A BIOGRAFIA DOS CIENTISTAS COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA: ANALOGIAS SOBRE UM PROBLEMA HERMENÊUTICO OU EMPÍRICO


Maria Francisca Carneiro
Pós-doutora em Filosofia, Doutora em Direito, Mestra em Educação, Bacharela em Filosofia


RESUMO

Algumas vezes os cientistas vivem verdadeiros dramas ou conflitos sociais e psicológicos, que influenciam positiva ou negativamente o desenvolvimento e a instauração de suas pesquisas, descobertas e invenções no seio da sociedade, inclusive em termos da inscrição na História.
Assim sendo, pergunta-se: até que ponto é valido comunicar a ciência ao grande público, utilizando-se a biografia dos cientistas como estratégia de motivação? A polêmica decorre do fato que, tradicionalmente, a ciência usual (clássica) propugna pela separação (ou desvinculação) entre o objeto da pesquisa e o sujeito pesquisador. Portanto, se a referida estratégia motivacional for usada em comunicação científica, ela poderia estar quebrando uma tendência metodológica dominante e tocando, por conseguinte, nas discussões sobre o mito da neutralidade axiológica em ciência.
A indagação a respeito da validade do emprego nas biografias como estratégia de comunicação da ciência reside na possibilidade de distorções, não apenas da própria comunicação, como também das interpretações decorrentes. Neste aspecto, derivamos para a seara da Hermenêutica em Ciência.

SUMÁRIO

1. Sim, as biografias dos cientistas podem ser expressivas................................... 2
2. Críticas aos mitos e à paradoxal busca da neutralidade em ciência.................. 4
3. Conclusão: entendimento do público como problema hermenêutico ou empiria em comunicação científica..................................................................................
6

1. SIM, AS BIOGRAFIAS DOS CIENTISTAS PODEM SER EXPRESSIVAS


Afirmar que uma biografia é interessante ou não é questão das mais relativas, se tivermos em conta os vários fatores que compõem a narrativa biográfica.
Em primeiro lugar, a biografia não é a "vida" da pessoa em si; mas a escrita sobre ela ou sua grafia. Assim, nas biografias romanceadas, por exemplo, o estilo literário, a condução narrativa e a estrutura do texto, a velocidade e as ênfases sobre um ou outro aspecto são prerrogativas do autor do trabalho, que nem sempre correspondem estritamente à velocidade dos fatos ocorridos.
Por outro lado, as biografias oficiais, ou mesmo os documentários de vida, de um modo geral, buscam retratar pela escrita os fatos ocorridos na história das vidas relatadas, de modo fidedigno.
Ora, o que estamos discutindo, na verdade, é que além de escrita literária ou documental, a narrativa biográfica pode também ser discutida tendo-se em vista algumas analogias, que funcionam como "fatores" e caracterizam-se como pressupostos ou tendências das diferentes escolas em Historiografia.
No caso das biografias dos cientistas, essa questão pode se tornar ainda mais complexa. É bem verdade que muitos homens que dedicaram suas vidas ao conhecimento, às descobertas e invenções, nem sempre tornaram-se conhecidos em vida ou até mesmo após a morte, passando obscuramente pelo caminho da existência no mundo da ciência e sua mass-media, a despeito de seus possíveis esforços.
Outros, embora destacados no mundo do saber e da técnica, viveram desapaixonadamente, sem que se possa verificar, em suas notas biográficas, dados "emocionantes" a ponto de magnetizar a atenção do público.
Há ainda uma outra classe de personalidades científicas, que são os cérebros temperamentais, cujos arroubos intempestivos constroem biografias passionais e eletrizantes; embora nem sempre suas produções como pesquisadores possa apresentar o mesmo grau de expressividade.
Porém, o ponto central deste artigo diz respeito à relação emocional do cientista com o conhecimento por ele produzido, em termos biográficos, discutindo-se a validade do emprego desse recurso como estratégia de comunicação científica.
A História da Ciência é farta em relatar verdadeiros dramas sociais e conflitos psicológicos dos cientistas e filósofos, com referência ao objeto de suas investigações. Para exemplificar, basta lembrar Sócrates, Galileu, Giordano Bruno, Fermat, Einstein... entre tantos outros.
O que destacamos, então, é a questão humana emotiva ? que pode envolver o sujeito e o objeto da pesquisa, em um dano momento histórico ou espaço geográfico ? em contraponto à idéia da transmissão da ciência alijada do contexto humano em cujo bojo foi gerada.
Não negamos que o conhecimento científico possa ser transmitido de modo mais "neutro" e desprovido de conteúdos emotivos. Inclusive a ciência, em certos casos, pode ser considerada como uma categoria "hipostática", sob o aspecto ôntico (ou hipóstase), cuja existência tem validade per se e, portanto, aparta-se do sujeito que a concebe, conforme veremos a seguir.



2. CRÍTICAS AOS MITOS E À PARADOXAL BUSCA DA NEUTRALIDADE EM CIÊNCIA


A decantada busca por um conhecimento isento de valores e válido por si mesmo foi o esteio do desenvolvimento histórico do método científico, calcado fortemente na prova, particularmente a partir do Racionalismo francês do século XVIII.
É por todos bem conhecida a celeuma em torno da chamada "neutralidade axiológica da ciência", bem como dos mitos que nessa questão podem estar implícitos, desvendados especialmente a partir da década de 60, no século passado. Observe-se que a questão, a despeito de seu aporte clássico, não está exaurida. A relatividade dos conceitos de "verdade cientifica", as provas e os métodos, seu emprego e validade, são questões tão perenes quanto perene for a ciência e as possibilidades de se pensar sobre ela.
Atualmente, embora estejamos cientes que não se fala de "lugar nenhum" (quer dizer, o discurso científico, pelo simples fato de ser discurso, revestido de palavras e por elas expressar-se, não é neutro); sabemos, do mesmo modo, que a atividade científica consiste em investigar, com o maior rigor e melhor critério possível, alguns tipos de "verdade" em relação ao objeto pesquisado; seja por meio da pragmática, da correspondência, da equivalência, etc.
Nesse tópico pode estar um paradoxo metodológico para a ciência, que se equilibra sobre uma imprescindível e vital tensão existente entre a neutralidade e os eventuais mitos implícitos no problema, configurando-se como dois pólos que condicionam determinados aspectos da crítica epistemológica.
A esse paradoxo gostaríamos de acrescentar um elemento complexizador ? embora com ele compatível, por natureza ? que é recurso biográfico como estratégia de comunicação científica, que pode ser apresentado pela seguinte analogia: assim como o paradoxo existente entre os métodos científicos e os mitos que permeiam a neutralidade, também as biografias de vários cientistas são repletas de questões avivadas pela contingência humana, tais como paixões, gosto, interesse, rivalidades, apegos, obsessão, ódio e amor, o que reaproxima o objeto do sujeito, a criatura do criador.
Outra analogia: assim como a ciência em geral vale-se da análise ? que é a separação do todo em partes distintas como método de estudo ? também a re-junção das partes pela comunicação da ciência poderia proporcionar novos prismas para a reflexão, como por exemplo, os binômios dissociação/remontagem; organização/desorganização, etc.
O resultado da remontagem, via de regra, é diferente da "inteireza", entendida como estado inicial do objeto considerado anteriormente ao procedimento analítico. Aí pode estar um novo viés para a comunicação da ciência, que é a remontagem do contexto científico, por intermédio da junção entre a biografia do cientista e o conhecimento por ele produzido.


3. CONCLUSÃO: O ENTENDIMENTO DO PÚBLICO COMO PROBLEMA HERMENÊUTICO OU EMPIRIA EM COMUNICAÇÃO CIENTÍFICA


A principal inferência que se pode obter da diferença entre a Teoria da Interpretação e a Hermenêutica é que aquela costuma ater-se, mormente aos níveis conceptuais; enquanto que esta elabora as interpretações, aplicando-se à realidade à qual se referem.
Assim, não se soa correto dizer que a Hermenêutica é um capítulo vetusto e obsoleto da Filosofia ou da Metodologia em geral, pois a Hermenêutica está presente em tudo o que a inteligência interpreta concretizando, pela aplicação e pelas práticas.
Além disso, as várias linhas hermenêuticas renovam-se pelos achados recentes da Retórica, pelos avanços da Lingüística em geral e da Pragmática em especial e por tudo o que se convenciona chamar de "razão comunicativa", na expressão cunhada por Habermas.
Evidentemente, a Hermenêutica também pode ser relevante em comunicação científica, na se qual estima resultados contextualizados pela verossimilhança, no que se refere à ciência; e pela eficiência, no que concerne à estratégia comunicativa.
Os instrumentos de aferição para as quantidades, bem como os indicadores que permitem avaliar a qualidade do resultado da ciência comunicada é o entendimento do público e, por conseguinte, o seu comportamento em relação aos conteúdos transmitidos.
Neste ponto cabe mais uma analogia: assim como a aplicação diferencia a hermenêutica da mera interpretação, a mudança de comportamento por parte do público diferencia a efetiva comunicação da ciência da mera transmissão de informações.
Porém, tendo-se em conta que a comunicação científica é matéria de índole multidisciplinar, contendo em seu bojo elementos variados, dos mais concretos aos mais difusos, não se pode negar que o leque de distorções ao qual qualquer hermenêutica estaria suscetível é consideravelmente amplo, donde decorre que, em maior ou menor grau, estaríamos lidando com zonas de vaguidades, imprecisões e incertezas.
Poderiam as biografias dos cientistas contribuir para com a eficácia dos resultados em comunicação da ciência?
Como resposta a tal pergunta, podemos delinear dois caminhos: um, é o hermenêutico, que interpreta o objeto da ciência e a biografia do sujeito que a produziu, traçando primeiro a estratégia para a comunicação planejada.
O segundo caminho é o empírico, que comunica a ciência por intermédio da biografia do cientista, para depois avaliar e remontar a estratégia, corrigindo-a ou contextualizando-a, se for o caso, de acordo com a reação (entendimento e comportamento) por parte do público.
Ambos os caminhos ? ou métodos ? podem ser igualmente válidos como estratégia comunicativa; e nenhum se furta às possibilidades hermenêuticas da ciência e seus problemas, sejam anteriores ou posteriores ao experimento.
Em qualquer dos casos, permanece presente o elemento emotivo como elo de conexão entre os comunicadores da ciência e o público, assim como, por analogia, entre escritores e leitores em geral: variável cálida, capaz de motivar as mais diversas iniciativas, rompendo (felizmente!) como eventuais formalismos analógicos porventura cristalizados pelo tempo da mente.

Nota: Este artigo não apresenta referências bibliográficas porque foi escrito de cor.