Por: Laércio Becker, de Curitiba-PR

“Descobri que as coisas mudam

E que tudo é pequeno

Nas asas da Panair.”

(Milton Nascimento e Fernando Brant)

Na Quinta-Feira Santa de 2015, meu amigo Rudinei me mostrou um exemplar da revista VW Trends, de dezembro de 2000. Nele, havia uma breve nota citando a produção brasileira e australiana de um acessório de Fusca bastante curioso. Trata-se de um enfeite para pôr no capô, que tem o formato do logotipo da Volkswagen (vazado) com uma asa. Imediatamente, comentei: caramba, isso lembra o logotipo da Panair!

Eu não podia deixar de fazer essa comparação por um motivo muito simples: minha tia Karin Hertha Becker foi comissária de bordo da Panair. Então, naturalmente, eu convivi com várias de suas histórias e também com a memorabilia da companhia.

Como gosto de aviação, de Fusca e de heráldica, eu me propus a pesquisar o assunto e escrever algumas palavras sobre isso.

Bem, a pesquisa sobre a evolução do logotipo da Panair poderia exigir um pente-fino em todo o material que tenho sobre a história da aviação comercial brasileira. Mas aviso que seria trabalho desperdiçado. Porque, embora minha tia fosse aeronauta da Panair e da Varig e eu aeroviário da Varig, o material que guardei diz mais respeito... pois é, à Cruzeiro (e ao Electra II). Fazer o quê, são as contradições da vida. Então, para otimizar o trabalho, foquei em cinco livros que tenho sobre a história da Panair, além de um livro de fotos do cmte. Dufriche, um artigo da revista Flap e três clássicos da historiografia aeronáutica comercial brasileira – ver as referências bibliográficas ao final deste artigo.

O leitor já sabe de cor e salteado a história da Volkswagen. Mas para tentar contextualizar o design desse acessório, seria interessante fazer uma brevíssima retrospectiva da Panair. Tudo começou em junho de 1929, quando o piloto americano Ralph O’Neil, veterano da I Guerra Mundial, fundou a New York Rio & Buenos Aires Line Inc., mais conhecida pela sigla Nyrba. Seu objetivo era ligar os Estados Unidos à América do Sul – reflexo distante da Doutrina Monroe (1823), “a América para os americanos”.

Como as linhas domésticas dentro do Brasil não podiam ser operadas por companhias estrangeiras, em 22.10.1929, O’Neil fundou a subsidiária Nyrba do Brasil S/A. Pouco depois, ele vendeu ambas as empresas à Pan American Airways Inc. (futuramente conhecida como PanAm, também dedicada aos vôos para a América Latina), que em 01.10.1930 alterou o nome da subsidiária para Panair do Brasil S/A – “Panair” era o endereço telegráfico da Pan American Airways.

Fotografias e material publicitário da década de 30 mostram que o primeiro logotipo da Panair foi “emprestado” (leia-se: imposto) pela Pan American Airways System. As principais diferenças para o logo americano são: (i) na parte circular, que tinha o desenho de uma cartografia simplificada da Américas Central e do Sul, enquanto (ii) no bordo de ataque da asa, por vezes, lia-se “Brasil”.

  

Ainda nos anos 30, surge também o conhecido logo da Panair, cuja parte circular ostentava a constelação do Cruzeiro do Sul (Crux) e uma faixa curva em que se lê o nome da empresa. (A diferença é que, na deriva das aeronaves, o logotipo se resumia à parte circular, sem a asa.)

A escolha dessa constelação é bem apropriada para dar um toque de brasilidade à empresa estrangeira, pois o Cruzeiro do Sul está associado à semiologia pátria desde o dia da coroação de D. Pedro I, quando ele baixou o Decreto de 01.12.1822, que criou a Imperial Ordem do Cruzeiro.

Antes que alguém pergunte: na década de 30 a moeda brasileira ainda era o mil-réis; só virou Cruzeiro com o Decreto-lei nº 4.791, de 05.10.1942. E a congênere Serviços Aéreos Condor Ltda. só mudou de nome para Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul Ltda. com o Decreto n° 5.197, de 16.01.1943.

A faixa curva divide a constelação, isolando na parte inferior do logotipo a estrela Alfa (a) do Cruzeiro, também conhecida como Alpha Crucis e pelo apelido “Magalhães”, e que na realidade não é uma estrela, mas um aglomerado de uma centena de estrelas, que parecem uma só a olho nu.

Essa faixa representaria o zodíaco e sua linha intermédia, a eclíptica? Pouco provável, por dois motivos:

1) Na carta celeste, a eclíptica separa os hemisférios norte e sul, sendo que o Cruzeiro do Sul é integralmente visível no hemisfério sul, sendo impossível representar a Alfa em hemisfério distinto das demais. Aliás, por que se fez isso? Creio que não houve intenção semiológica, porque, na bandeira republicana, a Alpha Crucis representa o estado de São Paulo, mas a Nyrba/Panair sempre teve sede no Rio de Janeiro. O motivo deve ter sido de ordem exclusivamente estética.

2) No logotipo da Panair, a faixa curva tem concavidade positiva, ao contrário das representações do zodíaco e da eclíptica no céu brasileiro, cujas curvas apresentam concavidade negativa. Basta observar a bandeira republicana que, apesar de inúmeros erros astronômicos apontados por Eduardo Prado e Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, pelo menos não conseguiu errar a concavidade. Mas por que o logo da Panair teria concavidade positiva? Acho que seria difícil traçar uma faixa de concavidade negativa sem prejudicar a disposição proporcional das estrelas na representação gráfica do Cruzeiro do Sul. Além disso, meu amigo Rudinei chamou atenção para outro detalhe: pode ser para acompanhar o desenho do bordo de fuga da asa. Ou seja, outros motivos de ordem meramente estética.

  

Em 01.01.1943, Paulo Sampaio assumiu a presidência da Panair, mediante o compromisso que a controladora assumiu de nacionalizá-la. Um de seus primeiros atos, nesse sentido, ele praticou em 20.01.1943, quando determinou a substituição do nome “Pan American Airways System” (que era acompanhado pelo respectivo logotipo) por “Panair do Brasil S/A” (idem), no edifício da empresa no aeroporto Santos Dumont.

Prosseguindo no seu lento processo de nacionalização, em 26.05.1943, a Panair resolveu adotar uma identidade visual mais brasileira, com preponderância do verde como cor padrão. Nem uma palavra sobre eventuais alterações no logotipo. Todavia, a análise detida da iconografia “panairiana” permite inferir, com certo grau de segurança, que foram poucas e meramente cosméticas as alterações do logotipo ao longo dos anos – chamando minha atenção apenas o número de estrelas no bordo de ataque da asa.

  

Outro detalhe curioso é a inclinação da asa. De fato, muitas vezes, a reprodução do logotipo da Panair era feita de modo que a asa ficava inclinada, com a ponta para cima. O detalhe que Rudinei chamou a atenção é que, graças à curvatura do capô, o acessório do Fusca também fica com a asa inclinada.

Pois bem, com tudo isso que acima falamos, podemos localizar o início da divulgação do logotipo da Panair na década de 30. E o fim? A Panair teve suas concessões de linhas aéreas suspensas em 10.02.1965, data que marca o início do processo de perda da divulgação da marca e, conseqüentemente, do logotipo. Apesar de a “Família Panair” ter batalhado durante décadas pelo restabelecimento da companhia, com encontros anuais e comemorações às efemérides de sua história, era inevitável que o fim da publicidade rotineira, em comerciais e noticiários, fizesse com que o nome, a marca e o logotipo caíssem paulatinamente no esquecimento.

Os processos de firmar uma marca para um público e de retirá-la de circulação não possuem datas precisas e são muito lentos. P.ex., em 1997, a Folha de S. Paulo divulgou uma pesquisa Top of Mind em que a Cruzeiro, depois de ficar longos anos sem ser lembrada por ninguém apareceu com 1% de entrevistados que foram perguntados sobre qual a primeira companhia aérea que lhe vinha à mente. Detalhe: isso ocorreu sem qualquer propaganda do nome da Cruzeiro durante uma década, enquanto companhias aéreas ainda existentes e com propaganda por aí, bem como as regionais e as estrangeiras, não saíram do 0%. É razoável supor que processo semelhante aconteceu com a Panair, o que poderia estender a sobrevivência da marca no imaginário coletivo, pelo menos, até a década de 70. Que sirva de prova a canção “Saudade dos aviões da Panair (conversando num bar)”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, lançada no LP Minas, pela EMI-Odeon, em 1975.

Com todas essas informações em mente, podemos dizer que o logotipo da Panair esteve potencialmente presente no imaginário coletivo brasileiro dos anos 30 aos 70, concentrando-se dos 40 (nacionalização) aos 60 (fim da concessão). Já o Fusca, como o leitor sabe, desembarcou no Brasil nos anos 50 e, após uma interrupção, saiu de produção em definitivo nos anos 90 (o “New Beetle” não conta porque é outro carro). Embora o Fusca ainda esteja presente no imaginário popular, para especular quando foi produzido o acessório em questão, devemos ter em conta apenas o período de importação e produção.

Considerando o conjunto interseção desses anos e o próprio design do acessório, arrisco-me a apostar que esse ele deve ser década de 60 ou 70. A correção desse palpite fica a cargo do Opasgarage...

Referências bibliográficas:

ABREU JR., Theophilo E. de. Nas asas da Panair. Rio de Janeiro: ed. do autor, 1999.

BARBOSA, Nair Palhano. Nas asas da história: lembranças da Panair do Brasil. Rio de Janeiro: Agir, 1996.

DAVIES, R.E.G. Airlines of Latin America since 1919. McLean: Paladwr, 1997.

DUFRICHE, Carlos E. Os aviões que fizeram a aviação comercial brasileira. Rio de Janeiro: Sindicato Nacional dos Aeronautas, 1982.

LAUX, Paulo F. Panair, o orgulho verde e amarelo do Brasil. Flap Internacional, São Paulo, a. 40, nº 363, dez./2002, p. 8 e ss.

MEDEIROS, J.D. (ed.). A história da Panair do Brasil: 50 anos. S/l: Editora Técnica de Aviação, s/d.

MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. A história da bandeira da república, sob o ponto de vista da astronomia. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 159, nº 398, jan./mar. 1998, p. 85 e ss.

PEREIRA, Aldo. Breve história da aviação comercial brasileira. Rio de Janeiro: Europa, 1987.

PESSOA, Lenildo Tabosa. História da aviação comercial brasileira. São Paulo: Ed. Rios, 1989.

PRADO, Eduardo. A bandeira nacional. São Paulo: Salesiana, 1903.

SASAKI, Daniel Leb. Pouso forçado: a história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar. Rio de Janeiro: Record, 2005.

SILVA, Orlando Marques da; CALAINHO, Luiz. História cronológica da Panair do Brasil S.A. S/l: ed. dos autores, 1988.