RESUMO

            O presente trabalho tem por objetivo analisar a atuação da Autoridade Policial no Inquérito Policial e a ausência do Princípio Constitucional do Contraditório e outros princípios na investigação criminal e seus reflexos para o acusado e para a sociedade. A exposição tem por suporte a melhor doutrina em Direito Processual Penal bem como normas advindas da Carta Magna e outros diplomas pátrios.

 

PALAVRAS-CHAVE:

Contraditório; Inquisitivo; Polícia judiciária; Investigação; Processo penal; Acusado; Inquérito.

 

1.    INTRODUÇÃO

            Prima facie, cabe nos definir o inquérito policial, procedimento investigatório prévio, tomando a curta, porém clara definição dada por Eugênio Pacelli:

 

“O inquérito policial, atividade específica da polícia denominada Judiciária, isto é, a Polícia Civil, no âmbito da Justiça Estadual, e a Polícia Federal, no caso da Justiça Federal, tem por objetivo a apuração das infrações penais e de sua autoria (art. 4º, CPP).” [1]

            O processo penal brasileiro traz consigo várias prerrogativas constitucionais que foram evidenciadas com o advento da Constituição Federal de 1988. Porém, apesar de várias delas garantirem um tratamento de equilíbrio no que tange às fases processuais, o inquérito policial tem prerrogativas questionáveis desde sua instauração até a entrega do relatório ao titular da ação penal, o Ministério Público, que após avaliação decidirá entre oferecer ou não a denúncia ou queixa-crime.

            A investigação preliminar realizada pela Polícia Judiciária possui dentre várias características, as que serão abordadas em seguida e que interessam ao nosso estudo: 1.1. Inquérito Policial Inquisitivo; 1.2. Atuação da Polícia Judiciária; 1.3. Discricionariedade da Autoridade Policial; 1.4. Absolutismo da Autoridade Policial; 1.5. Relação Advogado x Autoridade policial.

 

1.1  INQUÉRITO POLICIAL INQUISITIVO:

            É tido como resquício medieval, visto ter sua origem na Inquisição dirigida pela e Igreja Católica Romana e reis europeus principalmente entre os séculos XI e XV, que perseguia àqueles que eram tidos como ameaça à sociedade sem dar-lhes o direito de saber porquê eram acusados, culminado seu julgamento em prisões temporárias ou perpétuas, e morte na fogueira em praça pública.

            É ponto de discordância doutrinária o fato de não vigorar na fase investigativa (inquérito policial) o Princípio do Contraditório, previsto no artigo 5º, LV da CF 1988: LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

A constituição prevê a aplicação do princípio supramencionado somente em Processo. Porém em nossa análise, quando se menciona “e aos acusados em geral” estaria abrangendo também o investigado no inquérito policial a proteção deste importantíssimo princípio.

            A interpretação dominante do judiciário infelizmente exclui erroneamente a aplicação do Contraditório ao Inquérito Policial, fase tão importante na persecução criminal, que apesar de ser autônoma, em muitos casos é o entendimento opinativo contido no relatório (que não vincula MP e Juiz), que será o suporte no caso de oferecimento da denúncia.

            Apesar de posicionamentos jurisprudenciais quanto ao conteúdo probatório do Inquérito Policial ser único apoio na decisão do Juiz não ser válido: "Não se justifica decisão condenatória com apoio exclusivamente em inquérito policial pois se viola o princípio constitucional do contraditório" (STF - RTJ 59/786 e 67/74). É inevitável que a peça investigativa, mesmo quando não é único meio de prova da ocorrência de um crime, o que é vedado conforme jurisprudência supramencionada, não interfira no convencimento e na análise do fato típico pelo Ministério Público e Juiz na fase processual. Assim qualquer tipo de arbitrariedade existente na fase investigativa, no momento em que se vê a formação da Ação Penal ou o seu término com a sentença condenatória, já restaria prejudicado o acusado.

 

1.2  ATUAÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA

            A atuação das polícias que interessa a este estudo está prevista no art. 144. CF,I e IV, e § 1º, I e 4º:

 

Art. 144 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

 I - polícia federal;

IV - polícias civis;

 § 1º - A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

 I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

 § 4º - Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

 

A missão da polícia judiciária é assim interpretada por Nestor Távora e Rosmar Antonni:

 

“No que nos interessa, a polícia judiciária tem a missão primordial de elaboração do inquérito policial. Incumbirá ainda à autoridade policial fornecer às autoridades judiciárias as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos; realizar as diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público; cumprir os mandados de prisão e representar, se necessário for, pela decretação de prisão cautelar (art. 13 CPP).” [2]

           

Apesar das disposições constitucionais acerca da manutenção da ordem pública nacional, o que acontece em muitos casos é que a polícia assume uma versão radicalizada no seu poder de investigar, e se reveste da intenção de punir, viciando o inquérito, como se ali, coubesse-lhe, além colher os indícios de autoria e materialidade, tornar desde já o acusado um réu confesso, encaminhando ao MP um culpado, apenas para que após o oferecimento da denúncia fique ao arbítrio do juiz fixar-lhe uma pena para ato cometido.

            A polícia deve exercer seu trabalho de forma que não torne o inquérito uma pré-condenação, deixando tal competência para quem de direito, quais sejam Juiz, MP, defesa e acusação no curso da Ação penal, caso esta venha a existir.

Nesse sentido asseveram Nestor Távora e Rosmar Antonni que:

 

“Não deve a autoridade policial esboçar juízo de valor no relatório, afinal, a opinião delitiva cabe ao titular da ação penal, e não ao delegado de polícia, ressalva feita à Lei nº 11.343/2006 (Lei de Tóxicos), onde na elaboração do relatório deve a autoridade policial justificar as razões que a levaram à classificação do delito (art. 52)”. [3]

 

Qualquer tipo de investigação já traz em seu escopo a suspeita de alguma irregularidade cometida por parte do investigado, a investigação policial não é diferente, visto que é tão prejudicial ao acusado, que esta interfere substancialmente em todas as áreas de sua vida: Familiar, profissional, social a ponto de desestruturá-la dada o abalo psicológico e as situações que é submetido durante a investigação e a desconfiança de todos acerca de sua idoneidade.

 

1.3. DISCRICIONARIEDADE DA AUTORIDADE POLICIAL

            Há ainda que se falar que o diploma repressivo pátrio prevê em seu artigo Art.14 que “O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.”

Não raras vezes, este preceito é interpretado pelas autoridades policiais como afrontas ou tentativas de retardar a investigação por parte do acusado. Simples diligências requeridas pelo acusado, orientado por seu advogado para elucidações importantes, são sumariamente indeferidas pela autoridade policial, cerceando o direito do acusado em, no mínimo, provar que não deveria ser acusado do crime.

 

1.4. ABSOLUTISMO DA AUTORIDADE POLICIAL

            Aqui a expressão “Absolutismo” decorre da posição superior do Delegado de Polícia que preside a investigação, que sob nossa ótica é tão arbitrária quanto seu próprio poder de instaurar de ofício a investigação (Art.5º, I, CPP) ou o poder facultado ao do Juiz no Processo Penal da produção de provas de ofício (Art. 156, II, CPP).

Diferentemente do previsto no artigo 95 do CPP quanto às exceções que podem ser opostas no Processo Penal, no inquérito policial não há essa prerrogativa, sendo expressa no referido diploma em seu artigo 107 que não permite a oposição de suspeição face às autoridades policiais: “Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal.”

            Ora, como em um país regado pela corrupção política, social, policial, pode-se deixar nas mãos da própria polícia argüir suspeição? Não são raros os casos em que há a instauração de inquérito face um acusado apenas por rixa ou interesse do delegado patrocinado por terceiros que queiram denegrir sua imagem depreciando sua confiabilidade ante a sociedade, principalmente em recintos menores, onde as notícias correm, sabidamente rápido, permitindo aos demais cidadãos formular seus juízos de valor condenando desde já um cidadão que pode ter sido indiciado inclusive com a sustentação em provas forjadas. Diante de tais atos já se insurge violado, o princípio da não culpabilidade decorrente da carta magna em art 5 º, LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”

Neste caso, a violação constitucional decorre de ato ímprobo da autoridade policial. É impossível almejar que a sociedade compreenda o disposto no Código Penal em seu artigo 1º “Não há crime, sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.

            O juízo ao qual é levada a sociedade, principalmente em casos amplamente expostos pela mídia, que influem na formação da opinião das pessoas leigas acerca de uma investigação criminal, é quase impossível de se reverter quando mesmo ao término do inquérito MP e juiz convergem para o arquivamento do inquérito por não se encontrarem no relatório indícios de autoria e materialidade suficientes a ensejar a formação da ação penal ou até mesmo a inexistência do fato típico.

Para melhor elucidação no que tange ao indiciamento e a crítica acima, é entendimento de Nestor Távora e Rosmar Antonni que afirmam: “o indiciamento não pode se consubstanciar em ato de arbítrio. Se feito sem lastro mínimo, é ilegal, dando ensejo à impetração de Habeas Corpus para ilidi-lo ou até mesmo para trancar o inquérito policial iniciado.” [4]

            Porém, o Habeas Corpus é apenas um remédio constitucional, como dito anteriormente, ele não será capaz de apagar do íntimo do acusado as humilhações sofridas, nem restituir a ele por parte da sociedade o devido respeito que merece.

1.5. RELAÇÃO ADVOGADO X AUTORIDADE POLICIAL

            Não raras vezes a relação delegado-advogado é das mais constrangedoras e tumultuadas, pois muitos delegados e também agentes investidos do poder de condenar mencionado no tópico “Atuação da Polícia judiciária”, desrespeitam os direitos daquele que até então não passa de um acusado, mas que ao invés de ser visto como sujeito de direito, é tido como mero objeto da investigação.

            Isto prejudica inclusive a relação de confiança do cliente com seu advogado, porque dado o ar de superioridade dos delegados e subalternos no trato ao acusado e seu procurador, o cliente chega a pensar que seu advogado não está conseguindo realizar o trabalho para qual foi contratado, e como se sabe não é o caso específico de um ou outro advogado, mas sim da classe, que é vista pelas autoridades policiais muitas vezes como adversária, porquanto o advogado ou defensor está ali, apenas para exercer sua profissão no interesse do cliente.

 

2.     CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Assim, com os entendimentos apresentados, concluímos que o código de processo Penal, datado de Outubro de 1941, em muitos pontos não converge com a Carta Magna de 1988, que já contempla muitos anseios da sociedade contemporânea em relação à violação de direitos individuais. Por óbvio que se faz urgente uma reforma no diploma repressivo pátrio que em muitos pontos não condiz com a sociedade moderna nem com a evolução na interpretação das formas de tratar tanto um acusado quanto um criminoso, quando assim já provado.

            Uma saída seria transformar a fase do Inquérito Policial em fase processual, garantindo desde logo o direito do acusado ao contraditório e à ampla defesa bem como os demais princípios regentes do processo judicial no Brasil. De toda maneira, estender a aplicação tanto dos princípios constitucionais quanto processuais ao Inquérito Policial seria um paliativo que beneficiaria o Estado, o acusado e a sociedade, porquanto não se faz uma reforma exauriente do CPP, adequando-o ás necessidades hodiernas.

Ademais, veríamos na prática o que aduz Fernando da Costa Tourinho Filho em relação à proteção do acusado contida no princípio do contraditório:

 

“a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão "superpartes", para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as provas, dar a cada um o que é seu.” [5]

 

            As mudanças mencionadas acima seriam importantes ao acusado principalmente pelo fato de poder contar desde o início da investigação com o suporte especializado do advogado ou defensor, que intervirá na Investigação quando isto lhe for permitido, sempre no interesse do seu cliente e no melhor andamento e conclusão do inquérito. Tais mudanças refletiriam sem dúvidas na visão da sociedade sobre o trabalho das Polícias Judiciárias, vez que não mais estarão a conduzir diligências perante um leigo desamparado, como ocorre na maioria das vezes, tendo sempre em xeque sua confiabilidade no que diz respeito à arbitrariedade de seus atos.

Por óbvio que infelizmente, tais medidas não acabariam por si só com a desigualdade e desprezo que é tratado um indiciado ou um réu no Brasil, pois temos muito a evoluir tanto no pensamento legislativo, quanto no pensamento doutrinário, que são formadores diretos de opinião, e que em muitos casos regridem e influenciam o raciocínio social a interpretações que não se adéquam ao atual modelo social atingido no Estado democrático de Direito.

            Não estamos responsabilizando, obviamente, nossos ilustres escritores em matéria Penal e Constitucional, vez que também os docentes, estudantes e demais profissionais do direito devem colaborar com a sociedade através de seus atos para que esta compreenda melhor que o poder punitivo estatal tem regras e ditames a serem seguidos, mesmo quando um ou outro caso enseje a emoção popular, pois ali estaremos também diante de um ser humano que estará à disposição da justiça para se defender e negar a autoria de algum crime ou dar seus motivos em justificativa ao seu cometimento.

 

 

3.    REFERÊNCIAS

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Rio de Janeiro: Senado, 1941.

BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro: Senado, 1941.

SARAIVA, Editora. Vade Mecum Compacto. 5ª ed. São Paulo: Saraiva 2011

 

 

4. NOTAS

[1] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10 ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 43

[2] TÁVORA, Nestor; ANTONNI, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 3ª ed. Salvador: JusPODIVM, 200    9. p. 72

[3] TÁVORA, Nestor; ANTONNI, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 3ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2009. p. 95

[4] TÁVORA, Nestor; ANTONNI, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 3ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2009. p. 94

[5] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vol. I, 9. Ed., 1986, São Paulo: Editora Saraiva, p. 183