A APLICABILIDADE DO DIREITO REAL DE SUPERFÍCIE 

Sumário: Introdução. 1 O direito fundamental à propriedade e sua relação com o princípio da função social. 2 As peculiaridades e o alcance do direito de superfície. 3 As principais divergências entre o Código Civil/2002 e o Estatuto da Cidade quanto a aplicabilidade do direito real de superfície. Conclusão. Referências Bibliográficas.

RESUMO

O objeto deste estudo consiste em analisar a aplicabilidade do direito real de superfície. Através dessa análise buscam-se conhecer e compreender a relação do direito fundamental à propriedade e o princípio da função social que esta deve cumprir, bem como tratar da propriedade superficiária abordando para isso suas peculiaridades e o seu alcance, além de apresentar as principais divergências entre o Código Civil/2002 e o Estatuto da Cidade quanto a aplicabilidade do direito real de superfície.

Palavras-chave: Propriedade. Superfície. Função social.

INTRODUÇÃO

Quando for bem compreendido, o instituto do direito de superfície poderá ser convenientemente aplicado e, desse modo, tornar-se instrumento de grande utilidade para melhor aproveitamento e exploração da terra, tanto do espaço urbano, para suprir a carência de habitações, como das áreas rurais, incentivando maior aplicação de recursos pelas garantias que passa a oferecer.

Dessa forma, o instituto é relevante em nosso cenário jurídico,

O assunto será abordado e traduzido no que se refere a aplicabilidade do direito real de superfície, a relação do direito fundamental à propriedade e o princípio da função social que esta deve cumprir, bem como da propriedade superficiária abordando para isso suas peculiaridades e o seu alcance, além de apresentar as principais divergências entre o Código Civil/2002 e o Estatuto da Cidade.

1 O DIREITO FUNDAMENTAL À PROPRIEDADE E SUA RELAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL

A propriedade atenderá a sua função social. Assim está redigido o artigo 5º, inc. XXIII, CF/88. A norma constitucional, contudo, não se restringiu a essa disposição. Foi além, permeando a matéria de propriedade desse princípio, como a propriedade privada e sua função social, como princípios da ordem econômica (art. 170, I, II, CF).

Direito natural à propriedade é um conceito já superado contemporaneamente, um vez que

não se há de confundir a faculdade que tem todo indivíduo de chegar a ser sujeito desse direito, que é potencial, com o direito de propriedade sobre o bem, que só existe enquanto é atribuído positivamente a uma pessoa, e é sempre direito atual, cuja característica é a faculdade de usar, gozar e dispor dos bens, fixados em lei (SILVA, p. 271, 2002 ).

O binômio propriedade/função social previsto na Constituição Federal de 1988 denota que a propriedade não pode mais também ser considerada estritamente um direito individual, mas atrelado ao segmento das relações econômicas (art. 170, CF); isso porque estes princípios da ordem econômica almejam assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170, caput, CF). Desse modo, a propriedade em geral, deve buscar a consecução desses fins, ou seja, daquele princípio.

Não é sem razão, por outro ângulo, que a propriedade está inserida no rol dos direitos individuais. A CF/88, em sua previsão, garantiu essa instituição, mas são de competência das leis regular seu conteúdo e limites. Segue o artigo 1228, §1º, CC determinando que o direito de propriedade deva ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial [...], corroborando o ditame da CF/88.

Ter titularidade de direitos fundamentais coloca os indivíduos com em uma relação de exigibilidade com alguém, ter direitos possibilita exigi-los de alguém. De quem? Durante algum tempo, o caráter de absolutismo do direito à propriedade foi concebido como a relação entre uma pessoa e uma coisa. Verificou-se mais tarde que não era possível essa relação, tendo em vista que a coisa não era sujeito de direitos, logo, não poderia manter com uma pessoa relação jurídica qualquer. Daí surgiu a proposição de estabelecer o proprietário da coisa e a figura universal de um sujeito, em que toda a sociedade estaria inserida nesse aporte, cabendo a todos respeitar, se abster de violar o bem do proprietário. André Ramos Tavares aponta ser este o “caráter civilista do direito de propriedade, ao qual deve acrescentar-se o regime de Direito Público que consta da Constituição Federal” (p. 609, 2007).

O regime jurídico da propriedade que é assentado pelos privatistas e publicistas brasileiros, antes de ser um direito real fundamental (por excelência), integra um conjunto de normas que estão “sob fundamento das normas constitucionais” (TAVARES, p. 612, 2007). Estar resguardado no conteúdo normativo constitucional implica reger-se em conformidade ao que ordena a Lei Maior, ou seja, é imperativo à propriedade ater-se ao mandamento constitucional de atendimento à função social.

Conforme o que se assentou, a função social da propriedade, figura no ordenamento jurídico, disposta como princípio, o qual atua diversamente nos vários tipos de propriedade, disciplinando-as em particular modo.

Enfatize-se que discutir acerca da função social da propriedade pública é recente, pois com o advento do Estatuto da Cidade, o qual dispôs sobre a função social da cidade, a partir da previsão constitucional do art. 182, caput, ao lado do uso de bens públicos por empresas concessionárias de serviços públicos. O princípio em tela, com enfoque na propriedade pública, é posto como diretriz a ser observada pelo Poder Público no tocante “ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”, (art. 182, caput, in fine). Resume-se o mandamento no objetivo de urbanismo.

Outra vertente da propriedade é a privada. A corporificação do princípio da unção social da propriedade aqui, se deu na casuística da inclusão de nova modalidade de desapropriação – por interesse social. A seu turno, a CF/88 expôs o relevo de atender a essa função a propriedade privada, no artigo 5º, XXIII.

Sinteticamente, tem-se esse princípio “impondo ao poder público um dever, significa para os cidadãos um direito de natureza coletiva exigível judicialmente, em especial pela via de ação popular de ação civil pública” (PIETRO, p. 12, 2006). No segundo caso, o dever é do proprietário, hipótese em que a atuação do poder pública é conjunta para garantia plena desse princípio.

A derrocada do comunismo, o qual pregava a negação da propriedade privada não foi o bastante para coibir a intervenção estatal nos meios de produção e na propriedade privada. Sílvio Venosa assevera que “se a negação da propriedade privada contraria o anseio inarredável do homem e conduz o Estado ao fracasso, não é com o puro individualismo que será resolvido os problemas jurídicos e sociais” (p. 144, 2007). Colabora o Estado com sua intervenção, à medida que “fornece instrumentos jurídicos eficazes para o proprietário defender o que é seu e que é utilizado em seu proveito, de sua família e de seu grupo social. Deve, por outro lado, criar instrumentos legais eficazes e justos para tornar todo e qualquer em produtivo e útil”, continua Venosa ( p. 144, 2007).

Absolutismo, exclusividade e perpetuidade são atributos da propriedade. O proprietário pode dispor da coisa da maneira que achar conveniente, por isso é absoluto. É imputado ao proprietário esse direito, tão somente a ela, assim, é exclusivo. Não perde o direito o proprietário pelo não uso. Além de que a morte do proprietário não o descaracteriza, pois é transmissível aos herdeiros; ou seja, sua “duração é ilimitada” (SILVA, p. 278, 2002). Ao seu lado, alguns elementos condicionam seu exercício, quais sejam: restrições, servidões e a desapropriação, respectivamente.

Restrições ocorrem, ilustrando, quando se estabelece direito de preferência em favor de alguma pessoa. As servidões, por sua vez, constituem ônus imposto à coisa, vinculando a coisa serviente (imóvel que sofre ônus) e outra dominante (bem em favor do qual se dá o ônus). A desapropriação consiste em: 1) transferência compulsória da propriedade particular para o patrimônio do Poder Público ou de seus delegados ou; 2) sansão aplicada por não estar a propriedade urbana ou rural cumprindo sua função social.

Os atributos do direito à propriedade não se confundem com a função social da propriedade. Isso porque esta última refere-se à estrutura desse direito, enquanto que os primeiros, ao seu exercício.

Assim é por conta do caráter externo das limitações. O aspecto de questão constitucional empregado à função social da propriedade induz a uma aplicabilidade direta, alçando-a a verdadeiro instituto de Direito Público.

Como bem sinalizou a CNBB, “sobre toda propriedade particular pesa uma hipoteca social” (apud Afonso Silva, p. 282, 2002). Com essa concepção, há que se frisar a transformação da propriedade capitalista sem a sua socialização, já que a experiência do inverso – como já exposto – pelo capitalismo promovido pelo Estado (VENOSA, 2007), não vingou. Todavia, a função social permeia a propriedade, “condicionando-a como um todo” (SILVA, p. 282, 2002), bem como qualificando sua situação jurídica.

2 AS PECULIARIDADES E O ALCANCE  DO DIREITO DE SUPERFÍCIE

O direito de superfície antes era desconhecido e não foi contemplado pelo Código de 1916, por haver instituto semelhante chamado enfiteuse. “Esse instituto preenchia as necessidades sociais no passado, sendo considerado hoje um arcaísmo técnico injustificável. Suas finalidades podem ser alcançadas por institutos mais dinâmicos e atuais” (VENOSA, p. 392, 2007). Pelo Código de 1916, art. 678,

Dá-se a enfiteuse, aforamento ou aprazamento, quando por ato entre vivos ou de última vontade, o proprietário atribui a outrem o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável.

O Código Civil de 2002 não mais disciplina tal instituto, sendo este agora substituído pelo direito de superfície. De origem romana, a concessão de uso de superfície foi instituída no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto-lei n. 271/67, na forma de concessão de direito real de uso de terrenos para fins de urbanização, industrialização, edificação, cultivo de terra ou qualquer outra exploração de interesse social. (HAJEL, p. 1131, 2011)

Segundo Caio Mário da Silva Pereira (p. 243, 2006):

“O ‘direito de superfície’ é um desses institutos que os sistemas jurídicos modernos retiram das cinzas do passado, quando não encontram fórmulas novas para disciplinar relações jurídicas impostas pelas necessidades econômicas ou sociais”.

Como instituto de origem romana o direito de superfície surge durante um período de intenso desenvolvimento urbano como um direito público que migrou da esfera do direito administrativo para a esfera do direito privado. Este instituto nasce então com a necessidade de se permitir construção em solo alheio, principalmente sobre bens públicos.

No período clássico com o intenso desenvolvimento urbano e a necessidade de espaços para se comercializar, os pretores cediam aos comerciantes de Roma o solo em poder do Estado, ou seja, eles permitiam que os comerciantes instalassem nas ruas tabernas para o exercício do comércio. Por outro lado, do ponto de vista privado o direito de superfície era estabelecido pelos particulares mediante celebração de contratos (VENOSA, p. 404, 2007)

O direito de superfície é tratado no Código Civil entre seus artigos 1369 a 1377, no art. 1225, II e pelo Estatuto da Cidade - Lei nº 10.257/2001, art. 21 a 24. É, portanto, o direito real sobre coisa alheia, pelo qual o proprietário concede ao superficiário o direito de construir ou de plantar em seu terreno, seja este urbano ou rural, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registros de Imóveis, por tempo determinado ou indeterminado. É importante frisar que “o assento do título na repartição competente é imprescindível para a aquisição do direito real (art. 1227 CC), isto é, para se obter oponibilidade erga omnes, direito de sequela e outras garantias reais” (HAJEL, p. 1131, 2011)

Visto isso, o direito de superfície é um direito oponível contra todos, e conta com a prerrogativa do direito de sequela, isto é, uma vez que você é titular desse direito, você vincula a coisa e se opõe a todos, tem o direito de buscar o bem onde quer que ele se encontre injustamente.

O Código Civil de 2002 inclui no inciso II do art. 1225, a superfície entre os direitos reais, classificando, portanto o direito de superfície “como um direito real de fruição sobre coisa alheia, em que o proprietário permanece com a posse direta do solo, além do direito de edificar e/ou plantar, limitando os poderes (usar e gozar) do titular” (HAJEL, p. 1131, 2011)

O instituto do direito de superfície compreende duas relações jurídicas. A primeira relação jurídica diz respeito àquela existente entre o concessionário e o bem superficiário, relação esta que consubstancia direito de propriedade posto que “o adquirente ou superficiário, torna-se titular da superfície, com a prerrogativa de dispor, ou de transmissão, além dos direito de fruição, posse, proveito e defesa” (AVVAD, 229, 2012); e a segunda relação jurídica diz respeito ao concessionário e o dono do solo, caracterizando assim o direito real de construir ou plantar no solo de outrem (AVVAD, p. 228, 2012).

Apesar do Código Civil de 2002 ter considerado em seu art. 1.369 tempo determinado ao direito de superfície, o Estatuto da Cidade em seu art. 21 disciplina que “o proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado”. Para Pedro Elias Avvad (p. 229, 2012), a superfície se caracteriza como um direito real autônomo, temporário ou perpétuo e se apresenta como um desdobramento da propriedade.  

O art. 1370 do CC/02 considera a constituição da propriedade superficiária gratuitamente, quer por entre vivos, quer por disposição de última vontade. Ou permite a sua contratação onerosa (PEREIRA, p. 244, 2006). Portanto, “a concessão da superfície pode ser onerosa ou gratuita e em ambos os casos o superfíciário desfruta dos proveitos do imóvel respondendo pelos encargos e tributos que sobre eles incidem” (RODRIGUES, p. 275-276, 2007). “Contudo, as partes são dotadas de liberdade para dispor de forma diferente, como complementa o art. 21, § 3º, do Estatuto da Cidade, incidindo a presente norma em caso de omissão contratual” (HAJEL, p. 1133, 2011).

“O objeto da superfície pode ser o direito de efetuar uma construção ou plantação, ou na alienação de construção ou plantação já existente, separadamente da propriedade do solo que permanece como alienante” (PEREIRA, p. 244, 2006). Portanto, o objeto é a transferência da propriedade das acessões, seja ela a construção ou a plantação.

Excepcionalmente o objeto se viabilizará no subsolo ou no espaço aéreo. No subsolo, o direito de superfície precisa ultrapassar dois óbices: não podem existir recursos minerais, caso em que a União adquire propriedade (art. 20, IX, da CF); a utilização do espaço seja fundamental para o empreendimento, como normalmente ocorre nos espaços urbanos, na forma do parágrafo único, do art. 1369 do Código Civil. Quanto ao espaço aéreo a previsão é expressa no art. 21, § 1º, da Lei 10.257/01, sendo uma de suas aplicações práticas no âmbito do direito privado, a aquisição por condôminos da superfície do terreno vizinho, com o fim de impedir qualquer edificação no imóvel contíguo acima de limites que inviabilizem o sossego, privacidade e, mesmo, o campo visual dos superficiários (FARIAS; ROSENVALD, p. 489-490, 2011)

Haja vista a natureza do instituto, o direito de superfície pode transferir-se a terceiros e, por morte do superficiário, aos seus herdeiros (art. 1372). É importante ressaltar que sendo transmissível por via hereditária o contrato não pode impedir sua sucessão, caso isto aconteça o proprietário deverá indenizar o espólio daquilo que foi investido e do que deixará de lucrar, essa seria a mais justa solução. Tal transferência também poderá ser feita inter vivos, sendo proibido ao proprietário do solo alguma participação, ou seja cobrança  de qualquer taxa ou retribuição pela transferência.

De acordo com o art. 1373 do CC/02, em caso de alienação do imóvel ou do direito de superfície, o superficiário ou o proprietário do imóvel tem direito de preferência, em igualdade de condições. Assim, “naturalmente o ordenamento entende que a preferência é um estímulo à consolidação do direito de propriedade, com a unificação da titularidade” (FARIAS; ROSENVALD, p. 491, 2011).

Quanto a extinção, o direito de superfície extingue-se com o advento do termo final, ou seja, havendo um prazo determinado, com o advento do termo final extingue-se o contrato e, consequentemente, o direito de superfície (Estatuto da Cidade, art. 23, I). No entanto, de acordo com o art. 1374 do CC/02, poderá ser extinta a concessão antes do termo estabelecido, caso o superficiário não respeite o avençado quanto à destinação do terreno. Ou, de acordo com o Estatuto da Cidade art. 23, II “pelo descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário”.

Por fim, o art 1377 do CC/02 prevê que “o direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se pelo Código Civil de 2002, no que não for diversamente disciplinado em lei especial”. Com o direito de superfície originado do direito público na esfera do direito administrativo, no qual à pessoa jurídica de direito público interno é permitida a concessão de terras públicas, assim como a concessão do respectivo direito de uso. Seja qual for a pessoa jurídica, qualquer uma pode constituir direito de superfície, subordinando-se aos preceitos do CC/02 naquilo em que não conflitar com a legislação especial.

3 AS PRINCIPAIS DIVERGÊNCIAS ENTRE O CÓDIGO CIVIL/2002 E O ESTATUTO DA CIDADE QUANTO A APLICABILIDADE DO DIREITO REAL DE SUPERFÍCIE

O Estatuto da Cidade entrou em vigor noventa dias após sua publicação, antes do vigente Código Civil. É de se questionar se, no conflito de normas, o Código Civil prevalecerá, derrogando os princípios estatuídos pelo Estatuto. De certo que não, ao verificar, como bem pontuou Venosa (p. 407, 2007) que “o EC institui um microssistema, tal como o CDC e a Lei do Inquilinato, portanto, sob essa ótica, o Estatuto vigorará sobranceiro no seu alcance de atuação, em princípio, sobre as demais leis, ainda que posteriores”.

De qualquer forma, o EC anuncia em seu art. 1º e também §1º que se dirige em exclusivo aos imóveis urbanos, enquanto o CC tem aplicação aos imóveis rurais e aos imóveis urbanos onde não houver plano urbanístico. “O Estatuto da Cidade possibilita o direito de superfície como um dos instrumentos gerais de política urbana juntamente com a concessão de direito real de uso e a transferência do direito de construir” (VENOSA, p. 407, 2007). Logo, em havendo conflito de normas sobre matéria de superfície urbana, deve prevalecer o Estatuto sobre o Código Civil.

A superfície, mediante redação dada pelo art. 1369, CC, faculta ao proprietário criar o direito a outrem sobre seu terreno, par construir e/ou plantar. Contudo, não se estabeleceu expressamente a superfície por cisão, ou seja, “aquela que em que o proprietário de prédio já construído cria a superfície para que o terceiro o conserve, reforme ou amplie” (TARTUCE, SIMÃO, p. 346, 2011). O Superior Tribunal de Justiça, por meio do Conselho da Justiça Federal (CJF), enunciado nº 250, admitiu essa modalidade de superfície, mesmo sem previsão expressa.

Tipicidade elástica dos diretos reais, preconizado por Gustavo Tepedino, foi o princípio que guiou a justificação da superfície por cisão. Destarte, o instituto não seria desvirtuado, mas tão somente se adequaria a novas situações fáticas.

Nesse ínterim, o Estatuto da Cidade acolheu a expressão sob análise, quando permitiu a reforma ou ampliação de construções existentes (art. 2, §2º II, EC). O PL 276/2007 pretende alterar a redação do art. 1369, CC, para que o superficiário possa executar benfeitorias em sua edificação, reconhecendo de forma expressa a superfície por cisão. Em regra, a superfície acompanha o solo, mas o superficiário se restringiria a dominar a construção, ao passo que o fundeiro continuaria como dono do terreno.

Outro ponto em aparente descompasso entre esses diplomas legais encontra razão no desdobramento da superfície por cisão, em que o enunciado nº 249 do CFJ/STJ disciplinou que “a propriedade superficiária pode ser autonomamente objeto de direitos reais de gozo e garantia, cujo prazo não exceda a duração da concessão da superfície, não se lhe aplicando o art. 1474, CC”. Argumentou Melhim Namem que

A concessão do direito de superfície importa em bifurcação do domínio, separando a propriedade do solo e a propriedade da construção ou plantação. Por esse modo, cria-se um direito real autônomo, em coisa alheia suspendendo ou interrompendo o princípio da acessão [...] A caracterização da coisa superficiária como direito autônomo, excepcionando o princípio da acessão, possibilita a alienação da coisa superficiária separadamente do solo (Enunciado 249, CFJ/STJ).

Como se pode observar, a redação do art. 1479, CC não proveu esclarecimentos a contento, dando margem ao entendimento de que é possível constituir direitos reais de garantia separadamente, visualizando a autonomia dos direitos de propriedade sobre o solo e a construção, logrando conjugar a função econômica e a social.

Emerge daí outra questão: em havendo abertura para alienação da coisa superficiária, deve-se considerar que esses direitos são, desde sua gênese, delineados frente à condição resolutiva, pois “com o fim da superfície, consolidando-se o domínio nas mãos do fundeiro, não sobrevivem tais direitos, em razão de seu caráter notadamente acessório” (TARTUCE, SIMÃO, p. 347, 2011).

O prazo da superfície é alvo de outro conflito normativo. O Código Civil determina (art. 1369) que o direito de superfície deve ser finito, leia-se, por tempo limitado. Já o Estatuto da Cidade (art. 21) permite que o exercício desse direito seja indeterminado, não impondo restrições. Segue-se a regra ora abordada: para superfície urbana, aplica-se o prazo indeterminado contido no Estatuto da Cidade; quanto à superfície rural, deve prevalecer o prazo determinado pelo Código Civil. É interessante deixar claro que mesmo a superfície urbana, fundada na indeterminação do prazo, não pode ser perpétua, sob pena de descaracterizar a superfície, uma vez que esta não é perpétua, como a enfiteuse.

Mesmo definindo a superfície rural, com prazo determinado, o Código Civil não expressou o quantum, assim, a previsão do art. 1228, §1º do CC (O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais) empresta sentido e coerência ou; recorre-se à analogia, se o “caso for de usufruto em favor de pessoa jurídica, o Código Civil estabelece um prazo máximo de trinta anos (art. 1410, III, CC)” (TARTUCE, SIMÃO, p. 349, 2011).

No que concerne à cessão da superfície, é transmissível por ato inter vivos ou em razão da morte do titular, nos termos do art. 1369 do CC? Se sim, questiona-se quando, efetivamente se extingue esse direito. Tendo em vista que o prazo apresentado pelo CC é determinado, há transferência do instituto aos herdeiros, mas com extinção prevista para o fim do prazo avençado.

Instituído o prazo indeterminado para a superfície, verifica-se que qualquer um dos envolvidos pode realizar denúncia a qualquer tempo, ou melhor, resilição unilateral descrita pelo art. 473, caput, CC, próprio dos contratos. Entretanto, o princípio da função social da propriedade condiciona a denúncia, como no caso de concessão para construção de um imóvel residencial, sem fixação de duração da superfície. Ao fim da construção, o proprietário denunciando o contrato, atentará contra a função social da propriedade. Melhor será aplicar o art. 473, parágrafo único, que dispõe: “Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos”. O juiz, desse modo, pode suspender os efeitos da resilição unilateral.

Outra via de discussão desenvolveu-se sobre a possibilidade de superfície admitindo uso do subsolo e do espaço aéreo. Prevê o Código Civil que o direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão (art. 1369, p.u., CC). Contrariamente, se posiciona o Estatuto da Cidade, dispondo que este direito abrange esses espaços, “na forma estabelecida no instrumento ou contrato respectivo, atendida a legislação urbanística” (art. 21, §1º, Lei 10257/01).

A fim de dirimir esse conflito, o PL 276/2007 visa alterar a previsão feita pelo Código Civil, autorizando a reprodução do previsto pelo Estatuto da Cidade.

CONCLUSÃO

Quanto as divergências enfrentadas pela incidência do Código Civil de 2002 e pelo Estatuto da Cidade que disciplinam de forma diferente o instituto do direito de superfície, observamos que a doutrina se divide quanto aplicação do instituto. Parte da doutrina entende que os dispositivos do Estatuto da Cidade estão derrogados pela entrada em vigor do Código Civil. A parte contrária a esta posição, entende que “o Estatuto da Cidade é especial e sua finalidade e essência são distintas das postas pelo Código Civil/02. O Estatuto da Cidade regula a disciplina urbanística e deseja promover a função social da cidade, tornando-a sustentável e dotada de condições dignas de vida. Já no Código Civil o direito de superfície é um instrumento destinado a atender interesses e necessidades privadas” (Farias e rosenvald, p. 486)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AVVAD, Pedro Elias. Direito imobiliário: teoria geral e negócios imobiliários. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

HAJEL, Flávia Nassif Jorge; vários autores. Código Civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. Organizador Costa Machado, coordenadora Silmara Juny Chinellato. São Paulo: Manole, 2011.

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. v. 4. São Paulo: Forense, 2006.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Função social da propriedade pública. Revista eletrônica do Direito do Estado. nº 6, abr/jun, Salvador, 2006.

RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas. v. 5. São Paulo: Saraiva, 2007.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002.

TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito civil, v. 4: Direito das coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. v.5, ed 7. São Paulo: Atlas, 2007.