09/05/2011


A Barca


Autor: Eduardo Silveira



Olavo correu o mais que pode para conseguir pegar a barca que já anunciava a sua saída com o toque do terceiro dos três apitos sonoros. Finalmente conseguiu. Entrou, apertando-se por entre os passageiros, até conseguir um local para ficar. Era de manhã e as barcas, aquela hora, saíam completamente lotadas. As pessoas, em pé, se acotovelavam umas nas outras, algumas pediam desculpas, outras não. E assim começava a rotina diária da maioria daqueles passageiros.
Olavo ainda havia pego, a caminho das barcas, uma chuva fina e estava com o paletó todo respingado. Mas ele estava acostumado com aquela situação e para passar o tempo, depois que encontrava um lugar para ficar, ficava olhando discretamente para os passageiros, tentando ver algum conhecido ou alguém fazendo alguma coisa engraçada, ou então, pensava na vida, no trabalho, em alguns planos e assim, devaneando, a viagem ia transcorrendo serenamente, embora o desconforto se fizesse presente.

Então, subitamente, seus olhos perceberam-se sendo observados por outro par de olhos. No primeiro instante ele olhou e desviou o olhar, pois como era muito tímido, saber-se observado o deixava muito incomodado. Ele olhou para um lado, para o outro, disfarçou e voltou novamente seu olhar perscrutador em direção aos olhos que o examinavam e viu, para a sua surpresa, que ainda era alvo de uma observação por parte de uma linda moça. Num arroubo de coragem, ele manteve o olhar fixo e ficaram assim, se encarando por algum tempo.
Olavo, tinha um metro e setenta e cinco de altura, estava um pouco acima do seu peso, uma calvície acentuada já se fazia presente, e portanto, ele sabia que não refletia exatamente, a imagem de nenhum galã de Hollywood. Sentir-se assim, atrevidamente observado, deixou-o um pouco constrangido mas, ao mesmo tempo feliz, pois a dona daquele olhar era realmente, uma moça muito bonita.
Embora estivessem longe um do outro, passaram a maior parte da viagem trocando olhares. Às vezes, quando ela olhava para o outro lado, ele aproveitava e observava o que podia nela. Notou que seu cabelo era castanho claro e vinha quase até o meio das costas, sua pele era clara, seu rosto era ovalado, seu nariz muito delicado, seus lábios eram finos, bem delineados e seus olhos, que, à distância, pareciam ser claros, eram simplesmente lindos. E ela continuava a olhá-lo.
Quando Olavo percebeu que a barca estava chegando ao seu destino, procurou chegar mais perto dela, mas, era humanamente impossível, pois a quantidade de pessoas era enorme. Não havia espaço para transitar ali dentro. Ele tinha que esperar a barca parar, os passageiros irem saltando para, assim quem sabe, tentar se aproximar dela. Mas era muito difícil.
Quando a barca finalmente parou e os passageiros foram saindo, ele viu com uma certa angústia, que a moça também ia seguindo o fluxo, ela não podia ficar parada. Ela olhou para ele umas duas ou três vezes antes de saltar. Ele, queria chamá-la, pedir para ela esperá-lo, mas não deu. Ela foi engolida por aquela turba vigorosa e apressada e acabou sumindo em meio à multidão. Quando Olavo saiu da barca, olhou para todos os lados mas não conseguiu vê-la. Um verdadeiro desfile de pessoas, roupas, cores, tudo se misturavam ali, naquela plataforma de desembarque. Olavo ainda pensou que ela pudesse estar lá fora disfarçando para esperá-lo, mas qual nada! A euforia de Olavo foi cedendo espaço para uma inexplicável angústia acompanhada de uma certa tristeza.
Depois de ficar parado alguns minutos olhando à sua volta, ele desistiu de procurá-la e tomou o rumo do seu trabalho.
Olavo, ficou pensativo durante todo o expediente, e não conseguiu encontrar uma explicação para o que acontecera. Nunca em sua vida sentira algo tão intenso e que mexera tanto com ele como o episódio daquela manhã. E mais espantado ficara, ao lembrar de como havia reunido tanta coragem para encará-la e depois ainda sair procurando-a plataforma afora. Era como se tivesse encontrado a mulher da sua vida e logo em seguida, a tivesse perdido. Talvez por isso, em seu coração, houvesse aquela sensação de um grande vazio. Ele achava que aquilo tudo era, no mínimo, uma leviandade da parte dele. Como alguém em seu juízo perfeito poderia ter um comportamento assim? - se perguntava. Será que ele se apaixonara por aquela moça? - continuava se perguntando. Aquilo era uma coisa inconcebível para um homem como ele, que era uma pessoa ponderada, metódica, inteligente e que apesar de ter trinta e cinco anos, e nunca ter se envolvido amorosamente com ninguém, acreditava que um amor assim, tão repentino, só existia em filmes.
Olavo era um homem extremamente tímido. Ficara surpreso consigo mesmo pelo seu comportamento naquela manhã, ao encarar o olhar daquela moça. Aquilo nunca acontecera. Sempre se esquivara de tais situações. Sua timidez não permitia que ele tivesse esses impulsos. As pessoas estranhavam o fato dele nunca estar com uma namorada. Uns achavam que ele era homossexual, outros diziam que ele era só um homem tímido. E ele, quando era mais novo, para disfarçar sua solidão sempre dava uma desculpa para a mãe, com quem ainda morava, ou para alguns poucos amigos de que precisava estudar para conseguir um bom emprego e a partir daí formar a sua própria família. Mas em seus sonhos se via casado, com uma esposa, filhos, uma casa, enfim, uma vida normal como tantas outras pessoas.
Havia uns dez anos que ele já estava muito bem empregado. Era contador de uma empresa multinacional, tinha um bom salário e isso aguçava as intenções de algumas colegas de trabalho e algumas, mais afoitas, até já haviam dado em cima dele, mas ele sempre achava um jeito de dispensá-las, sempre com tato e discrição. Olavo tinha um cuidado extremo com a sua mãe. Cuidava dela com todo amor e carinho. Ela era a razão da sua vida. Desde que o pai os deixara e fora embora com outra mulher, Olavo, ainda adolescente, vira o quanto a mãe trabalhara para cuidar dele. Por isso, ele sempre procurara trabalhar de dia e estudar à noite para concluir seus estudos e assim poder dar uma vida melhor à mãe. E conseguiu.
Passaram-se alguns dias e Olavo angustiadamente procurava toda manhã, encontrar na barca, a moça que era a dona do olhar mais lindo que ele já havia visto na vida. Mas não a encontrava. O tempo passou e aquele encontro foi aos poucos sendo esquecido. Olavo se concentrava em outros projetos, em outras atividades na empresa e que tomavam muito do seu tempo.
Com licença! Com licença! - pediu a moça com uma voz suave, ao mesmo tempo em que se esgueirava entre Olavo e um outro senhor que estava ao seu lado. Olavo que estava de costas , afastou-se um pouco para que a moça pudesse passar e ela agradeceu.
Obrigado! - disse ela.
Olavo ao olhar para ela pensou que seu coração fosse parar. Ali, bem na frente dele, a um palmo de distância, recostada numa porta de ferro da barca estava ela... a moça dos olhos mais lindos que ele já vira e que agora, mais do que nunca, tinha essa certeza. Olavo olhava-a como se olhasse uma Madona. Ela era tão linda assim de perto, seus olhos tinha um brilho tão...tão.
Como vai, tudo bem?
Olavo estava tão embevecido olhando-a que nem percebeu que ela estava falando com ele.
O senhor está bem? - perguntou ela.
O que? - assustou-se ele, ficando ruborizado.
Eu perguntei se o senhor está bem. - repetiu ela ? Desculpe, não queria incomodá-lo.
Não! Não! - respondeu ele , sem saber direito o que estava falando.
Ela calou-se e olhou para o outro lado. Olavo quis falar alguma coisa, mas a sua timidez o travou. Sentiu um calor subir-lhe pelo corpo e depois um frio, como se a lâmina de uma espada muito afiada varasse sua espinha de alto a baixo. Ela olhou novamente para ele. Olavo queria morrer de tão desesperado que estava, pois não conseguia pensar em nada, não conseguia pronunciar nenhuma palavra, esperara por aquele momento tantas vezes e agora...nada.
Nossa! Essa barca parece que quanto mais os dias passam, mais ela enche, não é? - Falou o senhor que estava ao lado dele, dirigindo-se a ambos.
É. - respondeu Olavo.
É mesmo. Eu acho que deviam controlar melhor o numero de pessoas que embarcam. - disse ela sorrindo discretamente.
Pois é. - continuou o senhor. - E a senhora sabe que aqui não tem salva vidas para todo mundo, não sabe?
Não tem não? - respondeu ela. - Nunca pensei nisso.
Pois é bom pensar. Fique atenta. _ disse o senhor.
Olavo ouvia aquela conversa e queria se intrometer, dar um palpite, dizer alguma coisa, mas não conseguia. O senhor, talvez vendo o quão constrangido ele estava, perguntou-lhe:
O senhor é advogado?
Não. - respondeu Olavo, e completou ? sou contador.
Gosta do que faz? - perguntou ela, encarando-o com aqueles incríveis olhos azuis esverdeados.
Eu...eu - gaguejou ele.
Contador, né? - repetiu o senhor. - Meu filho também é contador de uma empresa americana.
Ah, é? - perguntou Olavo.
É, sim. E ele gosta muito do que faz. Adora números, tabelas, cronogramas essas coisas.
É. É um trabalho bastante interessante sim. - respondeu Olavo.
Pronto! - disse ela.
Pronto? Pronto... o que? - perguntou Olavo.
Pronto! O senhor já respondeu a minha pergunta.
Que pergunta?
Eu perguntei se o senhor gostava do que fazia, lembra?
Ah, sim! Lembro sim.
Pois então! Quando eu disse "pronto", quis dizer que o senhor tinha respondido a minha pergunta, entendeu?
Ah, sim. Agora entendi.
Pois eu vou dizer uma coisa, - falou o senhor. - esse negócio de matemática, cálculos e etc, não é comigo. Eu gosto mesmo é de uma boa leitura.
Também gosto de ler. - disse ela.
Eu adoro ler. - falou Olavo sorrindo discretamente.
Acho que nós três aqui somos amantes de uma boa leitura, não é não? - riu o senhor.
Ah, eu adoro ? disse ela ? principalmente romances. Adoro uma história de amor
O coração de Olavo quase parou ao ouvi-la dizer aquilo.
Eu também gosto muito de romances, - disse o senhor. - Você já leu Ana Karenina, de Tolstoi?
Não.
Já. - disse Olavo.
E gostou? - perguntou o senhor.
Muito. É uma linda história.
Eu ainda não li. - disse ela.
Se você quiser posso lhe emprestar. - disse Olavo num rasgo de ousadia.
E o senhor emprestaria um livro para uma pessoa que nem conhece direito?
Pra você eu emprestaria. - respondeu Olavo rubro de vergonha.
E se eu não lhe devolver o livro? - instigou ela.
Olavo teve vontade de despejar todas as palavras que estavam dentro do seu coração. Queria dizer à ela que não importava se ele devolvesse ou não o livro, que ele poderia comprar mais de mil livros, se quisesse, mas que atender um pedido dela , isso sim, não tinha preço. Que ouvir a sua voz, entrando pelos seus ouvidos, era como se ouvisse a Quinta sinfonia de Beethoven. Que só de olhar aqueles olhos azuis esverdeados assim tão de perto, era como subir aos céus e descer ao mais profundo dos oceanos e que...
Estamos chegando!
O que? - Perguntou um Olavo meio assustado.
Eu disse que estamos chegando. - falou o senhor.
Ah, sim...sim! - respondeu Olavo, interrompendo os seus pensamentos.
Vai me emprestar? - perguntou ela.
O que?
O livro da Ana não sei o que?
Ah, sim... Ana Karenina!
Isso aí! Então?
Então...o que?
Acho que o senhor ainda está com sono, sabia?
Eu? Por que?
Olha, se não quiser me emprestar eu vou entender e além do mais...
Não! Não! Por favor, não me entenda mal... eu empresto sim. Só não sei como fazer para te entregar o livro.
Anota o meu telefone e aí a gente marca um lugar pra se encontrar, o que o senhor acha?
Olavo não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Era muita felicidade de uma só vez.
É melhor irmos andando. - falou o senhor ao lado deles.
É. É sim. - respondeu Olavo enquanto procurava uma caneta para anotar o telefone dela.
Vai me ligar mesmo? - perguntou ela.
Vou. Vou sim. - respondeu um Olavo com o peito quase explodindo em êxtase.
Então... anota aí.

Os encontros foram se sucedendo dia após dia. Olavo, a cada dia que passava, estava mais apaixonado por Carla, esse era o nome da moça. Ela disse a ele que cuidava de idosos e que o seu trabalho não era diário, só trabalhava quando a chamavam. Ele achou aquilo maravilhoso. Quem sabe ela poderia cuidar da sua mãe, pensou ele. Começaram a namorar e Olavo se desdobrava em gentilezas e mimos para com a sua amada. Ela, por sua vez, também era muito atenciosa, delicada, doce, e muito...muito... ardente.
Olavo queria muito fazer amor com ela, mas ela dizia que sexo só depois que se casasse. No máximo, eles poderiam ir a um motel, onde ficariam nus e dormiriam juntinhos, e assim iriam se acostumando, um com a intimidade do outro. Olavo concordou na hora. E assim foi feito. Repetiram essa situação várias vezes.
Depois de dez meses de namoro, casaram-se. Olavo não cabia em si de tanta felicidade. A mãe de Olavo, nada dissera, mas no fundo não gostara nem um pouco da nora. Mas via que o filho estava tão feliz que resolvera calar-se. Carla reinava absoluta na casa nova que Olavo comprara a pedido dela. Ela preferiu não morar junto com a sogra e ele, muito à contragosto, concordou. Mas, deixou bem claro que iria comprar uma casa perto da casa da mãe. Carla concordou.
Ele pediu para ela deixar o emprego, pois poderia suprir todas as suas necessidades, mas ela não aceitou. Disse que os pacientes idosos precisavam muito dela e que não poderia de jeito nenhum deixar de atendê-los. Olavo concordou com lágrimas nos olhos ao ver tanta dedicação da parte dela. Numa quinta feira à tarde, Carla ligou para Olavo e disse que precisava ir atender um paciente no Rio de Janeiro e que teria que dormir lá. Olavo concordou e pediu para ela ir com o carro novo que ele havia lhe presenteado. Ela concordou e despediu-se mandando-lhe um beijo bem ardente e o fez prometer que a esperaria na sexta feira com uma surpresa muito especial. Olavo sorriu ao telefone e disse que já sabia a surpresa que ele lhe faria. Carla riu e desligou.
Ela se arrumou, foi até a garagem, entrou no seu carro novinho e saiu deslizando pelas ruas em direção à casa de Dona Estelita, uma cafetina que explorava o comércio de prostituição e do qual Carla fazia parte desde os doze anos de idade. Mas antes, ela precisava passar em uma loja e comprar um presente bem bonito para dona Estelita, já que era seu aniversário e também porque Carla queria usar pela primeira vez o seu novo cartão de crédito internacional. E além do mais, aquela festa prometia... ah, se prometia!


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