Pietro Scola - 2020

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A angustia-nossa de cada dia nos dai hoje

 

Derivado do latim angustiare, o vocábulo angustia significa principalmente estreiteza, restrição e limitação, significantes que expressam as sensações dos sujeitos que se descrevem em estado de angustia: aperto no peito, sufocação, impotência. Por isso, não raramente observamos esses mesmos sujeitos desejando soluções para a dita sensação: “tenho vontade de sumir”, “por mim, eu só queria sair correndo para não sei onde”. "Larga-se um pedaço para salvar o que resta" (Soler, 2012, p. 151). O movimento da angustia é sempre esse movimento de aparecimento e desaparecimento, ou de eminência, sentimento de um por vir abrupto, mas do qual não se sabe quando e muito menos o que está em curso de emersão.

Sendo uma condição existencial, a angustia acompanha a própria história do homem. Nietzsche, Sartre e muitos outros filósofos já pontuavam a angustia como elemento essencial da posição do ser humano no mundo, envolvendo a dor propriamente humana de existir, sendo sempre ausente um saber ultimo que norteie as suas ações; a necessidade de fazer escolhas que sempre implicam em perdas; a experiência da finitude da vida humana, ou seja, o temor da morte.

 Na clínica psicanalítica, todos os mecanismos de tentativa de resolução da angústia passam por ao menos um dos seguintes eixos:  o de entulhamento de significantes ou o da criação de vácuo a-significante. No primeiro caso, o sujeito deparado com angustia entra em hiperprodução e mergulha na linguagem, hebefrênico e verborrágico, se esforça em produzir uma causa ou resultado para sua angustia, como se observa em pacientes que aguardam os resultados de exames em filas de laboratórios, praticamente dizendo “prefiro saber que tenho um câncer do que aguentar a dúvida e a espera”, a angustia nesse caso, se da com a clivagem do sujeito com o próprio desejo, fazendo-o colidir com o Real da linguagem. No segundo caso, o da criação do vácuo a-significante, o sujeito cede uma parte de seu corpo, tanto para preservar o que resta dele quanto na expectativa de que algo melhor se apresente. É para proteger a falta que permite a emergência do desejo que o sujeito se separa dos objetos, angustiando-se frente a essa decisão entre o gozo e o desejo (Lucero & Vorcaro, 2016). Ainda, para Lacan, sendo a angustia a falta da falta, é possível conceber a hipótese de que esse sujeito tenta criar um vácuo maior do que o próprio Real, como podemos constatar nas frases “só tem a doença ‘x’ quem faz exame’’, ou ainda “prefiro não ir ao médico, vai que sou diagnosticado com alguma coisa”. A defesa desse sujeito é criar uma falta que seja superior a falta da falta unária.

Adiante, na clínica poderíamos conceituar dois lugares de angustia que atravessam o escopo de uma análise. De um lado, a angustia do analista, que batendo de frente com o desejo do analista, é (ou ao menos deveria ser) anulada. Ao não se dividir a angustia do analista com o analisando, o que se põe em movimento é justamente a angustia para trabalhar. Estando dado que a cura se dá no Real pelo Simbólico através do Imaginário, quando o analista  se priva de compartilhar a sua  angustia, a transferência é endereçada ao Outro e não ao próprio analista, obtendo-se assim um saber operável, livre de demandas e de retorno do desejo do Outro.

No que tange a posição do analisando, o mais comum é o evitamento que o sujeito insiste de não se deparar com o enigma do desejo do Outro, tentativas de agradar o analista, descobrir sobre sua vida pessoal, etc. são esforços do paciente para tentar solucionar esse enigma.

De outra perspectiva, é possível ilustrar a angustia através do apólogo que Lacan (1992) faz se baseando na vida passional dos louva-a-deus. Esse inseto é famigerado por, durante a cópula, a fêmea devorar gradualmente a cabeça do macho, e não raramente a inseminação termina concomitantemente a finalização da completa destruição da cabeça do macho e sua respectiva morte. Assim sendo, imaginemos uma cena na qual um indivíduo qualquer é obrigado a vestir, no escuro, uma fantasia de louva-a-deus, e em seguida, quando as luzes se acendem, esse indivíduo se depara com uma cópia gigante e fêmea desse espécime de inseto. Sem espelhos, o sujeito não terá como saber se ele é um macho ou uma fêmea, o inseto gigante pode tomar o sujeito pelo macho cuja cabeça vai devorar, mas não é possível saber de antemão qual o desejo do louva-a-deus. Talvez este desejo só apareça na presença do objeto.

Isso é angustia, é estar submisso ao desejo do outro para ter a confirmação do seu próprio desejo; o objeto que é colocado na frente depende, assim, daquele que está atrás, prestes a devorar. O fato de o indivíduo fantasiado não ser o equivalente do esperado pela fêmea tem menos importância do que ele ter se arriscado ao colocar-se como instrumento para o desejo do Outro. (ibid.,2016).

A angústia guardaria relação com esta presença enigmática do desejo do Outro, que irá questionar o sujeito em seu próprio ser de objeto. Afinal, quando o sujeito se torna o objeto do desejo do outro, há um perigo constante de ser "devorado", de se tornar apenas o instrumento do gozo. Como saída, ao sujeito só lhe resta oferecer um pedaço de si na tentativa de apaziguar o Outro, sempre correndo o risco de perder-se por inteiro: "a angústia não é a dúvida, a angústia é a causa da dúvida" (Lacan, 2005, p. 88). A relação do homem com o desejo depende do despedaçamento do próprio corpo, do corte, de forma que a anatomia, em seu sentido etimológico de corte, é, de fato, o destino.

Ainda nessa linha de raciocínio, podemos acompanhar o pensamento de Lustoza (2006), que traz a distinção entre objeto-meta e objeto-causa: “A função do objeto deve, consequentemente, ser desdobrada em duas vertentes na psicanálise: há o objeto-meta, que promete satisfazer completamente o desejo (nos exemplos citados, tirar boas notas, só sair com a própria mulher, conseguir uma promoção na empresa e um carro do ano etc.). Mas justamente esse objeto que supostamente satisfaria o desejo não é idêntico ao objeto que o causa”(p. 6) que é complementada por Lacan (2005) "quanto mais o homem se aproxima, cerne, afaga isso que ele acredita ser o objeto de seu desejo, mais ele se desvia, se extravia dele" (p. 52).

Admitindo que o Outro é incompleto, que é um Outro a quem falta alguma coisa, conseguimos compreender o sentido simbólico da afirmação de que o desejo é o desejo do Outro. O desejo do sujeito (aquilo que faz falta a ele) é de suscitar a falta no Outro. Em outras palavras, aquilo que falta ao sujeito é que algo falte ao Outro. Para produzir isso o sujeito se oferece como causa do desejo do Outro, aquele que perfura um buraco no Outro e o torna desejante. Na neurose por exemplo, o sujeito quer responder à pergunta sobre o que quer o Outro, para a partir daí se constituir como desejante, recebendo um sentido para a sua vida, pois a partir de então ele sabe como cativar o desejo do Outro: ser um bom aluno, ter sucesso financeiro, ser um marido fiel, um exemplo de superação, etc.

Todavia, a causa do desejo do Outro não pode ser aquilo que se encontra no campo da demanda, pois dessa maneira seria possível que o desejo do Outro seja totalmente atendido, plenamente satisfeito. “A satisfação é sempre parcial, deixando escapar um resto, necessário para o relançamento do desejo. O único modo, então, de o sujeito se enganchar ao Outro é tentando coincidir com aquilo que escapa à sua satisfação. Por isso, quando o sujeito se oferece ao Outro, não é para preencher inteiramente a falta no Outro, mas antes para cavar essa falta. O sujeito quer exercer a função daquilo que alimenta a falta no Outro, devendo para isso preservar a insatisfação do Outro. Afinal de contas, a reprodução da falta no Outro é que garante a reprodução da falta no sujeito. O sujeito procura então reavivar a falta no Outro. Essa insatisfação do Outro não é de um objeto qualquer, mas de algo que só o sujeito pode ofertar.” (Lustoza,2006, p. 8)

A angustia é constitutiva  nesse sentido pois para o sujeito poder construir seu próprio desejo ele precisa se oferecer ao Outro, mas não de maneira completa, suprindo a sua falta, mas justamente ao contrário, como aquele que a suscita, condição elementar para que a própria falta do sujeito se reproduza.

Voltando a distinção entre objeto-meta e objeto-causa, poderíamos resumir da seguinte forma: o objeto-meta pertence ao campo da vontade e/ou demanda, aquilo que ‘’puxa’’ o sujeito sentido à alguma coisa, com a promessa de plena satisfação (consumo, relacionamentos, carreiras, etc.). De outro lado, temos o objeto-causa, que é o objeto ‘a’ lacaniano, não observável e desassociado da realidade empírica, pertencente ao campo do desejo e que ‘’empurra’’ o sujeito sentido à alguma coisa, com a promessa de uma não satisfação plena, já que ele é precisamente um resto que resiste a operação de simbolização. Aqui, a angustia é fruto desse funcionamento, pois o impasse que Lacan chama de objeto ‘a’ que colocará o desejo em movimento, constituindo um obstáculo ao pensamento, mas impelindo o aparelho psíquico a tentar dar conta dele. Ou ainda, como nos traz Thoreau (1963), em sua obra Walden: “Ao mesmo tempo em que buscamos com ardor explorar e aprender todas as coisas, exigimos que todas as coisas sejam misteriosas e inexploráveis, que a terra e o mar sejam infinitamente primitivos, refratários a nossos exames e sondagens porque insondáveis (...) Precisamos testemunhar a transgressão de nossos próprios limites” (p. 133)

            Em conclusão, a angustia “nos faz aparecer como objeto, ao revelar a não-autonomia do sujeito” (Lacan, 2005, p. 60). O sujeito passando a ocupar a posição de objeto do Outro equivaleria a ausência de falta de autonomia. Isso é ser sujeito, é ser objeto do desejo do Outro, pois o sujeito do inconsciente não sabe o que faz, vemos isso frequentemente na clínica, suas ações sendo sempre a posteriori decididas pela sua inscrição no campo do outro. A psicanálise nos mostra que a angustia constitutiva é onipresente, pois aventa que o sujeito quando age, desconhece o sentido pleno de sua ação, o saber vem sempre depois, l’après-coup, como dizia Lacan. Na relação com o Outro, o saber vem sempre depois, na posteridade, portanto portando um ‘’tarde demais”. Mas, o papel da análise é responsabilizar o sujeito por aquilo que não fez, responsabiliza-lo de um saber retroativo. Sendo assim, o sujeito analisado é aquele que não responsabiliza o Outro como alteridade, mas que se encontra com o Outro enquanto interioridade, que desloca, empurra, faz angústia e faz encontro.

 

 

 

 

 

Referências bibliográficas

 

Lacan, J. (1992). O Seminário, livro 8: a transferência (1960-61). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 

Lacan, J. (2005). O Seminário, livro 10: a angústia (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lucero, Ariana, & Vorcaro, Angela Maria Resende. (2016). Angústia e constituição subjetiva: do objeto não significantizável ao significanteAngustia y constitución subjetiva: del objeto no significantizable al significante. Revista Subjetividades16(2), 60-70. https://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.2.60-70

Lustoza, R. (2006). A angústia como sinal do desejo do Outro. Revista Mal Estar e Subjetividade6(1), 44-66. Recuperado em 16 de agosto de 2020, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482006000100004&lng=pt&tlng=pt.

Soler, C. (2012). Seminário de leitura de texto ano 2006-2007 (Coleção Pathos). São Paulo: Escuta.

Thoreau, H. D. (1963). Walden or life in the woods. New York, NY: Signet Classics.