Em uma de suas obras, o escritor e filósofo italiano Umberto Eco discorre sobre possíveis conspirações em torno do Poder[i]. Não qualquer poder, mas o Poder capaz de gerar e sustentar os micropoderes que compõem as relações humanas – individuais, grupais ou nacionais. Um poder tão zelosamente guardado, e tão secretamente compartilhado que mesmo seus guardiões não o conheciam por completo, devendo cumprir uma série de mandamentos para se apropriarem de fragmentos de sua revelação, a qual só se daria por completo após o último de uma série de seis encontros. Esses encontros ocorreriam em intervalos regulares – regulares, não: precisíssimos – de 120 em 120 anos. Os encontros, então, para os grupos participantes da "estafeta", somente se dariam "post 120 annos patebo": em intervalos respeitando 120 anos passados do encontro anterior.

Qual a pertinência dessa referência a Eco e seu Pêndulo? É que, em 2008, no Brasil, se completam 120 anos desde que foi decretado o fim do regime escravista, o fim da escravidão dos negros, africanos ou não, e seus descendentes. Coincidentemente, neste mesmo ano de 2008 se celebram os 100 anos da imigração japonesa, o centenário da chegada dos primeiros imigrantes japoneses ao Brasil. Chegada de imigrantes dentro de uma política oficial de acolhida de estrangeiros, a quem as portas do território estariam abertas.

A consideração desses dois marcos históricos não poderia deixar de suscitar a curiosidade dos brasileiros. Afinal, a realidade socioeconômica, hoje, de indivíduos pertencentes a esses dois grupos históricos, é bastante diversa. Antes de qualquer coisa, os afro-descendentes estão em solo brasileiro há quase cinco séculos – se se tomar em conta os primeiros registros que informam a presença de africanos por estas terras de além-mar no início dos anos 1530. Os nipo-descendentes, conforme já indicado, ocupam estes solos há um século. Essa diferença temporal não seria significativa se um conjunto de dados não apontasse para um abismo que situa afro-descendentes e nipo-descendentes como que em lados opostos de uma existência digna.

Analisando os aspectos sócio-culturais. Em 1824 foi criada a primeira colônia alemã em São Leopoldo (RS); em 1852, Vergueiro principia a contratação direta de imigrantes na Europa, com auxílio do governo, estabelecendo contratos de parceria. Sidnei Machado[ii] aponta que em toda a discussão sobre o direito do trabalho no Brasil, os textos focam os antecedentes jurídicos europeus, situando a abordagem brasileira em fins do século XIX e, sobretudo, início do século XX. Citando Segadas Vianna, Machado observa que das 1.300 páginas redigidas em seu estudo Instituições de Direito do Trabalho, menos de duas páginas são dedicadas à discussão do trabalho escravo. Mais: apenas um parágrafo menciona a escravidão negra no Brasil. Já no estudo de Amauri Mascaro do Nascimento (Curso de Direito do Trabalho), o capítulo introdutório não faz qualquer menção às relações trabalhistas no Brasil antes das primeiras leis do século XX. Existem, sim, referências a antecedentes jurídicos estrangeiros.

O que se sabe é que o trabalho escravo não era um trabalho protegido por leis favoráveis aos escravos, uma vez que os escravos eram, também eles, coisas, "peças", como bem apontou Antonil[iii], uma ferramenta preciosa para o enriquecimento do senhor de engenho, o que exigia, desse senhor, alguns cuidados, ainda que as bases desses cuidados fossem os "3 Ps": "pão", "pano" e "pau" – não, necessariamente, nessa ordem, como bem se pode imaginar, em um sistema fundado na violência, como o escravista[iv].

O que se pode depreender das leituras a respeito da vida dos cativos, seja no período canavieiro, seja no período áureo e das outras minas, mesmo no período cafeeiro, é que muitos dos senhores descuidavam das obrigações que lhes eram imputadas, no que se refere à alimentação e ao vestuário: em geral, a ração diária era complementada pela própria produção dos escravos, aos quais, em geral, se concedia um dia da semana para cuidar de plantações de onde pudessem retirar alimento extra[v]. Em verdade, o que esse costume indica é que os escravos se submetiam a uma dupla jornada de trabalho: durante o dia, sobretudo ao longo dos dias úteis da semana, os escravos trabalhavam para os senhores; dedicavam, depois, a si próprios, o "tempo livre" de que dispunham, principalmente, nos domingos e dias santos. Com as implicações religiosas que essa prática representava.

É possível se perceber, nessa estrutura trabalhista, conforme já sugerido, que a legislação focava o benefício do senhor, mesmo quando recriminava o rigor dos castigos infligido aos escravos[vi]. E, quando findou a escravidão, ocorreram melhorias? Também o que se pode conhecer é que algumas leis foram implantadas com o fito de se restringir o acesso dos ex-escravos a um mercado mais amplo de trabalho, que não os postos subalternos e periféricos, as ocupações mais insalubres e fisicamente mais exigentes.

Fraga[vii], analisando em sua dissertação de mestrado a vida escrava no século XVIII mineiro, apresenta bem a quase indistinção havida entre escravos e ex-escravos, uma vez que

Ser liberto não era ser livre. A sociedade estamental mineira não reconhecia o liberto como igual. Desde o governo de D. Pedro de Almeida, o conde de Assumar, já estava claro que os forros estavam sujeitos às mesmas leis que os escravos. Não podiam portar armas e em alguns casos sua situação era pior. Em 1732 a Câmara de Vila Rica proibia as vendas de atender negros após a Ave Maria. Um negro liberto não podia ser atendido, mas um escravo que portasse uma carta de seu senhor podia ser atendido. O mesmo acontecia em Mariana pelas posturas municipais de 1734.[viii]

Com a abolição do sistema escravista, o que se viu foi o fim, legal, de um modelo econômico, mas que não causou impacto imediato e correspondente na organização social. O negro, o mulato, o mestiço, o afro-descendente, em suma, seria, sempre, visto como o que foram seus antepassados: escravo, filho de escravo, descendente de escravo. E, sob alguns aspectos, sobretudo em alguns círculos sociais, mesmo passados 120 anos do fim da escravidão legal, não é possível se afirmar que a "nação" brasileira – já alertada por Bonifácio no primeiro quarto do século XIX[ix] – esteja preparada, em seu imo, para a assunção madura (e conseqüente inclusão) desse contingente estigmatizado.

Seria interessante – porém, não é o objetivo destas páginas – um paralelo entre a evolução dos grupos étnicos presentes em território brasileiro, sua maior ou menor inclusão e aceitação pelos nacionais, o grau de sua mobilidade social... Enfim, seria interessante um estudo de caso que aproximasse, por exemplo, os 120 anos de "liberdade" dos afro-descendentes e os 100 anos de imigração dos japoneses[x], processo imigratório que faz com que, atualmente, o Brasil comporte a maior comunidade nipônica (incluindo os nipo-descendentes) fora do Japão. De modo similar como comporta a maior comunidade afro-descendente do mundo, ficando atrás, somente, da Nigéria.

A essa proposta nos dedicaremos em um artigo próximo.

[i] U. Eco, O pêndulo de Foucault, Rio de Janeiro, Record, 1989.

[ii] S. Machado, Trabalho escravo e trabalho livre no Brasil: alguns paradoxos históricos do direito do trabalho, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, p. 151-158.

[iii] Referência ao jesuíta André João Antonil, que viveu no Brasil entre os séculos XVII e XVIII e foi um dos primeiros a escrever sobre a vida da Colônia, relatando, sobretudo, aspectos econômicos. Antonil nasceu em Luca (Toscana, Itália), em 8 de fevereiro de 1649 e faleceu na Bahia em 13 de março de 1716. Foi autor do estudo Cultura e opulência no Brasil (São Paulo, Melhoramentos/MEC (Instituto Nacional do Livro), 1976), publicado em 1711. Na primeira página de sua investigação, Antonil refere-se aos escravos, quando aponta a organização dos engenhos, designando-os "peças": "Toda a escravaria (que nos maiores engenhos passa o número de cento e cinqüenta e duzentas peças, contando a dos partidos) que mantimentos e farda, medicamentos, enfermaria e enfermeiro [...]" (Antonil, op. cit., p. 75, grifos nossos).

[iv] Nas palavras de Antonil: "No Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber, pau, pão e pano. E, posto que comecem mal, principiando pelo castigo que é o pau, contudo, prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada, ou levantada [...]" (Id., ib., p. 91).

[v] Conforme Antonil, op. cit.

[vi] Aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir o dar couces, principalmente nas barrigas das mulheres que andam pejadas, nem dar com pau nos escravos, porque na cólera se não medem os golpes, e podem ferir mortalmente na cabeça a um escravo de muito préstimo, que vale muito dinheiro, e perdê-lo. Repreendê-los e chegar-lhes com um cipó às costas com algumas varancadas, é o que se lhes pode e deve permitir para ensino. (Id., ib., p. 84, grifos nosso).

[vii] A. Fraga, Cativeiro barroco: a escravidão urbana em Minas Gerais – Mariana e Ouro Preto – na primeira metade do século XVIII, Universidade Severino Sombra, 2000.

[viii] Fraga, op. cit., p. 112.

[ix] Ana Cloclet da Silva, discutindo o projeto bonifaciano de nação, em seu livro Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio – 1783-1823 (Campinas, SP: Editora da Unicamp / Centro de Memória Unicamp (CMU), 1999), deixa claro que a possibilidade de o Brasil se transformar em uma nação africana – devido ao grande número de negros – representava um perigo. Havia, sim, os índios, mas esses seriam absorvidos como os habitantes primígenos; e, sendo em número reduzido, não se correria o risco de interferirem na constituição futura da nação.

[x] Os primeiros 781 imigrantes japoneses (165 famílias) chegaram ao Brasil – no porto de Santos – em 18 de junho de 1908, a bordo do navio Masato Haro e foram, maciçamente, se radicar no atual bairro paulistano da Liberdade. Mas existem inúmeras colônias nipônicas pelo interior de São Paulo e, mesmo, em outros Estados. Após uma série de dificuldades iniciais, incluindo perseguições políticas, sobretudo durante os períodos das Grandes Guerras – perseguições extra e intra grupos nipônicos, se se tiver em conta que havia organizações de japoneses (como a Shindo Renmei) que perseguiam outros que, durante as Guerras (e, mesmo, após), acreditavam que o Japão estava perdendo ou perdera a guerra. Além dessas, havia dificuldades de outras ordens: os rigores do trabalho rural e os contratos nem sempre justos, as dificuldades culturais, de costumes, idioma...