RESUMO

 

Muitas são as teorias da personalidade e evidentemente o ser humano é um só. A enorme variedade de culturas e manifestações humanas desafia a ideia de que há de fato algo em comum a todos os homens, por isso parece interessante comparar as diferentes tradições de evolução das personalidades. Nesse trabalho esforcei-me para observar padrões em comum entre a visão budista do caminho humano com a psicanálise e as ideias de Freud. Para isto utilizei a alegoria do boi e do pastor na versão do século XII de Kakuan Shien (ORTEGA,2019), com seus dez passos. A analogia se presta até o sexto passo, a partir daí há a necessidade de conceber certa transcendência, a qual é sempre contestada por Freud como uma ilusão. Neste aspecto pode-se também contrapor a filosofia budista à Freud, visto que o budismo vê a realidade como uma ilusão temporária, enquanto para Freud a ideia de transcendência é a própria ilusão.

 

Principais Textos Religiosos de Freud

 

Durante toda sua vida Freud escreveu e mostrou preocupações com a religião, e até por isto boa parte de suas obras tiveram a religião como um dos temas principais como:

Totem e Tabu (1913) - Onde Freud faz sua incursão na antropologia visando reconhecer na formação dos primeiros grupos humanos padrões similares aos da psicanálise com a tese principal do recalque original ao incesto.

O Futuro de uma Ilusão (1927) - Freud situa a religião como uma ilusão para amenizar o desamparo original da perda do pai.

O Mal Estar da Civilização (1930) – Em um de seus textos mais envolventes Freud postula que a civilização com seus limites ao desejo humano acaba sendo fonte de um mal estar irremediável e justificado pela necessidade da vida em sociedade. A religião seria fonte de culpa e sofrimento a limitar as existências humanas.

Moisés e o Monoteísmo (1938) – Recupera e retifica as ideias de Totem e Tabu, formula a tese controversa de que Moisés era um egípcio que liberta os escravos judeus e difunde entre os mesmos a ideia do Deus único.

 

De Sidarta Gautama a Buda Shakyamuni,  a vida do Buda Primordial

 

Sidarta nasceu príncipe, sendo que a principal frustração de seu pai se deu justamente em seu nascimento, esperava um príncipe conquistador; mas contrariando suas expectativas um guru profetiza que o recém-nascido será um sábio. O rei então resolve manter o filho a salvo de qualquer das agruras da vida, deixando-o desacostumado com qualquer infortúnio. Ao perceber que seu mundo é artificial, o príncipe exige conhecer a realidade com todas as suas dificuldades, e aí ao sair do palácio toma contato com a doença, a velhice e a morte. A perplexidade causada pelo contato súbito com o infortúnio faz com que Sidarta passe a dedicar a vida à busca do esclarecimento da razão do sofrimento. Em um caminho extenso atinge a iluminação e se torna Buda Shakyamuni o iluminado (LAMA, 2006).

Seus ensinamentos se baseiam em quatro nobres verdades: Insatisfação e sofrimento; desejos provocam a insatisfação; sem desejos não há sofrimento; o nobre caminho óctuplo ou o caminho do meio. O mundo é feito pelo karma ou sofrimento necessário para o caminho da iluminação, no entanto se pudermos abrir não de nossas falsas expectativas poderíamos cessar a dor. As boas escolhas necessariamente estariam relacionadas a atitudes moderadas e na extinção de desejos e suas expectativas (LAMA, 2006).

 

A Ilusão

 

Para Freud a religião funciona como um apoio ao desamparo da perda do pai. Como não é o pai, não passa de uma ilusão. No Futuro de uma Ilusão Freud defende que a ciência estaria fadada a substituir a religião. No Mal Estar da Civilização ele desfaz esta esperança alegando que o desamparo é condição da vida social.

No budismo a ilusão é a própria realidade, sendo essa a verdadeira crença transcendental do budismo, ou seja, a própria existência seria a ilusão enquanto não se é capaz de perceber o TODO universal da iluminação.

 

O Boi e o Pastor

 

A estória do boi e seu pastor sempre foi utilizada como uma fábula capaz de ilustrar a evolução humana rumo a iluminação. Há várias formas diferentes (ORTEGAS, 2019). Aqui utilizaremos a versão do poeta Kakuan do século XII (TEIXEIRA, 2019). A cada ponto da fábula tentaremos estabelecer as similitudes que pudemos observar entre os ensinamentos budistas e a prática psicanalítica em geral.

 

Procurando o Boi

O boi nunca se extraviou realmente, então por que procurá-lo? Tendo dado as costas à sua verdadeira natureza, o homem não pode vê-lo. Por causa de sua corrupção, perdeu de vista o boi. Repentinamente, defronta-se com um labirinto de caminhos cruzados. A ambição de ganhar terreno e o pavor da perda surgem como chamas extintas; ideias de certo e errado projetam-se como adagas.” Kakuan Shien (Kuo-an Shih-juan)

Para Freud o caminho errático do neurótico, sem sequer compreender suas verdadeiras razões. O princípio da realidade se impõe ao ser, que desenvolve mecanismos de defesa, “aleatórios” ao seu consciente para aliviar as tensões dos desejos contidos pelas limitações da existência em sociedade.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Encontrando os Rastros do Boi

“Através dos sutras e dos ensinamentos, ele distingue os rastros do boi. Foi informado que, assim como vasos de ouro de diferentes feitios são basicamente do mesmo ouro, também cada e toda coisa é uma manifestação do si. É, porém, incapaz de distinguir o bem do mal, a verdade da mentira. Não passou realmente pelo portão, mas tenta ver os rastros do boi.”  Kakuan Shien (Kuo-an Shih-juan)

Na psicanálise a livre associação, chistes, atos falhos, sonhos e detalhes aparentemente ocasionais são pistas (pegadas??) da razão inconsciente. A dedução, das pequenas pegadas da existência, pode revelar a verdadeira natureza de si.

O Primeiro Avistamento do Boi

“Se ele apenas escutar atentamente os sons cotidianos, chegará à compreensão e no mesmo instante verá a verdadeira fonte. Os seis sentidos não são diferentes dessa verdadeira fonte. Em qualquer atividade a fonte está manifestamente presente. É algo análogo ao salto na água ou à liga na tinta. Quando a visão interior está corretamente focalizada, chega-se à compreensão de que aquilo que é visto é idêntico à verdadeira fonte.” Kakuan Shien (Kuo-an Shih-juan).

Pode se relacionar à entrada em análise, quando sob terapia de livre associação o paciente começa a perceber a inserção de seu inconsciente nos fatos da sua vida. Neste momento não se trata mais de procurar algo, e sim de se aprofundar no autoconhecimento.

Agarrando o Boi

“Hoje ele encontrou o boi, que tinha estado longamente corcoveando nos campos agressores e realmente o agarrou. Por tanto tempo ele demonstrou nestes arredores que não era fácil fazê-lo romper com os velhos hábitos. Continua com os velhos hábitos. Continua a ansiar por pastagens cheirosas, é ainda obstinado e indomável. Se o homem quiser domá-lo inteiramente, tem de usar seu chicote.”  Kakuan Shien (Kuo-an Shih-juan).

Através da livre associação a pessoa toma contato com seu inconsciente, mas ainda há intenso gasto de energia nesta compreensão e muita resistência ao trabalho de análise. O processo de transferência sofre o golpe da resistência e, apesar das descobertas, a relação analisando analista está em risco pelas vicissitudes da custosa busca pela harmonia entre o isto e o eu. O laço e o chicote como o super eu, o boi como o isto forte e resistente à realidade. O pastor como o eu na difícil arte de controlar o boi sem se machucar com o chicote (superego), sem ser arrastado ou derrubado pelo laço (superego) puxado pelo boi; na incrível tarefa de adequar o boi forte e imponente a uma harmonia nunca antes tentada.


Dominando o Boi

“Ao surgir um pensamento, outro e mais outro nasceram. A iluminação traz a compreensão de que esses pensamentos não são irreais, já que brotam de nossa verdadeira natureza. É somente porque a ilusão permanece que eles são considerados irreais. Esse estado de ilusão não tem origem no mundo objetivo, mas em nossas próprias mentes.” Kakuan Shien (Kuo-an Shih-juan).

 

A livre associação, a análise dos sonhos e o autoconhecimento terapêutico fortalece o eu que passa a conviver e forma harmônica com seu o isto em relação ao princípio da realidade. Mecanismos de defesa mais favoráveis são mobilizados tornando o dispêndio de energia psíquica menor em relação às defesas no início do processo. Neste momento a alusão de Kakuan do domínio do boi mostra uma primeira diferenciação da análise Freudiana onde o isto (boi) nunca poderá ser descrito como dominado.

Montando o Boi e Trazendo-o para Casa

“Cessou a luta, ganho ou perda não mais o afetam. Ele cantarola melodias rústicas dos lenhadores e toca os cantos simples das crianças da aldeia. Montando no boi, contempla serenamente as nuvens no alto. Não volta a cabeça na direção das tentações. Embora alguém possa tentar perturbá-lo, permanece impassível.” Kakuan Shien (Kuo-an Shih-juan).

 

A partir deste momento não encontramos mais qualquer paralelo na psicanálise, a não ser na menção a ilusão de uma compensação impossível. Para Freud o isto  impulsivo jamais seria contido. Então o único paralelo possível é a ilusão do sentimento oceânico, que apesar de confortador nada mais é do que uma ilusão agradável de compensação ao mal-estar provocado pelo princípio da realidade.

 

 

 

 

Na fábula seguem mais quatro alegorias, as quais não podem ser reconhecidas por Freud, pois este não acredita na possibilidade da plenitude da alma humana, seriam os estágios:

O esquecimento do boi e o recolhimento do pastor - quando poderia se imaginar um “eu” em sua plenitude absoluta, pouco se importando com os imperativos do desejo, ou seja, o próprio encontro com a iluminação.

O esquecimento total do boi e do pastor – Neste momento transcendental o “isto” e o “eu” perdem juntos toda a importância dissolvendo-se assim a individualidade.

O retorno ao fundo e à origem – Quando o indivíduo retorno ao todo universal, reencontrando-se ao universo.

A entrada no mercado com as mãos abertas – Diante da mais profunda iluminação o ser retorna à humanidade para trazer de volta as boas novas da iluminação visando favorecer a iluminação dos outros seres imersos no sansara.

 

Conclusão

 

Para Freud a ilusão está nas propostas de conforto transcendental da religião; e de maneira paradoxal, no budismo a ilusão está no próprio princípio da realidade, enquanto a crença transcendental de um retorno ao todo universal é a verdadeira realidade da existência.

A alegoria do pastor e o boi serve até seu sexto passo para demonstrar as similaridades entre o caminho evolutivo do budismo e o processo de análise. A partir do sétimo passo a rejeição ao transcendental faz Freud não reconhecer mais nada além.

 

Bibliografia

 

FADIMAN, James; FRAGER, Robert. Teorias da personalidade. Zen Budismo. São Paulo. Harper & Row do Brasil, 1979, p. 286-315.

LAMA, Dalai. Dzogen: A Essência do Coração da Grande Perfeição. 1. ed. São Paulo. Editora Gaia Limitada. 2006. 278 p.

TEIXEIRA, Faustino. O Boi e seu Pastor: Passos da Auto Realização Espiritual. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2019.

PEREIRA, Kylmer sebastian de Carvalho; CHAVES, Wilson Camilo.  Freud e a religião: a ilusão que Conta uma verdade histórica. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 48.1, p. 112-127, 2016

JORGE, Marco Antonio Coutinho. As Quatro Dimensões do Despertar - Sonho, Fantasia, Delírio, Ilusão. Ágora, Rio de Janeiro, VIII  n. 2  jul/dez p. 275-289, 2005.

FREUD, Sigmund. Obras Completas Volume 11. Totem e Tabu. 1 ed. São Paulo. Companhia das Letras, 2012. p. 13-244.   

FREUD, Sigmund. Volume XXIII. Moisés e o Monoteísmo. 1 ed., Rio de Janeiro, Imago Editora. 1975. p. 13-156.

FREUD, Sigmund. Compêndio da Psicanálise. 1 ed., Porto Alegre, L&PM editores. 2018. 176 p.

FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão & O Mal-estar na Cultura . 1 ed., Porto Alegre, L&PM editores. 2018. 208 p.

JONES, Ernest. A Vida e Obra de Sigmund Freud. Vol. 1. 1 ed., Rio de Janeiro, Imago editora. 430 p.

ORTEGAS, Monica Giraldo. O Boi e o Pastor e a Mística Zen. Teoliterária. Juiz de Fora, v. 9 - N. 17 – p.243-257- 2019.