A revolução industrial não teve uma data específica, mas trouxe em seu bojo a ascensão fundamental da burguesia como classe dominante. Com ideais inspirados no iluminismo a burguesia sofisticou seus mercados e acabou constituindo um modelo que desde então tem sido o preferido dessa classe até hoje: o liberalismo.

            A princípio as revoluções burguesas buscavam uma ação contra as nobrezas como o todo, por isso sempre criticaram os impostos, os luxos e as suas futilidades, e principalmente o poder opressor do estado limitando e regulando sua ação. Adam Smith foi o principal teórico do século XVIII. Suas ideias se baseiam em dar o máximo de liberdade aos agentes econômicos, os quais através dos mecanismos próprios da concorrência iriam se ajustando até o ponto mais virtuoso e positivo para a vida econômica da nação. (SMITH, 1983);

O homem, entretanto, tem necessidade quase constante de ajuda dos semelhantes e é inútil esperar essa ajuda simplesmente da benevolência alheia. Ele terá maior probabilidade de obter o que quer se... propõe um negócio a outra . Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer... Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse" (SMITH, 1983, p. 50).

                      

                       Assim a riqueza teria origem no trabalho, e o capital na acumulação dos excedentes desse, possibilitando uma poupança que investida se transformaria em mais lucro. A repetição indefinida desse processo pelos diferentes agentes da economia produziria em seu conjunto um efeito benéfico de aperfeiçoamento e eficiência na sociedade, como se houvesse uma “mão invisível” atuando no sentido de fazer evoluir a economia como um todo. Ao estado caberia se afastar o máximo da economia nacional, a qual naturalmente tenderia a um estado de maior eficiência e de bem estar social, apenas assegurando a manutenção da ordem e estabilidade (SMITH, 1983).

            As referências históricas de Thompson (1998) deixam claro que, na Inglaterra do século XVIII, produtores e consumidores não eram iguais. O mercado de alimentos, mesmo sob uma intervenção desastrosa e paternalista do estado, era controlado por produtores, atravessadores e processadores dos alimentos, os quais manipulavam o mercado, ora retendo as mercadorias básicas, ora adulterando sua composição tradicional. Aos pobres faltavam meios de controlar seu consumo, e a carência nos meios de transportes os submetia a monopólios ou oligopólios dos mercados (THOMPSON, 1998).

            Ademais os pobres não tinham acesso à educação e por isso sua tradição era oral, não compreendendo o verdadeiro conteúdo das normas estatais. A ideia de que a acumulação capitalista iria resultar em poupança e essa seria reinvestida na economia revelou-se uma falácia liberal; pois em momentos de crise a postura burguesa era de proteção dos ativos acumulados retirando-os de circulação, o que por sua vez aumentava ainda mais a crise. Definitivamente poupança não era determinante do investimento! A tradição da oralidade resultava em costumes muito arraigados que acabavam por resistir a esforços racionalizantes. Os pobres se percebem explorados, mas não são capazes de refletir realisticamente sobre sua situação, isso acaba por determinar uma postura moral conservadora (THOMPSON, 1998).

            Os costumes dos pobres induziam a uma hierarquização, de forma a considerar a cultura como avessa a eles; ou seja, a cultura seria produzida pela classe dominante letrada e os costumes eram baseados na oralidade do proletariado. Essa distinção ilógica acabava por relegar as manifestações de insatisfação da população a um mero conflito dedicado exclusivamente à sobrevivência. Somente as grandes revoluções passaram a história como legítimas manifestações de classe, contudo as revoltas que as precederam eram também manifestações de insatisfação classista. Enquanto isso, os estados vão aos poucos reagindo às insatisfações populares com regulamentações tendendo a garantir um mínimo de mantença às pessoas. Mesmo que impulsionado pelas manifestações populares a regulamentação estatal é ineficiente e sempre paternalista (THOMPSON, 1998).

            Aos poucos os laços tradicionais familiares vão se dissolvendo nas exigências da moderna sociedade urbana e fabril, a evolução no cultivo da terra implica em um grande êxodo rural e nas unidades fabris as famílias são consumidas em longas horas de trabalho. Famílias que antes estavam no campo dedicadas à subsistência em conjunto, agora estão separadas pela especialização do processo fabril. É a tradição familiar dando lugar a racionalização da modernidade. Isso irá impactar de maneira muito cruel as mulheres e é grande a participação destas nos motins populares (THOMPSON, 1998).

            Para Polanyi (2013) o século XIX traz em si uma contradição histórica para a humanidade, a qual ele chamou de “paz de cem anos” (POLANYI, 2013 p.19). Segundo o autor, a estabilidade que pretendia manter as grandes nações em paz, se vê nesse século como uma consequência da emergência do grande capital financeiro e comercial desenvolvido. Se antes;  “sob a Santa Aliança os órgãos controladores eram o feudalismo e as casas reinantes, apoiados pelo poder espiritual e matrial da Igreja; no século dezenove sob o Concerto da Europa, eles foram a finança internacional e o sistema bancário nacional a ela aliados” (POLANYI, 2013 p.32). A paz era o sustentáculo necessário aos poderosos interesses financeiros internacionais representados pelo “banco internacional” (POLANYI, 2013 p.24) e pelo comércio internacional, que passa a ser respeitado mesmo em caso de guerra. É a lógica capitalista impondo seus interesses à beligerância das grandes nações. Não que não houvesse beligerâncias internas ou de pequenas nações, mas essas foram contidas por um aparato robusto com o objetivo de gerar condições estáveis para a burguesia financeira, o que resultou em um “pacifismo pragmático”. O comércio, que antes se caracterizava em ações brutais e cruéis de dominação prévia, necessitava agora de uma paz mais global para exercer sua influência em todas as rotas fazendo com que os mais diferentes produtos, antes exóticos ou raros, pudessem afluir livremente às grandes metrópoles europeias. Os mercados coloniais estavam em expansão e a prosperidade financeira possibilitou a contenção das desavenças internacionais entre as grandes nações (POLANYI, 2013).

            No início do século XX a acumulação colonial dava indícios de limitações, a queda do padrão ouro e o acúmulo de ambições dos países de industrialização mais tardia emergiram em um conflito tão grande capaz de superar os interesses financeiros e comerciais que sustentaram a paz no século anterior. Como relata Polanyi, "a falência da própria economia de mercado ainda lhes escapava.” P.36. As pretensões acumulativas dos grandes burgueses não tinham como ser completamente satisfeitas, havia muita produção para uma já limitada demanda. “Não foi reconhecida a natureza limitada e não expansiva do padrão de mercado como tal; e, no entanto, é este o fato que emerge com toda clareza da moderna pesquisa.” (POLANYI, 2013 p.78).

            A crise leva à reflexão de que a questão da liberdade se limita no conceito errôneo do homem como ser economicamente racional. O liberalismo sem qualquer controle necessariamente levaria à concentração das atividades econômicas, se exaurindo em monopólios, oligopólios e oligopsônios. A contestação do liberalismo poderia vir pelo fascismo, onde se abre mão da liberdade para constituir uma autoridade paternalista e anti-civilizatória. Ou ao socialismo onde a cooperação poderia levar a um grau de liberdade a todos os indivíduos devidamente constituídos em seus direitos fundamentais (POLANYI, 2013). 

 

Bibliografia

 

SMITH, A. A Riqueza das nações - investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983a (volume I).

THOMPSOM, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular

tradicionalSão Paulo: Companhia das Letras, 1998.

POLANYI, Karl. A grande transformação. Leya, 2013.