Boff, Leonardo. Cultura da Paz. Disponível em: http://www.leonardoboff.eco.br/site/vista/2001-2002/culturapaz.htm. Acesso em: 15 de abril de 2019. Originalmente publicado no Jornal do Brasil em 8 de fevereiro de 2002, p. 9.

Ao observar a "cultura dominante de hoje", Leonardo argumenta que; além da tendência natural do ser humano de buscar a dominação pela violência e agressividade, soma-se a exposição massificada destes pelos meios de comunicação. Desta forma, o guerreiro, o dominante e o poderoso sempre estarão mais valorizados do que os que se dedicam às artes, ciências e atividades mais salutares. Cita a célebre questão de Einstein à Freud; se seria possível ao homem controlar seu impulso destrutivo. Segundo Boff, Freud responde que jamais o homem poderia controlar totalmente sua inclinação à destruição.

Segue lembrando na natureza uma certa tendência à destruição e, por isso, esta seria também uma espécie de vocação instintiva. Contudo finaliza o segundo parágrafo com a fé de que, se temos inteligência, esta teria sido dada pelo objetivo de se desviar do que parece natural. Alonga-se argumentando que a competição, característica do humano, geraria ainda mais guerras e conflitos. Associa o paternalismo e a repressão à mulher como uma consequência desta destrutividade.

Então exalta a necessidade imperiosa de uma cultura de paz, que seria a única salvação à espécie. Argumenta que, ao contrário de todos os animais, somos mais sociais e cooperativos e por isto poderíamos delinear outro destino. Elenca uma série de personalidades, que a despeito da agresividade original, tiveram suas existências ligadas à compaixão e boa vontade para com os outros.

Sem dúvida um texto interessante e bem escrito, com uma proposta cheia de boa vontade, entretanto cabem alguns reparos. O primeiro se refere ao fato de localizar na atualidade (ou parecer localizar), a tendência agressiva original do humano. Acrescenta uma crítica implícita à mídia em geral, como se a tendência natural não pré existisse à mesma. E aí temos, ao que me parece, uma inversão; visto que se tomarmos o conceito de pulsão de morte de Freud (1920) veremos que o mesmo nasce com o homem, o que independe de qualquer influência externa. Assim, a mídia estaria apenas entregando algo pelo qual o próprio espírito humano já anseia em intimidade. Ainda sob esta observação, é fato que um dos mecanismos de defesa psíquica é projetar no meio aquilo que se tem em si mas não é socialmente aceito. Logo um filme violento poderia até servir como meio de extravazar a agressividade que se tem, tornando o ser menos propenso à violência. Dessa forma, a mídia não é um adversário, e sim um aliado na busca da desejada "cultura de paz".

O segundo ponto a se questionar seria a interpretação que Boff dá ao discurso de Freud, aparentemente contrário à possibilidade de "uma cultura de paz". Na verdade, na resposta à Einstein (FREUD, 1932), no incrível "Mal estar da Civilização", Freud explica que as pulsões, seja a de vida ou de morte, são controladas no processo civilizatório; ou seja, segundo Freud, só nos socializamos porque nos educamos e assim limitamos nossos instintos. O interessante é que Freud atribui a isto um "mal estar" latente. Por isto, ao contrário do que o texto parece sugerir, também Freud acredita na efetivadade de uma "cultura da paz".

Finalmente, mas não menos importante, cabe questionar a ideia de que é exclusivo do homem a sociabilidade e afeto ao próximo. Mesmo em mamíferos menos desenvolvidos vemos fenômenos de sentimento materno, adoção até inter-espécies e outros fenômenos a evidenciar certa "solidariedade animal". Em particular, o estudo de Lopes (2013 ) revela que bonobos são ainda mais afetuosos do que outros primatas e quiçá dos homens.

De toda forma o texto é muito pertinente naquilo que de fato é nosso melhor; o apreço aos semelhantes que é capaz de potencializar nossa existência no mundo.

Bibliografia

FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. In: Obras Psicológicas Completas: Edição Standart Brasileira. Rio de Janeiro. Imago. 1996. p. 73-75.

FREUD, Sigmund. O Mal estar da Cultura. L&PM Editores. Brasil. 2018.208 p.

LOPES, Anchyses Jobim. O primata perverso polimorfo. Estudos de Psicanálise. Belo Horizonte-MG, n. 40, p. 21–30, Dezembro/2013