1964 - Uma Introdução ao Golpe de Estado I

Por Emanuel Isaque Cordeiro da Silva | 22/10/2018 | História

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Ângela Maria de Castro Gomes 

Emanuel Isaque Cordeiro da Silva 

Jorge Luiz Ferreira

 

1964: O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil 

 

1. Um brinde ao imprevisível

Na terça-feira, 24 de agosto de 1961, o Jornal do Brasil informava, em sua coluna Coisas da Política, que Juscelino Kubitschek seria o orador oficial da solenidade que se realizaria às 18h na sede do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no Rio de Janeiro. A reunião homenageava a memória de Getúlio Vargas, no sétimo aniversário de sua morte. JK, como era conhecido o ex-presidente da República, que acabara de construir a nova capital — Brasília —, nela dando posse a seu sucessor, Jânio Quadros, gozava então de grande popularidade. Era, sabidamente, um dos maiores nomes do Partido Social Democrático (PSD), candidato às eleições de 1965, já que, nos anos 1960, não havia reeleição para cargos executivos. Mesmo não sendo um trabalhista, possuía antigos e estreitos laços com Vargas: fora prefeito de Belo Horizonte quando da interventoria de Benedito Valadares, aliado incondicional de Getúlio no Estado Novo; ocupara o governo de Minas Gerais quando da crise que levou o presidente ao suicídio, sendo dos pouquíssimos políticos que se mantiveram a seu lado até o fim. Tinha, portanto, credenciais para falar em nome do povo brasileiro em ocasião tão especial. Afinal, JK era o sucessor de Vargas, não só porque foi o primeiro presidente eleito após sua morte, como porque deu continuidade, evidentemente com transformações, às diretrizes políticas e econômicas do getulismo, sintetizadas no que se convencionou chamar de nacional-desenvolvimentismo.

Mas JK não era o herdeiro político de Vargas. Essa posição, demarcada pelo próprio Vargas, era de João Goulart, o então presidente do PTB. Jango também gozava de grande popularidade, tendo sido vice-presidente de JK e sendo, naquele momento, o vice-presidente de Jânio Quadros. Entre 1945 e 1964, o vice-presidente era igualmente eleito por voto popular, concorrendo de modo independente na chapa à presidência e podendo, inclusive, ser reeleito. Mas Jango naquele momento estava bem longe do Brasil. Encontrava-se na China, chefiando uma missão diplomática e comercial composta por empresários e políticos, que também fora à União Soviética. 

A viagem constituía uma importante iniciativa da Política Externa Independente do Brasil, no contexto internacional da época, dominado pela Guerra Fria. Sobretudo levando-se em conta que se vivia a época posterior à Guerra da Coreia e à Revolução Cubana. 

É justamente nesse período de extrema tensão que o governo brasileiro assumiu a posição de não mais se alinhar automaticamente aos Estados Unidos, defendendo sua independência para manter relações diplomáticas e comerciais com qualquer país que fosse de seu interesse, entre eles os de regimes comunistas. Assim, no governo de Jânio Quadros, o Itamaraty dedicou especial atenção às relações com os novos países africanos, às nações comunistas do Leste Europeu, à União Soviética, à China e a Cuba. Nesse contexto, o Brasil havia recusado apoio aos Estados Unidos para a expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) e Jânio Quadros condecorou com a Ordem do Cruzeiro do Sul ninguém menos do que o líder revolucionário Che Guevara.

Na viagem, Goulart encontrou-se com o líder soviético Nikita Khruschov, com o primeiro-ministro chinês Chou En-lai e com o próprio Mao Tsé-tung. Proferiu vários discursos, participou de jantares e liderou encontros entre empresários brasileiros e funcionários soviéticos e chineses, com resultados considerados muito bons. No dia 24 de agosto, estava de regresso ao Brasil. Em Xangai, na festa de sua partida, declarou ser favorável à substituição da China Nacionalista (atual Taiwan) pela China Comunista na Organização das Nações Unidas (ONU), embora falando como presidente do PTB e não como vice-presidente do Brasil.

É absolutamente compreensível que essa polêmica política externa, conduzida pelo chanceler Afonso Arinos de Mello Franco, da União Democrática Nacional (UDN), não saísse das manchetes dos jornais. Na primeira página do Jornal do Brasil desse dia 24 de agosto, por exemplo, a manchete era: “Lacerda: só comunistas apoiam a política externa”, e, na página 2, anunciava-se que Jânio iria reafirmar tal orientação em discurso a ser pronunciado no Dia da Independência do Brasil. Porém isso não aconteceu; o que aconteceu, entretanto, surpreendeu ainda mais o país, e bem antes do Sete de Setembro.

Retornando ao Brasil com parte da comitiva, mas ainda do outro lado do mundo, em Cingapura, Goulart hospedara-se no Raffles Hotel. Foi aí que, na madrugada do dia 26 de agosto (tarde do dia 25 no Brasil), ele foi acordado com pancadas na porta de seu quarto. Ao abrir, deparou-se com dois amigos e assessores assustados. A notícia era, de fato, tão imprevista como impactante. Jânio Quadros havia renunciado. Goulart era o novo presidente do país. 

A informação parecia não fazer sentido, não só para Jango como para todos os brasileiros. Afinal, Jânio Quadros havia sido eleito com a maior votação que um candidato à presidência da República já recebera no país: 48% do total de votos. Derrotara o marechal Henrique Teixeira Lott, candidato apoiado pelos dois maiores partidos políticos, o PSD e o PTB, batidos pela primeira vez desde 1945. Henrique Lott também era apoiado pelas esquerdas, caso do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Democrata e nacionalista, apoiado por JK, Lott era um homem reconhecido por sua seriedade, competência e ilibada conduta política e militar. Jânio, que concorrera com o apoio da UDN, vencera oponentes de grande peso político, mobilizando multidões com um discurso que prometia “limpar” a política e que usava uma vassoura como símbolo de campanha.

EU ESTIVE LÁ

Salomão Malina, secretário de organização do PCB em 1960, avalia a vitória de Jânio Quadros quarenta anos depois

O resultado objetivo das eleições presidenciais de 1960 foi uma derrota do conjunto das forças democráticas e nacionalistas, que patrocinaram a candidatura do general Lott. A vitória de Jânio Quadros (...) encerrou uma lição: a maioria do povo votou contra nós — contra as forças progressistas, democráticas e nacionalistas. (Francisco Inácio de Almeida [org.]. O último secretário: A luta de Salomão Malina. Brasília, Fundação Astrojildo Pereira, 2002, p. 90)

É verdade que o presidente encontrou duas grandes dificuldades em seu governo. A primeira tinha formulação simples: o país estava em sérias dificuldades financeiras. Em termos econômicos, o Brasil crescera muito durante o governo de JK. A produção industrial aumentara 80%. Em alguns ramos da indústria o crescimento fora impressionante, bastando citar a elétrica e de comunicações, com 380%, e a de equipamentos e transportes, com 600%. A renda per capita do país alcançara o patamar de três vezes o da América Latina.  Se Vargas lançara as bases para a industrialização do Brasil, Juscelino fizera o restante. Mas, ao final de seu governo, o país estava com as contas públicas e a balança de pagamentos deficitárias, a inflação em alta, e com problemas para realizar o pagamento das parcelas da dívida externa que venceriam a curto prazo.

Jânio enfrentou esse problema como os governos considerados conservadores, do ponto de vista econômico-financeiro, costumavam fazer. Estabeleceu acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e, seguindo à risca os padrões da ortodoxia monetária, encontrou recursos para rolar a dívida externa. Em contrapartida, deu início a um rígido controle das contas públicas. Desvalorizou o cruzeiro em 100% em relação ao dólar, estabelecendo o que chamou de verdade cambial. Também cortou os subsídios ao trigo e à gasolina, o que se refletiu no cotidiano da população. 

A segunda dificuldade era de natureza política: Jânio não tinha maioria parlamentar no Congresso Nacional. A oposição, formada pelo PSD, pelo PTB e pelo PSP, representava quase dois terços das cadeiras do Congresso, cerca de duzentas. A base política do presidente, formada pela UDN, pelo Partido Republicano (PR) e pelo Partido Democrata Cristão (PDC), não chegava a cem parlamentares. Mas isso não o impediu de governar, pois contou com os votos da oposição para aprovar medidas importantes, como a lei antitruste e a lei que disciplinava o envio de remessa de lucros para o exterior por empresas estrangeiras.  Jânio, como se disse, ainda levou adiante algo inédito nas relações exteriores com a política externa independente.  Assim, pode-se afirmar que os dois principais problemas que enfrentou — o desequilíbrio financeiro e a falta de base parlamentar — não eram obstáculos intransponíveis para seu governo e, portanto, razões suficientes para sua renúncia.

É verdade que seu estilo peculiar e personalista de fazer política alimentava a oposição, tornando-se mote de anedotas na imprensa em geral. As fotografias escolhidas para publicação eram as mais pitorescas e desgastantes para a imagem do presidente: óculos e ternos desalinhados, olhos esbugalhados, cabelos revoltos, desengonçado etc. 

Seus bilhetinhos tornaram-se famosos. Eles versavam sobre a proibição de desfiles de misses com maiôs cavados, rinhas de galo, corridas de cavalo em dias de semana, entre outras medidas desse quilate. Tudo noticiado com estardalhaço, principalmente na imprensa oposicionista. Mas nada que apontasse para uma crise institucional de gravidade, que pudesse resultar na renúncia de um presidente. Algo, aliás, inédito na política brasileira. De fato, não ocorria nenhum grande impasse entre os Poderes da República. Não havia crise militar. O governo tinha apenas sete meses de duração. Jânio vencera indiscutivelmente eleições limpas e disputadas, tendo seus projetos aprovados no Parlamento.

Sua renúncia permanece, por conseguinte, ainda alvo de debates. Porém, mesmo sem provas documentais, a literatura de história e ciências sociais concorda que o presidente desejava dar um golpe de Estado. São vários os indícios apontados. Um deles era um tipo de ação, em nome da moralização da política, que resultava em profundo desgaste do Legislativo em face do Executivo.

Logo após sua posse, Jânio criou as chamadas comissões de sindicância, que tinham ordens expressas para realizar devassas em órgãos públicos em nome do presidente da República. Alguns dos primeiros órgãos investigados foram a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários e a Comissão Federal de Abastecimentos e Preços. Mas era sabido que dezenas de outras comissões do mesmo tipo estavam previstas.  Tais comissões, como se pode imaginar, descobriram delitos contábeis, superfaturamentos, licitações fraudulentas, favoritismos etc. Nesses casos, em geral, encontravam-se envolvidos deputados federais e/ou senadores de diversos partidos políticos. A questão, vale lembrar, não era basicamente o que se fazia: buscar sanear as finanças públicas, moralizar a política. A questão era como se fazia: incriminando, de maneira sensacionalista, os representantes do Legislativo e capitalizando os resultados para o fortalecimento do Executivo. Ou seja, Jânio batia de frente com o Congresso, no qual não tinha maioria.

Além disso, ele queria tornar-se um líder terceiro-mundista com sua política externa independente. Só que tal política não conseguia agradar inteiramente nem mesmo os integrantes do mais importante partido de sua base política: a UDN. O governador da Guanabara, Carlos Lacerda, verbalizava agressiva e claramente um descontentamento que era o de muitos outros políticos brasileiros anticomunistas. Uma aproximação com países “desse credo político” era inadmissível no contexto internacional da Guerra Fria, ainda mais após a Revolução Cubana. Enfim, Jânio ameaçava o Parlamento, de forma geral, e contrariava governadores de estado e muitos outros políticos com o espectro de seu personalismo e da aproximação de seu governo com os países comunistas.

PERSONAGEM

Jânio da Silva Quadros nasceu em 1917 em Campo Grande, no atual estado do Mato Grosso do Sul. Formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo. Trabalhou como advogado e professor, lecionando na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Iniciou sua carreira política em 1948, como vereador da cidade de São Paulo, eleito pelo Partido Democrata Cristão. Em 1951, foi o deputado estadual mais votado, elegendo-se a seguir como prefeito da cidade de São Paulo com apoio do PDC e do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Exerceu o cargo entre 1951-3, licenciando-se em 1954 para concorrer ao governo do estado. Candidatando-se pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN) e pelo PSB venceu o popular político paulista, Ademar de Barros, por estreita margem de votos. Governador entre 1955-8, nesse ano concorreu ao mandato de deputado federal pelo Paraná, elegendo-se, mas não chegando a assumir. Candidatou-se então à presidência da República pelo PTN, com o apoio da União Democrática Nacional e de partidos menores. Sua campanha tinha o jingle: “Varre, varre vassourinha/varre, varre a bandalheira” etc. Eleito para o mandato 1961-5, com 5,6 milhões de votos, venceu o marechal Henrique Lott, da aliança PSD-PTB, de forma esmagadora. Porém, seu candidato a vice, Milton Campos, da UDN, não se elegeu. O vitorioso foi João Goulart, do PTB, numa formação que ficou conhecida como a “chapa Jan-Jan”. Teve carreira rápida e surpreendente, surpreendendo mais ainda ao renunciar em 25 de agosto de 1961, sete meses após sua posse em Brasília. Com o movimento civil e militar de 1964, foi um dos três ex-presidentes cassados, só recuperando seus direitos políticos em 1974. Nos anos 1980, voltaria ao cenário político como prefeito de São Paulo pela segunda vez, em 1985, pelo novo PTB de Yvete Vargas. Faleceu na capital paulista em 1992.

Foi exatamente nesse contexto que ele convidou seu vice-presidente para chefiar uma comitiva à União Soviética e à China. Para muitos analistas, nada disso foi casual. Sobre João Goulart pairava, desde os tempos em que foi ministro do Trabalho de Vargas (1953-4), fortes acusações de proximidade com os comunistas, por conta de seus diálogos e negociações com o movimento sindical.  Mesmo quando vice de JK, não deixou de ser identificado por grupos políticos conservadores poderosos como um esquerdista perigoso. Na presidência do PTB, defendia as chamadas reformas de base. Para o PTB e grupos nacionalistas de esquerda, elas eram um conjunto de medidas que permitiriam o desenvolvimento econômico e a justiça social no Brasil. Mas para muitos setores políticos conservadores, tais reformas seriam danosas para as estruturas econômicas e político-sociais do país. O melhor e mais temido exemplo era a reforma agrária.

DEU NO JORNAL

Câmara investiga as Ligas

Sob a direção dos Deputados Andrade de Lima Filho, Carlos Gomes, Clidenor Freitas e Neiva Moreira, foi constituída ontem uma Comissão Parlamentar de Inquérito que estudará as causas e a atualsituação das Ligas Camponesas no Nordeste. (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1961, p. 3)

Jânio sabia que amplos setores sociais e fortes grupos políticos e militares dificilmente tolerariam a possibilidade de Goulart assumir a presidência da República. Renunciar ao cargo abruptamente, tendo como vice um nome com tal histórico e ainda por cima tão longe — literalmente na China —, fez parte de seus planos. Ele desejou ameaçar os políticos brasileiros, jogando com a ampla rejeição civil e militar ao nome de Goulart. O estopim para sua renúncia teria sido o discurso pronunciado por Lacerda, nesse mesmo dia 24 de agosto, no qual o governador denunciava que um ministro de Jânio havia lhe pedido apoio para um golpe de Estado. Impossível saber com certeza o que ocorreu. O fato é que, na manhã do dia 25 de agosto, logo após as comemorações do Dia do Soldado, o presidente do Congresso Nacional, Ranieri Mazzilli (PSD), recebeu uma carta de renúncia de Jânio Quadros. Os dois primeiros parágrafos diziam:

Nesta data e por este instrumento, deixando com o ministro da Justiça as razões de meu ato, renuncio ao mandato de presidente da República. Fui vencido pela reação e, assim, deixo o governo. Nestes seis meses, cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem prevenções nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços para conduzir esta nação pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, o único que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito seu generoso povo.

Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou informam, até com a desculpa da colaboração. 

A carta estava lançada. Com grande carga retórica, ela deixava ver que o presidente aceitaria voltar. Só que com mais poderes, para vencer as tais forças terríveis da reação que se levantavam contra ele. Na carta, com atenção, também se podiam ouvir os ecos de outra carta, escrita sete anos antes por outro presidente. Só que Vargas se matou. Naquela ocasião, o Brasil conseguiu vencer uma grave crise política, que trouxe às ruas o povo soberano, como escrevia Rui Barbosa, quando queria lembrar a todos a fonte original do republicanismo. Em 1955, realizaram-se eleições e a posse de JK foi garantida, a despeito das resistências de grupos minoritários da direita civil e militar. Seu governo transcorreu bem, ainda que não tão dourado. As instituições políticas do país haviam se fortalecido ao longo dos anos 1950. Os partidos políticos se consolidavam e os mecanismos eleitorais se aperfeiçoavam.

O Congresso Nacional demonstrou isso ao receber a renúncia. Nenhum parlamentar propôs negociações políticas com o presidente. Estava claro que o preço seria o Legislativo abrir mão de poderes, em nome de uma crise institucional criada inteiramente pelo próprio Executivo. O PSD e o PTB queriam ver Jânio Quadros fora da presidência. Nem em sua base parlamentar encontrou grandes defensores. O presidente do Congresso leu o documento e, alegando que se tratava de ato unilateral, declarou que nada havia a ser votado.

O que ocorreu, não era, acredita-se, o que Jânio esperava. Ele contava que o povo e os militares defendessem seu mandato. A partir daí, governaria com eles e a despeito do Congresso Nacional. Nada disso aconteceu. Ainda em Brasília, antes de viajar para São Paulo, convocou os três ministros militares — da Guerra (atual Exército), Marinha e Aeronáutica — e os aconselhou a formar uma Junta Militar. As manchetes do Jornal do Brasil do dia 26 de agosto dão a medida do clima tenso que se vivia. De um lado lia-se: “Sindicatos ordenam parede e pedem a Jânio que reassuma.” De outro: “País em calma espera a chegada de João Goulart.” E ainda: “Jânio isolado em Cumbica.” Nesse aeroporto de São Paulo, ele esperou pelo desfecho dos acontecimentos. Quando o Congresso Nacional aceitou sua renúncia e o presidente da Câmara dos Deputados foi empossado presidente da República — devido à ausência do vice-presidente —, verificou que seu plano fracassara por completo. Nada podia fazer. Não era mais o presidente da República.

Enquanto isso, em Cingapura, o senador pernambucano pelo PTB Barros de Carvalho pedia a um garçom uma garrafa de champanhe para brindar o novo presidente do Brasil. Goulart, com serenidade, respondeu ao amigo: “Brindemos, antes, ao imprevisível.” 

Jango estava certo. A renúncia de Jânio, como o Congresso avaliou e bancou, abriu uma crise política grave e profunda para as instituições democráticas e o futuro do país. Suas consequências eram então imprevisíveis. Os três ministros militares, de fato, formaram uma Junta. Assim, apesar de Ranieri Mazzilli assumir legitimamente a presidência da República, quem mandava no país era essa Junta Militar. Sem declaração formal, o Brasil estava sob estado de sítio. Nesse contexto, o presidente em exercício enviou mensagem ao Congresso Nacional, comunicando que a Junta Militar lhe manifestara a “inconveniência” do regresso ao país do vice-presidente. Sobretudo, a “inconveniência” de sua posse na presidência da República, chegando a aventar que, se Goulart chegasse ao Brasil, seria preso.  Uma declaração que valia, na prática, por um golpe de Estado, pois se opunha frontalmente à posse do vice-presidente legitimamente eleito.

Nas palavras da cientista política Argelina Figueiredo, os ministros militares tinham o objetivo de dar um “golpe de baixo custo”.  Estavam intimidando o Congresso Nacional. Queriam o impeachment de Goulart, mas sem o ônus de tomar o poder manu militari. Porém, o Congresso Nacional não aceitou a coação militar, como não aceitara a coação vinda de Jânio Quadros. Formou-se então uma ampla aliança entre os partidos políticos pela defesa da ordem constitucional. Todos os partidos apoiaram a posse do vice-presidente e repudiaram a intimidação militar, inclusive a UDN. Estabelecia-se um confronto aberto entre o Congresso Nacional e a Junta Militar. Seus resultados? Imprevisíveis.

2. Aposse: golpe militar e negociações políticas

O governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola, no dia 25 de agosto de 1961, participava das solenidades do Dia do Soldado. Porto Alegre sediava o III Exército. Embora os generais presentes ao evento se esforçassem para demonstrar que tudo corria bem, ele percebeu algo de anormal. Logo chegou ao governador o boato de que o presidente Jânio Quadros tinha renunciado. Algo tão inusitado que ele desconfiou que o presidente podia ter sido deposto por um golpe militar.

Naquela época, as comunicações ainda eram muito difíceis. Brizola não conseguiu se certificar imediatamente do fato. Algum tempo depois, foi notificado do que acontecia: Jânio entregara uma carta-renúncia ao Congresso Nacional. Mais adiante, vieram informações sobre a formação de uma Junta Militar, bem como sua declaração sobre a “inconveniência” da posse de Goulart. O governador era um dos mais importantes políticos do PTB, além de cunhado e um dos líderes trabalhistas mais próximos ao vice-presidente. A um amigo próximo, teria confidenciado: “Dessa vez não darão o golpe por telefone”, referindo-se à prática comum na América Latina de se desferir golpes militares.  Sua decisão era trazer Jango à capital gaúcha e defender a todo custo seu mandato presidencial.

Ironicamente, Brizola recorreu ao telefone. Ligou para vários oficiais militares no Rio Grande do Sul, na Guanabara e em outros estados. De alguns ouviu insultos, devolvidos no mesmo tom. De outros, não. Sobretudo do marechal Henrique Teixeira Lott — que havia garantido a posse de JK em novembro de 1955 e estava na reserva. Dele, recebeu orientações. Lott era experiente e tinha muito prestígio no Exército. Indicou a Brizola nomes de generais e coronéis no Rio Grande do Sul que poderiam ajudá-lo a resistir a um golpe militar. O ministro da Guerra, Odílio Denys, soube do fato e mandou prender Lott. Mas o Exército estava dividido. O general Amaury Kruel, por exemplo, também muito respeitado pelo oficialato e pela tropa, viajou clandestinamente da cidade do Rio de Janeiro para o Rio Grande do Sul a pedido de Brizola, para auxiliá-lo na resistência. 

Em Porto Alegre, milhares de pessoas passaram a se concentrar na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, esperando orientações para a resistência democrática. Todo o Palácio foi cercado por barricadas. Ninhos de metralhadoras foram instalados no alto do prédio e na Catedral Metropolitana. 

Os quatro exércitos

Para compreendermos bem as peças que se montavam no perigoso xadrez político daquele momento, é preciso conhecer a divisão administrativa do Exército brasileiro. Ele era formado por quatro exércitos: o I Exército tinha jurisdição nos estados da Guanabara, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais; o II Exército, nos estados de São Paulo e Mato Grosso; o III Exército tinha suas bases no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná; o IV Exército em todos os estados do Nordeste. De todos eles, o mais poderoso era o III Exército, quer em equipamentos, artilharia, carros de combate, munição, instalações para manutenção ou número de homens e quartéis. O III Exército era mais equipado que todos os outros três juntos, em função de estar situado em área de fronteira no Prata, considerada mais vulnerável devido à proximidade da Argentina. Daí o poderio do III Exército, cujo comandante era o general José Machado Lopes. 

A situação do governador gaúcho era muito difícil. Mesmo com o apoio da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, da solidariedade de alguns oficiais militares e da mobilização popular, não tinha como enfrentar o poderio do III Exército. Brizola então determinou que técnicos do Palácio Piratini monitorassem as comunicações entre o comando do III Exército, em Porto Alegre, e o Ministério da Guerra, na Guanabara. Durante todo o dia 26 de agosto, o país viveu sob grande tensão. Os ministros militares mostraram sua força. Embora sem declaração legal, como se disse, o Brasil estava sob estado de sítio: jornais, rádios e televisões eram censurados e prisões realizadas arbitrariamente. O Congresso porém resistia, não cedendo ao cerco que crescia.

Os militares não ficaram sozinhos. Tiveram como importante aliado civil o governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Contrariando seu próprio partido, a UDN, Lacerda apoiou de maneira ostensiva o golpe militar. A Polícia Civil, a Polícia Militar e o Departamento de Polícia Política e Social (DOPS) foram para as ruas centrais do Rio de Janeiro dispersar manifestações populares em defesa da posse de Goulart. A mando de Lacerda, sedes de vários sindicatos foram invadidas e membros de suas diretorias, presos. Todos os jornais foram censurados, menos a Tribuna da Imprensa, que seguia a orientação do governador. Havia ainda censura telefônica, telegráfica e radiotelegráfica.  Lacerda submeteu o estado da Guanabara a dura repressão política, sendo a única liderança civil de expressão a apoiar os ministros militares.

Em Porto Alegre, Brizola foi percebendo que, para resistir ao golpe já em curso, necessitava de apoio militar e político, mas precisava igualmente de se comunicar com a população. Mantendo-se apenas no Palácio Piratini, a derrota seria certa. Era fundamental romper com a censura dos meios de comunicação para ganhar e manter aliados à posse de Goulart. Na manhã do dia 27 de agosto, as rádios gaúchas Capital, Farroupilha e Difusora tinham sido tomadas por tropas do III Exército. Brizola, então, ordenou que homens da Guarda Civil invadissem a sede da Rádio Guaíba e levassem seus equipamentos para os porões do Palácio Piratini. Os transmissores da rádio ficaram a seu dispor, sob a proteção de duzentos homens da Brigada Militar.  Foi por meio da Rádio Guaíba que o governador passou a defender a legalidade do mandato de Jango, mobilizando de imediato a população da capital e do interior do estado do Rio Grande do Sul.

Seu alvo, contudo, era bem maior. Tratava-se de falar para todo o país. Como não poderia vencer os militares pelas armas, Brizola compreendeu que seu único e grande trunfo era a capacidade de furar o bloqueio da censura que alimentava, com o silêncio e a violência, o golpe de Estado. Assim, a Rádio Guaíba foi interligada a 150 outras rádios no Rio Grande do Sul e, por ondas curtas, chegou a outros estados do país e a outros países. Formou-se a Cadeia Radiofônica da Legalidade. O governador começava a desmontar a censura imposta pelos ministros militares, difundindo um discurso centrado na defesa da legalidade. Por isso, tornava-se um problema inesperado, pois os militares não contavam com esse tipo de reação por parte de lideranças civis. Diante da ousadia de Brizola, no mesmo dia 27 de agosto a Junta Militar ordenou ao comandante do III Exército que fosse ao Palácio Piratini e depusesse o governador. Se ele resistisse, o Palácio deveria ser bombardeado por tanques ou pela aviação de caça. Uma frota da Marinha de Guerra ia ser enviada para o Sul. Tudo parecia muito simples e necessário, pois o Congresso continuava resistindo às pressões militares, não declarando o impeachment de João Goulart.

O comandante do III Exército, general Machado Lopes, recebeu as ordens por código morse. Mas elas foram interceptadas por técnicos do Palácio Piratini. Para Brizola, a situação era extremamente perigosa; ele não tinha nenhum trunfo. Apenas uma rádio, a Brigada Militar, alguns oficiais legalistas e o apoio crescente da população do Rio Grande do Sul. Nada que fosse capaz de derrotar os ministros militares e o poderio do III Exército. Por isso, partiu para o ataque, ao receber um comunicado do próprio general Machado Lopes solicitando uma conversa. Para ele, só podia se tratar do anúncio de sua deposição do governo, algo que não aceitaria de maneira alguma. Acuado e sem alternativa, foi para o estúdio improvisado no Palácio Piratini, segundo testemunhas, com uma metralhadora na mão. Com voz trêmula e não escondendo a emoção, falou à população de Porto Alegre pedindo calma. Mas informou que o comandante do III Exército estava a caminho para conversar com ele. Ressaltou que o general seria recebido com toda a civilidade, mas que não se atrevesse a tentar depô-lo do governo do estado. Garantiu, com veemência, que não pretendia se submeter: “Que nos chacinem, neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada (...). O certo, porém, é que não será silenciada sem balas.” 

Nesse discurso atacou particularmente o ministro da Guerra, Odílio Denys. Este, no noticiário Repórter Esso, da Rádio Nacional, declarara que a escolha entre a posse ou o impeachment de Goulart significava, na verdade, uma escolha entre o comunismo e a democracia no Brasil. Brizola considerava isso uma falsidade, lembrando que o golpe militar é que estava jogando o país em uma guerra civil. Depois de denunciar que uma força-tarefa da Marinha de Guerra rumava para o Rio Grande do Sul e que caças da Força Aérea poderiam bombardear o Piratini, prometeu ficar no Palácio até o fim. Dali não sairia: “Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta Nação. (...) Estaremos aqui para morrer, se necessário.”

 

EU ESTIVE LÁ

Marino Boeira, na época estudante, lembra do discurso de Brizola em 1991

Naqueles dias de fins de inverno e início de primavera, eu era apenas mais um jovem de 20 anos, encharcado de cinema e literatura, sonhando com a chegada de uma sociedade socialista para o Brasil. Para mim, o radical populista que ocupava o Palácio Piratini não parecia ser a pessoa mais indicada para comandar esse processo de busca do socialismo. Os discursos de todas as sextas-feiras pela Rádio Farroupilha eram motivos de ironias e piadas. Mas o Movimento pela Legalidade começara a mudar a ótica das coisas. Naquele meio-dia, que a memória localiza hoje entre fins de agosto e início de setembro, o governador fez o discurso mais emocionante da sua carreira de político. Os “inimigos”, os “imperiais” iriam bombardear o Piratini e ele convocava a todos para defender a legalidade ameaçada. Uma das figuras mais utilizadas na literatura diz que o personagem fica com um “nó na garganta” e a “voz embargada” quando a emoção é demais. Naquele dia, eu fiquei com um “nó na garganta” e a “voz embargada” ao ouvir o Brizola pela rádio. Como milhares de outros, eu fui para a frente do Palácio Piratini para defender a justiça da nossa causa. (Marino Boeira. “A última utopia”. In Nós e a legalidade. Depoimentos. Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro/ Editora Agir, 1991, p. 146)

O general Machado Lopes chegou num carro militar acompanhado dos generais de seu Estado-Maior quando o discurso do governador chegava ao fim. Cerca de 100 mil pessoas estavam na praça em frente ao Palácio. Em uma só voz, a multidão repetia palavras como “Legalidade” ou “Brizola”. Mas houve silêncio com a chegada do general. Ao subir os primeiros degraus, vozes na multidão começaram a cantar os primeiros versos do Hino Nacional. Logo, um forte coro também cantava o hino. Machado Lopes e seus generais, que então subiam para o Palácio, pararam em um dos degraus e incorporaram-se à multidão, cantando o hino até o final. Sem dúvida, isso era um sinal. Muitas pessoas começaram a chorar e a esperar.

EU ESTIVE LÁ

Adauto Vasconcelos, jornalista da Ultima Hora, de Porto Alegre, assiste à chegada do general Machado Lopes ao Piratini

Brizola ainda não encerrara o pronunciamento e eu saía da redação com alguns companheiros e nos dirigimos ao Piratini, na Rua Sete de Setembro, sede da Ultima Hora, à Praça da Matriz, assistimos a cenas inenarráveis. Dezenas de pessoas chorando nas ruas. Mulheres do povo com os filhos ao colo, jovens e velhos subiam às pressas a Rua da Ladeira dispostos a resistir e morrer com o governador do Rio Grande. (...) Alguém da multidão deu um grito que poderia ter determinado uma tragédia: “Ali estão os golpistas.” O general Machado Lopes, comandante do III Exército, à frente de um grupo de oficiais, aproxima-se do palácio lentamente. A massa começou a deslocar-se na direção dos militares. Foram segundos da mais alta dramaticidade. O Hino Nacional, brotado da garganta de milhares de pessoas, petrificou os oficiais. Eles pararam e cantaram com o povo. Machado Lopes estava emocionado e trêmulo. O III Exército estava aderindo à legalidade. (Citado em Vivaldo Barbosa. A rebelião da legalidade. Rio de Janeiro, FGV, 2003, p. 109)

O comandante do III Exército entrou no Palácio, onde Brizola estava disposto a ir às últimas consequências. Tinha armado alguns funcionários e jornalistas e os posicionara em locais estratégicos. Se Machado Lopes lhe desse voz de prisão, os homens sacariam as armas, tendo ordens para deter o comandante e seus generais. Depois disso, só lhe restaria desafiar a Junta Militar a bombardear o Piratini com os generais lá dentro.  Mas nada disso foi preciso. Machado Lopes comunicou a Brizola que estava ao lado da legalidade e da Constituição. Portanto, ao lado do governador. Ele e os generais do Estado-Maior do III Exército haviam rompido com Odílio Denys e decidido defender a posse de João Goulart. Não aceitariam nenhuma solução fora da Constituição e da legalidade. Brizola inicialmente ficou desconcertado. Porém, logo lhe estendeu a mão, declarando não esperar outra atitude do III Exército.

A situação mudara: completamente, rapidamente. Na verdade, para cumprir as ordens do ministro da Guerra, o III Exército seria obrigado a praticar verdadeira carnificina no estado do Rio Grande do Sul. E em nome de quê? Não da legalidade das instituições democráticas. João Goulart era o vice-presidente eleito e tinha o direito constitucional de assumir a presidência. Para os generais do III Exército, a decisão acertada era cumprir a Constituição que juraram obedecer. Só assim estariam do lado da lei e da ordem. Dito dessa maneira parece algo muito lógico; contudo, política não se faz só com lógica, e tal decisão tinha implicações consideráveis e ainda desconhecidas. De toda forma, o momento era glorioso para Brizola. Ele se dirigiu para a sacada do Palácio, ao lado de Machado Lopes, e comunicou a boa notícia à população que se mantinha concentrada na praça. Em novo discurso, pelos microfones do Piratini, defendeu a legalidade, a Constituição e a posse de Jango. Desafiou mais uma vez Odílio Denys; só que agora tinha a seu lado o mais poderoso dos exércitos do país. 

O governador tornava-se, no Brasil, a primeira liderança civil a enfrentar abertamente um golpe militar. Essa marca ficou em seu currículo, tornando-se algo inesquecível para muitos militares. Como se disse, o Exército estava dividido cada vez mais. A possibilidade do início de uma guerra civil era considerável. O general Machado Lopes constituiu o Comando Unificado das Forças Armadas do Sul, formado pelo III Exército, pela V Zona Aérea e pela Brigada Militar. O Comando possuía os mais importantes regimentos de infantaria, a mais completa artilharia, além de unidades blindadas. Eram 40 mil soldados lutando ao lado de 13 mil homens da Brigada Militar. E houve inúmeros oficiais militares que abandonaram seus postos em diversos estados do país para se apresentar a Machado Lopes, reconhecendo nele o comandante militar legítimo das Forças Armadas do Brasil. 

A Junta Militar reagiu. O general Cordeiro de Farias foi nomeado comandante das forças unificadas do I e do II Exércitos. Mesmo assim, não tinha como enfrentar o poderio bélico de Machado Lopes. A situação do país era cada vez mais tensa. Contudo, com essa nova configuração de forças, o Congresso Nacional ficou fortalecido para enfrentar os três ministros militares, como já vinha fazendo. 

PERSONAGEM

Leonel de Moura Brizola

Leonel Brizola nasceu em 22 de janeiro de 1922 no povoado de Cruzinha, no Rio Grande do Sul. Seu pai morreu quando ele tinha apenas 1 ano de idade. Muito pobre, sua mãe, Oniva Moura, entregou o menino para ser criado pela irmã. Depois, ele foi entregue a um tropeiro. O menino Brizola viveu de lavar pratos, vender jornais, carregar malas na estação ferroviária, sem poder estudar. Um casal de religião protestante assumiu a responsabilidade pelo garoto. Estudando muito, conseguiu ser admitido em escola técnica de Porto Alegre. Aos 17 anos, formou-se em técnico agrícola. Trabalhou como jardineiro da prefeitura para pagar os estudos da faculdade de engenharia. Em 1945, muito jovem, participou da fundação do PTB no Rio Grande do Sul. Eleito deputado estadual em 1946, exerceu o mandato entre 1947 e 1955. Em março de 1950, casou-se com Neusa Goulart, irmã de João Goulart. Em 1951, candidatou-se a prefeito de Porto Alegre, mas perdeu as eleições por margem mínima, cerca de 1%. No ano seguinte assumiu a Secretaria de Obras do estado, no governo de Ernesto Dornelles. Em 1954 foi eleito deputado federal, mas, no ano seguinte, disputou novamente a prefeitura de Porto Alegre, sendo vitorioso. Sua gestão ficou conhecida pela dedicação aos moradores dos bairros mais pobres, sobretudo com construção de escolas públicas, obras de saneamento básico, melhoria dos transportes. Em outubro de 1958, foi eleito governador do estado do Rio Grande do Sul. Sua votação foi expressiva: mais de 55% dos votos. Realizou governo de viés desenvolvimentista e nacionalista. Fundou as estatais Aços Finos Piratini e a Companhia Rio-grandense de Telecomunicações. Estatizou duas empresas norte-americanas, indenizando-as com valor simbólico. Na crise da renúncia de Jânio Quadros, renúncia de Jânio Quadros, liderou a resistência que abortou o golpe liderado pelos ministros militares. Devido a suas políticas públicas no governo do estado, a partir daí, tornou-se grande liderança entre as esquerdas brasileiras. Em 1962 foi eleito deputado federal pelo estado da Guanabara com quase 270 mil votos. No início de 1963, fundou a Frente de Mobilização Popular, unificando vários grupos de esquerda e, ao final desse ano, os Grupos de Onze Companheiros. Com o golpe militar de 1964, foi obrigado a exilar-se no Uruguai, onde fundou o Movimento Nacionalista Revolucionário. Recebendo apoio de Fidel Castro, preparou planos para derrubar a ditadura. Em 1977, foi expulso do Uruguai e obteve asilo político nos Estados Unidos. Em Lisboa, entrou em contato com líderes da Internacional Socialista e promoveu o Encontro de Trabalhistas no Brasil e no Exílio. Com a anistia em 1979, retornou ao Brasil. No ano seguinte, a sigla PTB foi entregue ao grupo político de Ivete Vargas. Brizola, então, fundou o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em 1982, foi eleito governador do Rio de Janeiro. Em 1989 disputou a presidência da República. Em 1990 foi eleito novamente governador do estado do Rio de Janeiro. Em 1994, começou seu descenso político. Disputou as eleições presidenciais, mas obteve votação inexpressiva. Nas eleições presidenciais de 1998, foi vice-presidente na chapa encabeçada por Lula, também sem sucesso. No ano 2000 disputou e perdeu as eleições para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Em 2002, perdeu as eleições para o Senado. Dois anos depois, em 2004, faleceu no Rio de Janeiro.

Enquanto essa queda de braço se montava, Jango retornava de sua longa viagem. Primeiro foi a Paris, com uma parada em Zurique, onde as comunicações com o Brasil eram bem melhores do que em Cingapura. No dia 27 de agosto soube, com mais detalhes, da crise política. Inicialmente pensou em renunciar e convocar eleições presidenciais, para evitar uma tensão maior que desembocasse em conflito armado. Mas a radical rejeição dos ministros militares a seu nome, somada à atitude em relação a Brizola, teriam impedido que ele tomasse tal decisão.  E havia o Congresso, onde uma frente de partidos políticos não se curvava à Junta Militar.

Jango ia mantendo conversações com os líderes dos dois mais importantes partidos do país. Com o PTB, seu interlocutor foi o próprio Leonel Brizola. Ainda em Zurique ficou sabendo que o ministro da Guerra declarara que o mandaria prender se retornasse ao Brasil. O conselho de Brizola foi enfático: “Escolhe o local onde desejar descer e não traz sequer um revólver, porque tua força é o Direito, a Legalidade e a Constituição.”  O outro interlocutor foi o presidente do PSD, Amaral Peixoto. O conselho que dele recebeu foi bem diferente: “Nós [do PSD] não o apunhalaremos pelas costas... Mas não faça declarações, não se precipite. Sobretudo não venha para o Brasil já. Preste bem atenção no que estou lhe dizendo: não volte para o Brasil [agora].” 

Em Paris, Goulart recebeu a visita do deputado trabalhista cearense Carlos Jereissati. Foi quando dimensionou a extrema gravidade da crise cujo resultado poderia ser, de fato, a guerra civil. Pelo telefone, ouviu um diagnóstico semelhante do intelectual e muito respeitado líder do PTB, San Tiago Dantas. Também conversou com dois grandes nomes do PSD: Tancredo Neves e Juscelino Kubitschek. Ambos garantiram que ele teria total apoio do partido; mas que seguisse a linha da moderação política. E, ainda, que retornasse ao Brasil pelo caminho mais longo. Com isso, as lideranças político-partidárias, em especial as do PSD que representavam, teriam tempo para negociar, junto aos militares, uma saída política pacífica. Foi quando a “solução” parlamentarista apareceu no horizonte do Congresso Nacional.

Assim, se de um lado o golpe de Estado militar abria caminho para uma guerra civil, por outro, as lideranças do Parlamento começavam a construir uma opção política alternativa, que precisava ser muito bem costurada e, por isso, exigia algum tempo. De toda a forma, desenhou-se para Jango uma saída que não recorria às armas. Algo mais do seu feitio, político negociador que também era. Por isso, certamente, entre o conselho de Brizola e o de Amaral Peixoto, preferiu o último. A viagem seria longa: Paris, Nova York, Cidade do Panamá, Lima, Buenos Aires, Montevidéu e, por fim, Porto Alegre. A bancada do PTB no Congresso foi avisada e apoiou o roteiro de volta.

Enquanto Goulart retornava ao Brasil, o país se mobilizava pela sua posse na presidência da República. Em Porto Alegre foi formado o Comitê Central do Movimento de Resistência Democrática. Calcula-se que perto de 45 mil pessoas se alistaram e muitas receberam revólveres do governo do estado. Também foram distribuídos alguns fuzis e metralhadoras da Brigada Militar. Quem necessitasse poderia ter instruções de tiro. Muitas mulheres participaram das aulas; igualmente conhecidos militantes comunistas.  Ao final da crise, consta que todos devolveram as armas. Batalhões foram constituídos para defender Porto Alegre, como o dos ferroviários, bancários, metalúrgicos, estudantes, entre outros.  Nas cidades do interior gaúcho, os Centros de Tradições Gaúchas produziram lanças, boleadoras e arcos e flechas. O Rio Grande do Sul convergiu para a defesa da legalidade. Para que se tenha uma ideia, os clubes do Grêmio e do Internacional emitiram documento conjunto defendendo a posse de Goulart. 

Mas a defesa da legalidade não se restringiu a esse estado da federação. Amplos setores da sociedade brasileira se mobilizaram. A começar pelas Forças Armadas, que aprofundavam sua divisão, enfraquecendo o poder efetivo e simbólico da Junta Militar. Centenas de oficiais militares se apresentaram a seus comandantes declarando-se favoráveis à legalidade. Muitos eram presos, outros liberados. Diversos deles, clandestinamente, foram para Porto Alegre se apresentar ao general Machado Lopes.

Greves de trabalhadores eclodiram em vários estados do país. O resultado foi a unificação de várias categorias profissionais na fundação do Comando Geral dos Trabalhadores, o CGT, um ano depois. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se pronunciaram exigindo a manutenção da ordem democrática. Em São Paulo, líderes de diversos partidos políticos formaram a Frente da Legalidade Democrática. No Paraná, na Bahia e em Minas Gerais, milhares de estudantes declararam greve pela defesa da Constituição. A diretoria da União Nacional dos Estudantes (UNE) aderiu à greve geral, e seus diretores foram para Porto Alegre, de onde podiam falar pela Rede da Legalidade.  O governador de Goiás, Mauro Borges, juntou-se a Brizola na luta pela

ordem constitucional. Ele também criou um Exército da Legalidade, formado por homens da Polícia Militar, por estudantes e pessoas do povo, todos armados.

Entidades religiosas, grupos de intelectuais, representantes dos setores do comércio e da indústria lançavam manifestos exigindo o cumprimento da Constituição. O Estado de S. Paulo e a Tribuna da Imprensa apoiaram o veto dos ministros militares à posse de Goulart. O Globo, logo após a renúncia de Jânio, sustentou a solução legal, mas logo recuou diante do veto dos ministros militares. Com exceção desses três jornais, a imprensa majoritariamente seguiu a solução constitucional para a crise. Avaliando a situação política daqueles dias, causa estranheza análises que afirmam que a posse de Jango nasceu sob o signo de um golpe. Só se considerarmos que a posse de Jango resultou da resistência a um golpe, e por isso conseguiu reunir setores sociais tão diversos. Sem dúvida, as bandeiras da legalidade e da manutenção do processo democrático foram as responsáveis pelo sucesso da campanha em defesa da posse do presidente.

Editorial: Hora grave e solene

A Constituição Federal de 1946 continua presa ao seu destino: ser periodicamente violada. (...) Agora se afirma que as Forças Armadas negarão ao vice-presidente João Goulart o direito que a Constituição lhe assegura de substituir o presidente renunciante. Não discutiremos se esse político tem ou não idoneidade para exercer o cargo, pois isso é matéria própria do período de propaganda eleitoral. A acusação de comunista, que contra ele se levanta, não é mais verdadeira do que a que se formulou contra o sr. Jânio Quadros. Eleito que foi e vagando-se a presidência, deve assumi-la, simplesmente porque ela lhe cabe. As Forças Armadas que meditem profundamente nas consequências da ilegalidade que estão na iminência de praticar. São, aliás, imprevisíveis. Se tudo correr bem, estaremos, no mínimo, fixando o terrível hábito de desacatar frequentemente a grande lei. Coisa própria de republiquetas, não de uma grande nação. E na hipótese pior, ficaremos sujeitos a atos de violência, até mesmo a guerra civil. (Folha de S. Paulo. São Paulo, 28 de agosto de 1961, p. 4) 

O Congresso Nacional esteve todo o tempo afinado com as demandas que cresciam e se organizavam na sociedade brasileira. Assim, no dia 29 de agosto, o impeachment de Goulart foi posto em votação: a proposta foi derrotada por 299 votos contra o impedimento do presidente. Apenas 14 parlamentares votaram a favor. Até a UDN, partido do governador Lacerda, defendeu o mandato de Goulart. O poder civil queria impor-se ao poder militar. Mas estava difícil. No dia seguinte, 30 de agosto, a Junta Militar emitiu uma nota oficial: 

Na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade e poder pessoal ao chefe do governo, o sr. João Goulart constituir-se-á, sem dúvida, no mais evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o país mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil. As próprias Forças Armadas, infiltradas e domesticadas, transformar-se-iam como tem acontecido noutros países, em simples milícias comunistas. 

A crise política era profunda e os ministros militares confirmavam que não aceitariam a presidência com Jango, para eles sinônimo de caos e de comunismo. O golpe militar permanecia armado. Ou se partiria para uma guerra civil ou se encontraria uma saída pacífica negociada. Setores do PSD, do PTB e mesmo de outros partidos políticos já vinham pensando em uma alternativa possível. Como o veto militar estava concentrado nos poderes exercidos pelo presidente da República, a saída encontrada foi a proposta de implantação de um regime parlamentarista. Jango tomaria posse como presidente legítimo que era. Só que, com o parlamentarismo, quem governava era o primeiro-ministro. A Junta Militar precisava ser consultada. Um grupo de generais procurou então o ministro da Guerra, Odílio Denys. Argumentaram que não interessava ao Exército golpes de Estado, menos ainda guerras civis. Que Denys aceitasse a proposta do Congresso Nacional, pois a adoção do parlamentarismo era uma “saída honrosa” para todos. Conseguiu-se, a partir daí, a concordância dos três ministros militares. Faltava a de Goulart.

Existia, de fato, uma emenda parlamentarista em tramitação no Congresso Nacional havia muitos anos.  Ninguém nunca a levou muito a sério. Mas nesse novo e dramático contexto, um grupo de políticos do PSD e do PTB foi encarregado de dar uma nova redação ao projeto que, de imediato, entrou em pauta para votação no Congresso Nacional.

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Afonso Arinos de Mello Franco depõe sobre a emenda parlamentarista em 1982-3

Quando cheguei a Brasília, fui direto para o Senado e vi que o negócio estava feito, era só redigir. A decisão militar estava tomada. San Tiago telefonou para Jango, que se encontrava em Paris: “O Afonso está aqui e estamos pensando em uma solução.” Falei com Jango e ele foi muito preciso, muito correto: “Aceito quaisquer entendimentos que sejam acompanhados pelos meus amigos.” Para redigir a emenda, nós nos reunimos numa sala no Senado, acho que na minha sala, na Comissão de Justiça — e a luz havia sido cortada. Tivemos que acender velas. Havia umas vinte ou trinta pessoas presentes. Há trechos escritos ora com a minha letra, ora com a letra do San Tiago. Aquilo foi sendo feito com todos dando palpites, até que tomou aquela forma. Não houve falha, tudo funcionou sem infringir a legislação existente. (Afonso Arinos de Mello Franco, Depoimento, CPDOC/FGV, 1982-3) 

O pessedista Tancredo Neves, que fora ministro de Vargas em seu segundo governo, foi encarregado de levar a proposta a Jango. No dia 1º setembro, ele chegou a Montevidéu, onde Jango o aguardava. Mesmo sendo inteiramente favorável a uma saída pacífica e já informado de que se buscava uma negociação política com os militares, Jango se surpreendeu e resistiu à proposta. A conversa com Tancredo Neves não foi fácil. Com o regime parlamentar, ele tomaria posse, mas praticamente sem poderes. Tancredo insistiu. O país encontrava-se fraturado; ameaçado por um conflito armado. A possibilidade iminente de uma guerra civil fez com que aceitasse o regime parlamentarista, mesmo a contragosto. Tancredo ainda fez mais. Persuadiu Goulart a não fazer nenhuma declaração ao chegar a Porto Alegre. Tratava-se de uma exigência dos ministros militares. Evidentemente muito irritado, Jango achou melhor concordar e acabar de vez com aquela situação. 

Goulart sabia da gravidade da crise. Resolveu aceitar o parlamentarismo para tomar posse e conduzir o país à tranquilidade constitucional. Na presidência da República, teria outras condições políticas para agir.

Pesquisa do IBOPE

Pesquisa do Instituto de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) realizada no estado da Guanabara concluiu que 81% dos eleitores desejam que Goulart tome posse no regime presidencialista; 10% no regime parlamentarista, 9% não souberam responder. Entre os eleitores do governador Carlos Lacerda, 69% desejam que Goulart assuma a presidência da República no regime presidencialista. (Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1961, p.1)

Na noite do dia 1º de setembro, Jango chegou a Porto Alegre. A festa da população gaúcha foi imensa. Na Praça da Matriz a população exigia um discurso, mas Goulart recusou-se a falar, limitando-se a acenar e sorrir. Às 3h30 da madrugada do dia 2 de setembro, a Emenda Constitucional nº 4, também chamada de Ato Adicional, que instituía o parlamentarismo, foi aprovada por 233 votos contra 55. Enfim, Goulart podia tomar posse.

Em Porto Alegre, o clima era de frustração. Muitos jornalistas ficaram revoltados; afinal haviam arriscado suas vidas, ao lado da população do estado, para que ele tomasse posse. Esperavam um depoimento de Jango, sobretudo rejeitando governar sob regime parlamentarista. Mas Goulart limitou-se a escrever uma nota. No texto, dizia que seu desejo era o de identificar-se com os anseios do povo brasileiro, respeitar a Constituição e as leis. No final, terminava com a frase: “Que Deus me ilumine, que o povo me ajude e que as armas não falem.” 

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O jornalista Flávio Tavares avalia a decisão de Goulart em 2004

Implantado naquelas circunstâncias, o parlamentarismo significava a mutilação dos poderes do presidente da República. Mas, se o mutilado aceitava, por que todos nós continuávamos inflexíveis? Talvez por uma única razão: Jango o aceitava sem dar nenhum tipo de explicação ou justificativa àqueles que, armas na mão e o perigo rondando, haviam tornado possível o seu retorno, anulando na prática a ordem de que ele fosse preso “ao pisar o solo do Brasil”. E Jango aceitava porque, com. parlamentarismo ou presidencialismo, ele é que ia para a Presidência e teria que enfrentar os problemas que já se mostravam difíceis. (...) Só muito tempo depois, já abrandado o ardor das noites insones da Legalidade em Porto Alegre, quando adentrei no jogo de poder maior do país e conheci o Congresso e as pressões que nele desembocam, fui perceber que Jango Goulart estava muito à nossa frente naqueles dias em que pensávamos que ele retrocedia ao aceitar o parlamentarismo. O golpe frustrado dos ministros militares tinha fragmentado o país e Jango se dispôs a reunir os cacos ou estilhaços e colá-los com paciência, num governo de coalizão, mesmo com o sacrifício dos poderes presidenciais. (Flávio Tavares. O dia em que Getúlio matou Allende e outras novelas do poder, 2004, pp. 214-5)

O governador Leonel Brizola gostou menos ainda da atitude de Jango. Na Rede da Legalidade, denunciou a aprovação da emenda parlamentarista. Para ele, o Congresso Nacional, ao votá-la, perdia sua legitimidade política. Cansado, após dias liderando a resistência democrática, Brizola conversou com Goulart, apresentando seu ponto de vista: Jango deveria marchar liderando o III Exército até Brasília. A seguir, fecharia o Congresso Nacional sob o argumento de que ele violara a Constituição. Depois, convocaria uma Assembleia Nacional Constituinte.

A proposta de Brizola era, para dizer o mínimo, muito ousada. E, tudo levava a crer, não era viável. Ela precisava do acordo do general Machado Lopes, comandante do III Exército, que se posicionou ao lado de Goulart por entender que defendia a legalidade. Por que, então, comandaria o fechamento do Congresso Nacional? Por que, àquela altura, enfrentaria os ministros militares e o Congresso que aceitaram a “solução” parlamentarista? E, se o fizesse, não estaria dando início a uma guerra civil, que ele mesmo e o país inteiro quiseram evitar?

Não importa. Os planos de Jango eram outros. Para ele, o importante era chegar ao poder sem guerra civil, sem derramamento de sangue. Assim, queria assumir a presidência, e só então minar o sistema parlamentarista até reconquistar os poderes presidenciais. Este era seu plano e foi o que fez.

Tudo indicava que a crise havia sido contornada, quando Jango sofreu novas ameaças. Boatos diziam que o avião que o levaria de Porto Alegre à Guanabara poderia ser abatido por caças. Tratava-se do que, posteriormente, ficou conhecido como Operação Mosquito. Os ministros militares, contudo, lavaram as mãos diante de um atônito presidente interino, que também foi informado dessa possibilidade. Ou seja, ela certamente era bem mais que um mero boato. Só que o general Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar, presente ao encontro entre Ranieri Mazzilli e os ministros militares, resolveu agir. Ordenou que tropas do Exército tomassem as bases aéreas onde estavam os aviões de caça e garantiu o pouso do avião presidencial. 

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Ernesto Geisel em depoimento nos anos 1990

Pessoalmente só tive um contato, quando ele [Jango] chegou a Brasília em 1961, de avião, para tomar posse. Houve naquela época alguns problemas com a Aeronáutica. Primeiro foi a “Operação Mosquito”, cujo objetivo óbvio seria abater o avião. Depois quiseram impedir o pouso em Brasília, colocando tonéis na pista. Eu reagi dizendo: “Não permito. Já que resolveram dar posse, ele toma posse. Vamos cumprir aquilo com que nos comprometemos.” Fui ao aeroporto, de onde foram retirados os tonéis, e esperei o avião. Recebi Jango junto com o presidente Mazzilli e fomos deixá-lo na Granja do Torto. (Maria Celina D’Araujo e Celso Castro. Geisel. Ed. FGV, 1997, p. 148)

Tudo indica que assim ocorreu, embora outras versões aleguem que os sargentos é que sabotar

am as aeronaves. Por isso, apenas no dia 5 de setembro Goulart viajou em segurança até Brasília.

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