A historicidade da Bíblia é, muitas vezes, colocada como argumento de fé. Muitas vezes a Bíblia é usada de forma definitiva, sem considerar elementos simbólicos e textuais que não podem ser desconsiderados. Se for encarada dessa forma tanto a fé como a razão tem que se submeter a algumas contradições textuais que estão presentes no texto bíblico.

Na realidade a fé precisa se auto-alimentar. Pode, também se apoiar em outros elementos. Um desses suportes é a Bíblia. A fé se alimenta da bíblia assim como de qualquer outro texto, símbolo e oração. Entretanto ela não deve depender desses elementos. Se a fé depende da bíblia ou de outros símbolos será uma fé dependente e, portanto, fraca, sujeita a se perder ou corromper. O que alimenta a fé é a própria fé. Por isso e para isso ela pode se fortalecer no contato com outros elementos, mas não estacionar no tempo e espaço. Assim sendo, embora não seja um elemento racional a fé pode se embasar em argumentos racionais, pois a razão não pode contradizer a fé nem a fé se contrapor à razão. Podemos dizer, inclusive, que fé e razão caminham juntas e o que as diferencia é que a razão trabalha com argumentos comprováveis e a fé baseia-se apenas na crença.

Em função dessa distinção e é que se lança a indagação: Como estabelecer a relação entre a Bíblia e a História? A bíblia pode ser utilizada como livro histórico?

O primeiro ponto que precisa ficar claro é que nossa visão de história é diferente daquela dos "pais da história". Os historiadores, no passado, concebiam sua função não com neutralidade, sabiam-na impossível. Sabiam que narrar um fato histórico significava tomar partido e valorizar um aspecto deixando outros no esquecimento. Para eles estava claro que a narrativa histórica era um ponto de vista a respeito do fato.

O historiador sabia que estava fazendo o registro de eventos para preservar a memória, mas que o fato, e si era irrecuperável. É o que afirma Heródoto ao dizer que suas pesquisas se destinam a: "impedir que o que os homens fizeram, com o tempo, se apague da memória".

Concebiam essa sua função, também como uma interpretação dos fatos. Tinham a verdadeira noção de que estavam dando uma versão dos fatos. É a afirmação de Tucidides, dizendo que: "exprimi o que a meu ver eles poderiam ter dito que correspondesse melhor à situação, mantendo-me, quanto ao pensamento geral, o mais perto possível das palavras realmente pronunciadas". Portanto não estava reproduzindo o discurso, mas a sua versão do discurso.

A história, portanto, como afirma Tito Lívio tem a função de "lembrar os grandes feitos", sabendo que alguns fatos e personagens serão eternizados ao passo que outros, sem sombra de dúvida, cairão no esquecimento. Para evitar esse esquecimento precisam ser registradas ou na forma de textos narrativos ou na forma de monumentos. Esse mesmo historiador Romano afirma que muitas vezes a narrativa sobre os antigos é "embelezadas por lendas mais poéticas do que fundadas em documentos autênticos". E diz isso como a nos lembrar de que nem tudo na história é histórico; e que a narrativa sobre fatos históricos não é reprodução do fato.

Outro elemento que os mestres da história nos fazem recordar e chamam nossa atenção é para não desconsiderar a literariedade e a capacidade do historiador se envolver com seu tema a ponto de tomar partido tanto na narração como na interpretação do fato. É o que deixa claro Flavio Josefo, referindo-se aos romanos e aos soldados romanos que tomaram e destruíram Jerusalém. Diz o historiador judeu: "se em minhas palavras houver algo digno de censura, cada vez que lanço a culpa nos tiranos (refere-se aos romanos) e a seu bando de facínoras (soldados que tomaram e destruíram Jerusalém) ou quando lamento minha pátria, eu vos peço, em derrogação da regra do gênero histórico, que o perdoeis à minha angústia".

Nisso tudo está presente a afirmação constante de que o historiador narra os processos geradores dos fatos, sim, mas faz isso sempre a partir do seu ponto de vista, de suas paixões, medos, ira ou quaisquer outros sentimentos. Tanto o historiador do passado como os contemporâneos não podem se despir de suas crenças, sua ideologia, sua metodologia, seus pontos de vista... e mesmo os chamados documentos históricos não podem ser tomados como definitivos, pois cada documento reflete, sempre, um ponto de vista: um monumento a Júlio César, um anuncio sobre escravo fugido, no Brasil colônia, ou uma fotografia, sempre são um ângulo da história: os cartagineses, com certeza não fariam um monumento a um imperador romano, um escravo fugido não colocaria anuncio no jornal, outro fotógrafo teria outro enquadramento...

A fim de ilustrarmos a relação da Bíblia com a História podemos tomar os dois textos atribuídos a Lucas: O Evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos. E podemos dizer que as mesmas verdades que atribuímos ou que percebemos nos historiadores da antiguidade, podemos saber que estavam presentes em Lucas, de acordo com o que lemos em Lc 1,1-4 e At.1,1-2. Tanto no Evangelho como nos Atos dos Apóstolos, o autor deixa claro que: a) fez acurada pesquisa; b) pretende ordenar a sucessão dos fatos – que implica dizer que está manipulando os dados pesquisados para adequá-los ao seu propósito; c) sua pesquisa se baseia em informações de quem viveu o fato e não em sua própria vivência; d) lança seu material a fim de que o leitor tome uma posição.

Ou seja, Lucas lança os resultados de sua pesquisa não somente como informação, mas como argumento, como a dizer ao seu leitor: o que você já ouviu de outros pregadores pode ser comprovado com o que eu pesquisei. O que você tem ouvido tem fundamento histórico. Podemos dizer que Lucas além de apresentar um texto histórico usou a história como suporte para sua pregação. Sua pregação é um texto histórico, mas é, também uma história em que prevalece uma versão dos fatos. A versão do autor que quer convencer seu leitor daquilo que está falando.

Nesse sentido o texto Bíblico, e neste caso os textos de Lucas, não se prestam à veracidade da história, embora mostre uma face histórica. O texto bíblico é um argumento de fé. Contém elementos históricos mas essa história não tem um fim em si mesmo, mas sua finalidade é convencer o leitor de que o argumento do autor é fidedigno.

Entretanto nós, em nossa sociedade do século XXI, ampliamos as perspectivas. A história e a historiografia atuais tendem não a reforçar um fato como argumento da fé – que essa é a função da Bíblia – mas a entender os fatos dentro de seu processo histórico com uma perspectiva de compreensão científica. Dessa forma o texto bíblico pode ser utilizado como auxiliar na compreensão da história. Entretanto essas informações precisam passar pelo crivo da análise. O texto bíblico só será documento histórico se for olhado como instrumento auxiliar e analisado com os critérios não da fé, mas da ciência histórica: crítica literária, crítica textual, análise comparativa, e assim por diante.

"O leitor que tem fé corre, sem dúvida um duplo risco de ilusão. Como um leitor qualquer, é tentado a crer que tal relato, tal descrição correspondam ponto por ponto à realidade, ao passo que se trata apenas de uma aproximação da realidade. Como alguém que crê, é tentado a pedir à história, e sobretudo à história das origens da igreja, modelos, exemplos para imitar e que bastaria reproduzir", (CHARPENTIER, Etiene. et al. Uma leitura dos Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas. 1983. p. 13-14). Esses dois leitores não consideram que a função da bíblia não é comprovar a história nem ser modelo para a fé, mas ser um elemento que pode ajudar

Por outro lado, tanto nós, como os autores do passado – e aqui podemos incluir Lucas e toda a Bíblia – somo frutos de nosso tempo e de nossa sociedade. Dessa forma e por isso cada texto que produzimos como também os textos antigos, são reflexos de uma época. "Por conseguinte todo livro de história é dúplice: em primeiro lugar é o relato de uma história passada, mas é também, em segundo lugar – mesmo inconfessadamente – reflexo da época na qual foi escrito" (CHARPENTIER, 1983, p. 15). O leitor, portanto, deve ter isso em mente ao fazer a leitura.

Em síntese podemos dizer que a Bíblia não serve como livro histórico. Entretanto pode ser utilizada como complementação para a compreensão da história de uma época. Da mesma forma que não podemos tomar qualquer texto e tentar dizer que ele é expressão da verdade, mas que expressa uma verdade, situada em um tempo específico. Tem valor para nós por que é um retrato de uma época, mas não a totalidade do período.

Neri de Paula Carneiro – Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador.

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