A BELEZA DO JAPÃO E A DELICADEZA DA MORTE NA OBRA DE JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS

Gustavo Uchôas Guimarães[1]

Escritor entre as décadas de 1940 e 1970, José Mauro de Vasconcelos produziu obras-primas da literatura brasileira, como Meu pé de laranja lima, Arara vermelha e Coração de vidro. Mas sua obra O palácio japonês, publicada em 1969, desponta por sua sensibilidade e pela forma belíssima como Vasconcelos retrata personagens orientais e trata a realidade da morte.

Para quem não leu a obra ou não se recorda, O palácio japonês conta a história de Pedro, um artista solitário e sem inspiração que começa a ver na Praça da República (São Paulo) um palácio em estilo japonês e conhece o príncipe Tetsuo, menino sensível, sábio e adoentado que inspira o artista Pedro. É um livro que, de tão envolvente, desperta a vontade de lê-lo muitas vezes e tendo cada leitura a correr sem interrupções, se possível.

A temática que perpassa a obra é uma realidade que os japoneses enxergam diferente de nós, ocidentais: a morte. Esta realidade, mesmo que garantida para todos, é alvo de reflexões ou rejeições ao longo da História. Segundo Combinato e Queiroz (2006), “para o homem ocidental moderno, a morte passou a ser sinônimo de fracasso, impotência e vergonha”. Basta vermos, nos meios de comunicação, quantas propagandas mostrando produtos que rejuvenescem ou pelo menos retardam o envelhecimento, em uma tentativa velada de burlar a morte ou adiá-la o máximo possível. Ainda segundo Combinato e Queiroz, a cultura burguesa passou a enxergar o ser humano pelo ponto de vista do trabalho e da produção. Assim, podemos afirmar que a ideia da morte como algo vergonhoso na cultura ocidental associa-se à ideia de que, com a morte, acabam a produtividade e a força de trabalho, o que para o burguês seria um prejuízo.

Já para os japoneses, a morte é algo que une as famílias. Segundo Sato (s/d), em famílias japonesas mais tradicionais os familiares ficam junto a seu ente querido nos últimos momentos e eles mesmos preparam o corpo e acompanham minuciosamente os funerais, tendo a presença de um monge budista e praticando ritos que sincretizam o budismo[2] e o xintoísmo[3].

No livro O palácio japonês, percebe-se esta característica da presença familiar ao longo de toda a obra, sendo o jovem Tetsuo constantemente acompanhado pelo tio e mestre Kankuji. É ele que impõe limites ao jovenzinho japonês, no sentido de coibir quaisquer ações que enfraquecessem a já debilitada saúde de Tetsuo. E são os dois, Kankuji e Tetsuo, que mostram a Pedro as maravilhas do palácio ao mesmo tempo em que o preparam delicadamente para a morte do jovem príncipe.

A relação de Tetsuo com a morte é também destacável na obra O palácio japonês. Em suas conversas com o amigo Pedro, o príncipe mostra-lhe duas flores: uma branca, a flor da vida; e uma escura, a flor da morte.

- Para mim, só existem duas flores importantes, Pedro. Elas estão em minhas mãos.

Apresentou a mão esquerda fechada e entreabriu-a delicadamente.

- Esta, a flor branca da vida.

Suspendeu a outra mão.

- E esta, a mais linda das flores. A mais escura, a mais calma: a flor da morte. Suas pétalas são forradas de veludo macio e negro, para amparar com carinho a flor da vida.

(VASCONCELOS, 1973, p. 58-59)

É interessante pensarmos esta relação com as flores. Realmente, os japoneses têm diversos simbolismos em torno das espécies florais. Rosa (2015) enumera diversas espécies de flores e seus significados para os japoneses. No entanto, ao contrário de O palácio japonês, a flor que é usada para funerais (portanto, associada à morte) é o crisântemo branco. O que Vasconcelos escreveu ao associar uma flor escura à morte reflete o simbolismo ocidental que liga a morte à cor escura.

É quase impossível falar da cena em que Tetsuo menciona as flores sem recordar a obra Flor da morte, de Henriqueta Lisboa[4]. Nesta obra, Lisboa (2004) mergulha em uma sensibilidade em relação à morte comparável a sensibilidade de Vasconcelos, como no poema a seguir:

Vem, doce morte. Quando queiras.
Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens
desfilam pálidos casulos
e o suspiro das árvores - secreto -
não é senão prenúncio 
de um delicado acontecimento.

Quanto queiras. Ao meio-dia, súbito
espetáculo deslumbrante e inédito
de rubros panoramas abertos
ao sol, ao mar, aos montes, às planícies
com celeiros refertos e intocados.

Quando queiras. Presentes as estrelas
ou já esquivas, na madrugada
com pássaros despertos, à hora 
em que os campos recolhem as sementes
e os cristais endurecem de frio.

Tenho o corpo tão leve (quando queiras)
que a teu primeiro sopro cederei distraída
como um pensamento cortado
pela visão da lua
em que acaso - mais alto - refloresça.

No poema acima e em O palácio japonês, a morte é enxergada com uma naturalidade que chega a soar estranho no mundo ocidental moderno, tão cheio de tentativas de driblar a morte ou afastá-la por todo o tempo que for possível.

Também pode-se ver em O palácio japonês outros aspectos da cultura japonesa. Logo no início do livro, é mencionado o estilo arquitetônico peculiar a templos e palácios:

Parecia um templo enorme cravado nos séculos. O grande teto terminava em pontas compridas que se dirigiam também para o alto. Dividia-se em duas partes o Palácio. No andar de cima as paredes possuíam um vermelho nacarado[5] e no inferior apenas um branco tão branco que doía na vista. Nenhuma porta, nenhuma janela. Se existissem estavam totalmente abertas.

(VASCONCELOS, idem, p. 24)

Segundo o Consulado Geral do Japão no Rio de Janeiro (s/d), o estilo arquitetônico japonês sofreu grande influência da cultura budista que veio da China no século VI, embora tenha preservado seu caráter original de íntima ligação com a natureza, criando relações harmônicas com todos os elementos do ambiente onde se encontra a construção (normalmente de madeira). Além das construções em madeira, são populares os jardins, que aparecem também na descrição feita por Vasconcelos em O palácio japonês:

Um pequeno lago muito azul surgia bordado por pedras brancas arredondadas. Uma ponte ligava o jardim, passando sobre o lago. Plantas estranhas e finas balançavam ao vento. E pessegueiros e macieiras esparsamente mostravam suas flores perfumadas. Umas brancas, outras róseas.

(idem, ibidem, p. 29)

Além do estilo arquitetônico, O palácio japonês menciona elementos orientais como os animais (dragões, cães, galos, tigres, etc[6]), a sabedoria[7] e os alimentos (carne de porco com mel, por exemplo). Até a idade de Tetsuo (oito anos) é um detalhe a parte na obra: segundo Kaneoya (2008), o número 8 é sagrado para os budistas, simbolizando um ciclo que se encerra.

O palácio japonês tem em si, além da genialidade criativa de José Mauro de Vasconcelos, uma beleza e uma capacidade de cativar que realmente prendem o leitor. Apesar de ter sido publicada no final dos anos 1960, a obra ainda tem o poder de despertar o interesse de leitores de todas as idades, principalmente por sua sensibilidade e por sua visão diferenciada e bela sobre a morte, esta realidade que tanto queremos esquecer, mas da qual não escaparemos e com a qual podemos e devemos conviver harmonicamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COMBINATO, Denise Stefanoni; QUEIROZ, Marcos de Souza. Morte: uma visão psicossocial. Revista Estudos de Psicologia, Natal, v. 11, nº 2, mai./ago.2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X2006000200010> Acesso em: 12 mai.2015.

CONSULADO GERAL DO JAPÃO NO RIO DE JANEIRO. Artes visuais. Disponível em: <http://www.rio.br.emb-japan.go.jp/caracteristicas/cultura_artev.htm> Acesso em: 12 mai.2015.

KANEOYA, Bruno. O Caminho de Shikoku, a renovação. Disponível em: <http://www.nipocultura.com.br/?p=257> Acesso em: 12 mai.2015. Postado em: 14 abr.2008.

LISBOA, Henriqueta. Flor da morte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. 58 páginas.

ROSA, Maria. Significado e linguagem das flores no Japão. Disponível em: <http://mundo-nipo.com/ultimas-noticias/10/08/2013/significado-e-linguagem-das-flores-no-japao/> Acesso em: 12 mai.2015. Atualizado em: 23 fev.2015.

SATO, Cristiane A. Falecimento. Disponível em: <http://www.culturajaponesa.com.br/?page_id=250> Acesso em: 12 mai.2015.

VASCONCELOS, José Mauro de. O palácio japonês. São Paulo: Melhoramentos, 1976. 7ª edição. 113 páginas.



[1] Pós-graduado em Metodologia do Ensino de História e Geografia pela Universidade Barão de Mauá, graduado em História pela Universidade de Franca e em Normal Superior pela Universidade Presidente Antônio Carlos; e-mail: [email protected]

[2] Conjunto de tradições ligadas às palavras do indiano Sidarta Gautama, que viveu no século VI a.C. e recebeu o nome de Buda (O Iluminado, em sânscrito).

[3] Conjunto de práticas espirituais e religiosas originário no Japão e cujo nome, no chinês, significa caminho dos deuses.

[4] Poetisa mineira (Lambari, 1901 – Belo Horizonte, 1985). Publicou Flor da morte em 1949.

[5] Coloração rósea.

[6] Os animais mencionados são parte do calendário chinês (“Ano do Tigre”, “Ano do Cachorro”, etc).

[7] - Que idade tem você, Tetsuo? A sua sabedoria me confunde.

- Oito anos, apesar da minha fragilidade aparentar menos, não é? Mas não importa; a verdade é que tenho oitenta, oitocentos, talvez oito mil anos ou seja mesmo da idade do primeiro homem.

(VASCONCELOS, ibidem, p. 39)