecado mortal contra a pura eloquência de qualquer língua.