A Atuação do Brasil no Tráfico Internacional de Pessoas.
Por Lara Liny Leite Sousa | 13/11/2015 | DireitoA Atuação do Brasil no Tráfico Internacional de Pessoas.
* Lara Leite
O Fim da Guerra Fria e a ascensão do capitalismo representaram o início de uma nova Ordem Mundial marcada, principalmente, pelo estreitamento das barreiras entre os países. O progresso tecnológico e a diminuição das barreiras estatais acabaram por facilitar a ação de redes criminosas internacionais. Além do que, a interdependência entre os Estados gerada pela disparidade socioeconômica favoreceu para que houvesse uma maior vulnerabilidade das vítimas de crimes transnacionais.
Deste modo, este artigo vem apresentar o Tráfico Internacional de Pessoas como um destes crimes que é considerado uma forma moderna de escravidão sendo uma das piores formas de violação de direitos humanos transformando-se em um dos maiores dilemas do século XXI.
Este problema acarreta um desequilíbrio ao Estado de Direito, no que diz respeito aos problemas causados a sociedade. O referido crime é, por sua vez, uma das formas mais vantajosas do tráfico internacional, perdendo apenas para o tráfico de drogas. O faturamento desse tipo de tráfico é tão alto, que segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Tráfico de Seres Humanos produz uma rentabilidade de 32 bilhões de dólares por ano, sendo que 9,5 % desse valor, passa pelo Brasil.
Um dos motivos que torna esta modalidade de tráfico vantajosa é a sua característica silenciosa e peculiar, pois a mesma possui um baixo custo e baixo risco, Além do que, o fato de a pessoa humana ser a mercadoria, a mesma pode ser vendida várias vezes.
O crime vem tomando uma proporção tão grande que, segundo informações do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e o Crime (UNDOC), o fim da Guerra Fria representou um aumento significativo na atuação de redes criminosas referentes ao Tráfico de Pessoas. Segundo o referido escritório, o continente europeu recebe cerca de 500 mil vítimas de tráfico humano por ano. O aumento desse tipo de crime tem gerado vários problemas, entre eles, a questão da violação dos direitos humanos. A ONU e o mundo estão cada vez mais preocupados em combatê-lo.
Em geral, esta pesquisa pretende apresentar o Tráfico Internacional de Pessoas como um problema, que vem tomando um espaço cada vez maior na agenda internacional e que merece, a todo modo, uma atenção especial. Devido a isso, e pelo fato de o Brasil ser um país residente de muitas vítimas de tráfico, o Estado ratificou, em 2004, o Protocolo adicional a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças que define o crime como:
Por “tráfico de pessoas” entende-se o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos[1];
O Protocolo de Palermo, adotado pelo Brasil em 2004, foi o primeiro instrumento internacional acerca do TSH a tratar da temática com um aspecto específico e universal. Anteriormente, o que era tratado apenas no âmbito da servidão e prostituição relativa ao tráfico de mulheres e crianças passou a ser definido como um fenômeno global definindo o tráfico como conceito que engloba todos os seres humanos, independente de gênero, classe ou cor. Além de especificar outras formas de servidão, ressaltando a exploração como um fator inerente ao Tráfico de Pessoas[2].
Esse protocolo foi criado com o intuito de proporcionar aos seus países membros uma base institucional de combate ao TSH. É relevante, explicitar que a luta contra este crime é um problema generalizado e complexo, principalmente pelas inúmeras formas de interpretação que o mesmo possui. Para isso, o protocolo veio a institucionalizar uma definição universal acerca do tráfico de pessoas, configurando ferramentas e obrigações de combate aos seus ratificadores.
Nesse sentido, entra-se profundamente no tema em questão, impulsionando um longo debate acerca do seu enfrentamento no contexto brasileiro. Desta forma, a problemática em questão é referente à incoerência da legislação nacional quando comparada com normativa internacional, ou seja, o presente debate gira em torno de questões referentes ao Código Penal Brasileiro, que por sua vez, não traz uma definição adequada às regras da ONU presentes no Protocolo de Palermo.
Assim, discute-se que, se o Brasil assumiu uma obrigação internacional ao aderir ao referido protocolo, é necessário que o mesmo cumpra com a sua responsabilidade internacional de forma completa e eficaz.
Partindo deste pressuposto, é feita uma análise comparativa entre os artigos do Código Penal brasileiro referente ao Tráfico de Pessoas e a normativa internacional, apontando suas principais falhas e fazendo referências a possíveis soluções, além de fazer uma pequena alusão a respeito da definição de tratados demonstrando suas formas de adesão nas normativas internas do país.
Contudo, é importante salientar o que é um tratado e como funciona a incorporação do mesmo pelos sujeitos do Direito das Gentes (Direito Internacional Público) para que melhor se entenda a funcionalidade e conjuntura das normas internacionais e nacionais. Deste modo, será destacado seu conceito, suas tipificações, suas terminologias e por fim, como funciona o procedimento de adoção do mesmo em um Estado soberano, tratando com prioridade, o Brasil.
A definição de Tratado presente na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT) relata que o termo “tratado” significa “um acordo internacional concluído por escrito entre estados e regido pelo Direito Internacional, quer conte de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação especifica” [3].
Os Tratados Internacionais são, atualmente, considerados por Mazzuoli a principal conjectura do Direito das Gentes, pois os mesmos são incontestavelmente necessários, para manter a salvaguarda do sistema internacional. Além do que, proporciona uma maior interação democrática entre os sujeitos do Direito Internacional Público na formação de normas jurídicas comum entre os mesmos no plano externo[4].
Para Varella, o tratado é o principal recurso proveniente do Direito das Gentes, pois o mesmo reflete a vontade dos sujeitos do direito internacional de obrigar-se a uma norma jurídica comum entre si. O autor argumenta que estas relações jurídicas internacionais são construídas, primordialmente, sob o consentimento dos Estados ou Organizações Internacionais. Deste modo, os sujeitos com personalidade jurídica no plano internacional, não são obrigados a assinar ou ratificar qualquer acordo se não for da vontade dos mesmos[5].
Segundo Resek, um tratado é um acordo de vontades firmado por sujeitos do Direito Internacional Público que objetiva gerar efeitos jurídicos[6]. Para entender quem são os sujeitos aptos a efetuar estes acordos, o autor frisa que antes de vir a vigor internacional, a Convenção de Viena Sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais (1986), que veio para complementar a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969), apenas Estados Soberanos possuíam poder autônomo para celebrar tratados, e que após a convenção, as Organizações Internacionais foram reconhecidas como sujeitos do Direito Internacional, também, capazes de firmá-los[7].
Accioly menciona que existem várias classificações para os tratados, sendo a mais comum referente ao número de partes vinculadas a ele, podendo ser bilateral ou multilateral. A primeira trata-se de um acordo firmado entre duas partes e a segunda entre três partes ou mais[8].
As terminologias referentes aos tratados são inúmeras. No entanto, segundo as duas convenções internacionais sobre o direito dos tratados citadas acima, o termo “Tratado” é a forma geral que engloba todas as outras expressões, significando um acordo entre partes gerenciado pelo direito internacional público[9].
Resek ressalta que as expressões mais comuns usadas na denominação de Tratados Internacionais são: Acordo, arranjo, ata, ajuste, ato, código, carta, pacto, compromisso, contrato, constituição, convenção, protocolo, memorando, regulamento, convênio, estatuto e declaração. O autor cita que apesar destes nomes serem usados de uma forma contingente, algumas terminologias são usadas, de acordo com a finalidade do tratado, mesmo que não obrigatórias a eles de forma específica[10].
Segundo o autor, os termos carta e constituição são usados, geralmente, na denominação de tratados constitutivos de organizações internacionais. Já os termos memorando, ajuste e arranjo costumam ser usados em tratados bilaterais[11].
Para Accioly, a palavra estatuto, por sua vez, é usada quando se refere a relações com a Corte Internacional de Justiça. E a terminologia convenção é usualmente aplicada em acordos multilaterais de grande dimensão[12].
É possível encontrar algumas denominações usadas, geralmente, em determinadas situações, porém, para Resek a única usada exclusivamente em uma só situação é a concordata, reservada apenas a acordos bilaterais de cunho religioso, tendo, necessariamente, como uma das partes, a Santa Sé[13].
Segundo Accioly, apesar deste gama de denominações provenientes dos Tratados Internacionais, todas possuem o pressuposto de uma determinação conjunta dos sujeitos do direito internacional público acerca de determinado assunto, estipulando direitos e obrigações para as partes contratantes[14].
O autor ainda especifica que estes direitos e obrigações são firmadas se o acordo for validado. Por isso, é preciso que haja o consentimento de todas as partes contratantes, além do que, é necessário que exista a licitude e viabilidade dos objetivos do tratado[15].
Estes direitos e obrigações acontecem no momento em que o país adere ao tratado e aceita obrigar-se a ele por meio do livre consentimento. Accioly ao argumentar sobre a questão do consentimento, menciona a CVDT (1969), que estipula em seu art.11 - “o consentimento de um Estado em obrigar-se por um tratado pode manifestar-se pela assinatura, troca de instrumentos constitutivos do tratado, ratificação, aceitação, aprovação ou adesão” [16].
Desta forma, o autor discute as diferentes formas de expressão de consentimento e ratificação do tratado pelas partes contratantes. O que as diferenciam são a natureza do tratado, isto é, se o mesmo é multilateral ou bilateral, se o tratado necessita ou não da ratificação após a assinatura. Ainda irá depender do país que está aderindo ao tratado, se o mesmo necessita ou não da aprovação parlamentar.
Segundo ele, a ratificação se dá por meio da Carta de Ratificação, que por sua vez, é subscrita pelo chefe de Estado e firmada pelo ministro das relações exteriores. A carta vem incorporada pelo compromisso do Estado em cumprir o tratado, também é composta, muitas vezes, pelo texto completo do mesmo[17].
O Autor ainda destaca que para que o tratado entre em vigor, é necessário, que as partes contratantes façam a troca da carta de ratificação, em casos de acordos bilaterais, ou depositem a mesma no local destinado a elas, no caso de acordos multilaterais. Em casos de tratados multilaterais, é preciso ter um número mínimo de depositários para que assim, então, o tratado entre em vigor[18].
Com respeito à aprovação parlamentar, Accioly menciona o caso do Brasil, cujo tratado ao ser assinado pelo executivo deve passar pela aprovação do legislativo para que, então, entre em vigor[19].
Em contrapartida, Resek aponta os chamados “Acordos Executivos” também conhecidos como “Acordos Simples”, inspirados no modelo americano, nos quais não necessitam da aprovação parlamentar para que entrem em vigor. Desta forma, o compromisso é selado e confirmado no ato da assinatura do acordo, ou necessita de certo tempo para que seja feita uma análise puramente governamental e de inteira competência do executivo[20].
Após a ratificação de um tratado, é importante salientar, que há questões de obrigatoriedade internacional, que firmam a ideia de que ao ratificar determinado acordo internacional, o Estado se faz obrigado a cumpri-lo, pois, é no exercício de sua liberdade soberana que o país expressa a sua vontade de obrigar-se a ele.
Para Mazzuoli, existem duas correntes doutrinárias com seguimentos elaborados para explicar a questão da obrigatoriedade internacional. Sendo a primeira denominada de “Corrente Voluntarista” e a segunda chamada de “Corrente Objetivista” [21].
O autor faz uma alusão entre as duas correntes apontando a primeira como derivada do positivismo, cuja obrigatoriedade para com os acordos internacionais é advinda, essencialmente, da vontade comum dos Estados, que consentem, em igualdade, a obrigar-se por um tratado em busca de um objetivo conjunto, não se sobrepondo um Estado, a vontade do outro[22].
No entanto, ao fazer esta afirmação, o autor cita algumas críticas referentes a este pensamento, alegando que é controversa a ideia de que uma obrigação pode ser criada a partir de uma liberdade de escolha. Ele ainda menciona que as relações internacionais estariam sendo submetido a uma insegurança, caso algum dos sujeitos do Direito das Gentes, resolvesse se retirar de um tratado, pois, assim, estaria comprometendo o todo. Esta crítica baseia-se na concepção de que “é um erro basear o direito sobre a mera vontade do Estado” [23].
Ao proceder com as críticas, Mazzuoli menciona que a Doutrina Voluntarista não poderia fundamentar as relações jurídicas no plano internacional, uma vez que, as normas vigoram autônomas da vontade dos Estados[24].
A segunda doutrina, apontada pelo autor, trata-se da corrente objetivista, que veio em contraposição a voluntarista. Esta por sua vez, parte do pressuposto de que a obrigatoriedade internacional é regida por princípios e condutas sublimes que não dependem da vontade dos Estados, tendo predominância perante as necessidades particulares dos mesmos[25].
O autor faz menção a autores como: Maurice Bourquin, Georges Scelle e H. Lauterpacht, que confirmam a ideia de que a vontade dos estados não explica a obrigação internacional ao afirmarem que: “O Direito não é um produto da vontade humana, mas uma necessidade advinda dos fatores sociais” [26].
Por fim, Mazzuoli menciona o que mais é interessante para o Direito dos Tratados. A Pacta Sunt Servanda é apontada pelo autor como uma terceira corrente, considerada consagrada no plano internacional. Desta, parte o pressuposto de que o Direito das Gentes é regido por princípios internacionais superiores ao parecer do Estado. No entanto, a mesma é uma junção do que se entende por objetivismo e voluntarismo, pois nesta, é levada em consideração, também, a vontade do Estado, pois, ao ratificar um tratado, o faz por livre e espontânea vontade[27].
Entretanto, há a necessidade de cumprimento do tratado de acordo com os princípios da boa fé e do Pacta Sunt Servanda. Este último, por sua vez, significa que “as partes tem o dever de cumprir e respeitar aquilo que foi acordado no plano internacional”, isto é, as partes devem obedecer aos tratados, pois as mesmas o ratificam no livre exercício de sua soberania[28].
Ao tratar do procedimento de incorporação de tratados no Brasil, é importante acentuar que há uma diferença entre assinar e ratificar um tratado, o primeiro é o ato inicial do sujeito do Direito Internacional Público. No entanto, ao assinar o compromisso, não significa, necessariamente, que o mesmo já tenha se obrigado a ele, a não ser que se trate de tratados executivos, como visto anteriormente[29]. Isso irá depender da natureza do tratado.
Naturalmente, a obrigação se dá no momento em que o representante capaz do Estado ou da Organização Internacional ratifica o tratado. Varella cita que “a ratificação é o ato formal do Estado pelo qual indica seu consentimento em estar submetido a um determinado tratado” [30].
No caso do Brasil, essa incorporação é dada por meio de dois poderes: o executivo e o legislativo, como é citado pelo autor no art. 84, VIII da Constituição Federal, apontando que é de competência exclusiva do Chefe de Estado: “Celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”. Ou seja, é de capacidade do executivo negociar e assinar, mas é o legislativo quem aprova e ratifica.[31].
Após a ratificação e aprovação do tratado, o mesmo é promulgado por um decreto presidencial e publicado no diário oficial, para que assim, ele possa ter valor normativo no âmbito interno. Porém, seguindo essas informações, Varella menciona que na Constituição Federal de 1988, não há nenhum indício de que o Brasil seja um país dualista. Para o autor, a constituição federal não exige que haja a internalização do executivo para que a norma jurídica internacional tenha valor no âmbito interno, uma vez que a mesma já foi ratificada pelo legislativo[32].
No entanto, os tribunais nacionais adotam a concepção de que o país segue um sistema dualista temperado. O direito interno e o direito internacional seguem ordenamentos jurídicos distintos. Neste sentido, deve existir um sistema duplo de adaptação das regras internacionais as regras nacionais, porque primeiramente, há o pacto internacional e depois, a internalização da norma jurídica internacional pactuada, para que assim, então, haja a formação de uma nova norma jurídica interna adaptada[33].
No Brasil, a força normativa dos tratados no âmbito interno é, geralmente, inerente a de uma lei infraconstitucional que por sua vez, exige que haja uma adaptação das normas do direito interno com as do determinado tratado[34]. É neste sentido, no entanto, que entra a problemática em questão. O Brasil, ao ratificar e internalizar o Protocolo de Palermo têm feito mudanças no âmbito interno, que sejam suficientes para combater o tráfico internacional de pessoas e para cumprir com o princípio da Pacta Sunt Servanda?
Umas das principais mudanças ocorridas, no âmbito interno, após a adesão do Protocolo de Palermo foram às alterações ocorridas na legislação em 2005, por meio da lei N º 11.106 e em 2009, pela Lei no 12.015, que deu nova redação aos artigos 231 e 231-A do Código Penal Brasileiro, com o objetivo de estabelecer mais rigidez à penalidade dos criminosos do tráfico de pessoas. No entanto, para Edmundo Oliveira, mesmo após essa alteração a legislação brasileira ainda permanece incompleta, por não adotar completamente as regras estabelecidas pela ONU descritas no referido protocolo[35].
Desta forma, por mais que a mudança ocorrida no artigo 321 tenha modificado a tipificação do crime de “Tráfico de Mulheres” para “Tráfico Internacional de Pessoas”, o código penal brasileiro especifica o crime apenas para fins de exploração da prostituição. Desta forma, ele se torna incompleto quando comparado à definição de tráfico de pessoas especificada no Protocolo de Palermo, que julga o crime, também, por outras vertentes como a remoção de órgãos, servidão, entre outras formas de exploração referentes ao trabalho forçado.
No entanto, apesar da tipificação específica do Código Penal – CP -Brasileiro não trazer uma definição completa acerca do tráfico internacional de pessoas quando comparada ao Protocolo de Palermo, existem outras tipificações que podem ser adequadas a determinadas condutas relacionadas ao referido crime. Ela Wiecko cita o artigo 207 do CP, que aponta “como crime contra a Organização do Trabalho, denominado Aliciamento para o Fim de Emigração, e consiste em “recrutar trabalhadores, mediante fraude””. Neste, o infrator é submetido a uma pena de 1 a 3 anos de reclusão[36].
A autora ainda cita o artigo 245 do CP, que configura como crime contra a assistência familiar o ato de entregar um “filho menor de 18 (dezoito) anos a pessoa em cuja companhia, o agente saiba ou deva saber que o menor fica moral ou materialmente em perigo, para obter lucro, ou se o menor é enviado para o exterior”. Este, por sua vez, atribui ao infrator uma pena de um a quatro anos de reclusão[37].
A autora cita o artigo 15 da lei 9.439, de 1997, que considera como “crimes comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano bem como promover, intermediar, facilitar ou auferir qualquer vantagem com a transação” e o artigo 17 configura como crime “recolher, transportar, guardar ou distribuir partes do corpo humano de que se tem ciência terem sido obtidos em desacordo com a lei”. Sendo o infrator da primeira submetido a uma reclusão de três a oito anos e multa, e o da segunda uma pena de seis meses a dois anos[38].
Além destes, também existem os artigos 149 e 206 que podem ser adequados ao crime de tráfico internacional de pessoas. O primeiro trata-se do delito relacionado ao tratamento de pessoas a condições análogas à escravidão, poupando as mesmas da liberdade de ir e vir devido a débitos acumulados com o patrão. A segunda, por sua vez, é referente ao aliciamento de trabalhadores com o fim de levá-los para o exterior[39].
Embora haja, na legislação nacional, tipificações que possam ser correlacionadas ao tráfico internacional de pessoas, ainda há irregularidade, e as normas internas não são de inteira consonância com a normativa internacional. Para Wiecko “as inadequações ocorrem na definição dos tipos penais, ou seja, nos verbos que constituem o núcleo, nos sujeitos passivos, no objeto jurídico e, ainda, na coerência entre as penas” [40].
Ao aprofundar nas críticas sobre estas inadequações, a autora cita que dentre as variações encontradas entre a normativa nacional e a internacional, está à questão da finalidade do crime, ou seja, o Estado brasileiro configura o tráfico internacional de pessoas somente para fins de prostituição, não especificando as outras formas de exploração sexual e tão pouco criminalizam as outras tipificações do crime descritas no Protocolo de Palermo[41].
Nesse sentido, também há uma diferença acerca do bem público protegido. No caso do tráfico internacional de pessoas, que é tipificado de forma especifica no artigo 231 do código penal, o bem público protegido é a moralidade pública, ou seja, os costumes. No caso do aliciamento de trabalhadores tipificado no artigo 207, a violação é contra a organização do trabalho e assim em diante[42].
Ao citar os verbos que indicam o ato ilícito do traficante descrito nas penas, a autora menciona que os mesmos são insuficientes para indicar as inúmeras formas de atuação no tráfico. Por ser uma rede de organização criminosa, cada um tem o seu papel, porém, todos possuem a mesma finalidade. Desta forma, é preciso abranger o tema e o conceito de tráfico descrito no código penal brasileiro, para que assim, não haja brechas na lei[43].
As análises referentes às formas de persuasão utilizadas pelos traficantes ainda estão sujeitas a discrepâncias. No âmbito interno, as mesmas são empregadas em termos como: “ameaça (mal injusto e grave), sequestro ou cárcere privado, estelionato, assédio sexual, abuso de autoridade, violência física”.
Desta forma, ficam à deriva outras terminologias que são importantes para descrever condutas do tráfico, como por exemplo: “pressão psicológica, corrupção no âmbito privado, abuso da situação de vulnerabilidade,” [44] entre outras.
No artigo 149 do CP, por exemplo, também existem brechas, ao configurar como crime o tratamento análogo à escravidão, o artigo deixa a mercê o ato de comprar e vender pessoas para fins de exploração[45].
A questão a ser discutida é se o Brasil tem cumprido a sua obrigação internacional. Se o país tem cumprido com todas as regras do Protocolo de Palermo. A resposta desta problemática pode ser vista por vários ângulos. No que diz respeito à análise penal aqui presente, é possível perceber que após a adesão do tratado, foi incorporada uma nova redação ao artigo específico inerente ao tráfico internacional de pessoas. No entanto, como foi visto anteriormente, o mesmo é incompleto e insuficiente, o que torna necessária a recorrência a outros artigos correlacionados ao crime, que por sua vez, também são insuficientes.
Esta análise, no entanto, está relacionada à exigência de punição dos traficantes descrita no preâmbulo do Protocolo de Palermo, no qual consiste a alegação de que o mesmo, “exige por parte dos países de origem, de trânsito e de destino uma abordagem global e internacional, que inclua medidas destinadas a prevenir esse tráfico, como a punição dos traficantes e proteção as vítimas desse tráfico” [46].
Deste modo, nota-se que neste ponto, o Brasil tem cometido falhas. Sendo assim, é necessário que seja feita uma readequação da definição de tráfico de pessoas descrita no artigo 231 do Código Penal brasileiro, para que a mesma entre em consonância com a definição da ONU.
Para Wiecko, o Brasil não possui um arranjo penal adequado. A autora cita que as penas aplicadas em tráfico de crianças, se comparada com as penas aplicadas em crimes descritos em artigos referentes a tráfico de migrantes, também podem ser aplicadas em caso de tráfico internacional de pessoas, porém, são menores. Vê-se que não é dada atenção especial a crianças como é de exigência do referido Protocolo[47].
A todo modo, é de inteira responsabilidade do Brasil adequar-se as regras da ONU. Para Edmundo Oliveira, existe a necessidade de um alinhamento da “Legislação Penal Brasileira às regras da ONU, para que não haja brechas e afrouxamento das punições para as condutas que atuam nas atividades ilícitas de redes e organizações criminosas” [48].
Wiecko ainda menciona que o “Brasil necessita rever sua legislação penal de forma a definir um tipo básico para o tráfico de pessoas e os tipos derivados, conforme a finalidade da exploração, e não conforme os sujeitos passivos”.
Deste modo, a autora sugere uma reorganização dos bens jurídicos ligados ao CP, apontando que uma das possíveis soluções, seria a criação de um capitulo relacionado aos Direitos Humanos. Ou seja, um capítulo que tratasse dos mesmos, direcionando-os a proteção da dignidade da pessoa humana, tendo como um dos temas o tráfico humano[49].
Ao analisar essa sugestão, é possível perceber que a mesma é coesa com o Protocolo de Palermo, pois nele, está descrito que o tráfico de pessoas é um crime contra a dignidade humana e não contra a organização do trabalho ou contra a moralidade pública, por exemplo.
Deste modo, confirma-se a ideia que apesar de o Brasil ter mudado a redação do artigo 231 e por mais que tenha alguns artigos específicos que podem ser encaixados no crime do tráfico internacional de pessoas. Ainda existem barreiras e brechas na lei que dificultam a punição dos traficantes. Assim, fazem-se necessárias as mudanças sugeridas por Wieckio e Edmundo, pois, somente dessa forma o Brasil poderá cumprir melhor com a sua obrigação internacional referente adesão ao Protocolo de Palermo.
[1] Art.3 do Protocolo de Palermo. 2000.
[2] Ibdem.
[3] Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Art 3.
[4] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012, p. 185.
[5] VARELLA, Marcelo D. Direito Internacional Público. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p.17.
[6] RESEK, Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p. 38.
[7] E SILVA, Hildebrando Accioly G, E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. São Paul: Editora Saraiva, 2012, p. 158.
[8] Idem, 159.
[9] E SILVA; CASELLA, op. cit, p. 158.
[10] RESEK, op. cit, p. 40.
[11] Ibdem.
[12] E SILVA; CASELLA, op. cit, p. 159.
[13] RESEK, op. cit, p. 40.
[14] E SILVA; CASELLA, op. cit, p. 158
[15] Idem, p. 161.
[16] Idem, p. 163.
[17] Idem, p. 168.
[18] Idem, p. 169.
[19] Idem, p. 167.
[20] RESEK, op. cit, p. 50-51.
[21] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Revista dos Tribunais. São Paulo. 2012, p. 106.
[22] Idem.
[23] Idem, p. 107.
[24] Idem.
[25] Idem, p. 108.
[26] Ibdem.
[27] Idem, p. 108-109.
[28] Ibdem.
[29] VARELLA, op. cit., 42-43.
[30] Ibdem.
[31] Idem, p.44.
[32] Idem, p. 65-66.
[33] Idem, p. 65.
[34] Idem, p. 67.
[35] OLIVEIRA, op. cit, p. 39.
[36] DE CASTILHO, Ela Wiecko V., A legislação penal brasileira sobre tráfico de pessoas e imigração ilegal/irregular frente aos Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo. p, 2-3.
[37] Idem, p. 3.
[38] Idem, p. 4.
[39] MANDELLI, op. cit, p. 31-32.
[40] DE CASTILHO, op. cit, p. 5.
[41] Idem, p. 7.
[42] Idem, p. 9.
[43] Ibdem.
[44] Ibdem.
[45] Ibdem.
[46] Palermo. op. cit.
[47] DE CASTILHO, op. cit., p. 10.
[48] OLIVEIRA, op. cit., p. 39.
[49] DE CASTILHO, op. cit.. p. 10-11.