Um livro de incitação à corrupção, escrito por um corrupto, em/para uma realidade infestada de corruptos, para orientação de corruptos, para se lidar com uma humanidade corrupta. Assim considero "O Príncipe". Lendo-o com muito senso crítico, podemos concluir que não faltou muito para ele entrar para a categoria bibliográfica em que estão enquadrados Mein Kampf (o livro de Hitler) e Malleus Malleficarum (o "manual" dos caçadores pós-medievais de "bruxas"). Esse livro, na prática, lançou fundamentos que alicerçam há 500 anos a política dos manipuladores e corruptos, os maus políticos da sociedade ocidental.

"O Príncipe" é uma compilação de recomendações de Niccolò Machiavelli (conhecido nos países lusófonos como Nicolau Maquiavel) sobre como um pretendente a governante deve agir em dada região suscetível a muitas guerras, totalmente carente de democracia e cidadania e onde vale tudo para conquistar e manter o poder. Para ele, tudo é cogitável para se obter o comando do Estado e permanecer um líder bem-reputado pelas elites e pelo que ele ás vezes chama de "populaça". Mesmo ser cruel e assassino (capítulo 8) e temível (cap. 17).

Muito embora os fundamentos maquiavélicos da safadeza sejam seguidos até hoje, o livro não deve ser analisado e entendido de nenhuma forma que não leve em conta o contexto histórico de sua elaboração. O início do século 16, época em que Machiavelli dedicou seus conselhos a Lorenzo de Médici – os quais seriam compilados em livro mais tarde –, era um período de podridão política na Europa.

As famílias dominantes do continente dançavam à vontade pelos tronos dos países. O Papa da época, rei dos Estados Pontifícios, algo como um Vaticano aproximadamente cem mil vezes mais extenso do que hoje, era, além do "CEO do catolicismo", também mais um pertencente à turba real europeia. A atual Itália era um punhado de reinos e repúblicas, onde reis de quase todas as potências da Europa "jogavam" uma sangrenta espécie de "Age of Empires italiano".

É prestando atenção nessa realidade que se pode até defender Machiavelli, livrando parte de sua culpa por ter escrito tudo aquilo. Tudo o que ele fez foi orientar o leitor – Lorenzo de Médici, lembremo-nos – para se dar bem num panorama político continental tempestuoso. Compilou-lhe a lei do cão que vigorava na Europa desde a época da Grécia Antiga. Não poderíamos exigir que Niccolò crescesse na vida cultivando ideias pacifistas, democráticas e de justiça social naquele mundo-cão em que, de fato, só tinha vez na política quem fosse corrupto, manipulador e cruel.

Lembremo-nos também que aquela mesma ralé real, destacando-se portugueses e espanhóis, ambos apadrinhados pela diabólica "santidade" católica, encabeçaria os genocídios nas Américas alguns anos depois. Em malignidade, a realeza europeia da época não levava muita desvantagem em relação aos traficantes do Rio de Janeiro.

Machiavelli prestava conselhos políticos na época e assim portou-se ao escrever "O Príncipe" para Lorenzo. Para escrevê-lo, provavelmente pensou: "Não sou tolo de aconselhar um nobre a ter um comportamento benigno que irá estraçalhar-lhe as chances de ter poder perante essas elites corruptas e egoístas. Se eu quero continuar sendo respeitado no mundo político, preciso orientá-lo para que se dê bem entre esses príncipes perversos, e isso só vou conseguir se mandá-lo ser um príncipe perverso também!" Como ele era parte da gentalha política, não passava por sua cabeça pregar valores políticos benignos.

Muito embora ele tenha escrito "O Príncipe" visando a realidade de sua época, o livro permaneceu valorizado nos séculos seguintes, até hoje, como "obra-prima da ciência política", "inauguradora da política moderna". Essa concepção valorizante tem até razão parcial, pelo fato de que Niccolò fez uma análise da política como ela era e não como deveria ser, muito embora ele tenha manifestado um viés de aprovação e apoio a todo aquele panorama baseado na corrupção e na manipulação, em vez da neutralidade que caracteriza a visão de caráter científico.

Outro detalhe que contraria tal argumento de que ele teria se portado genuinamente como um protocientista político é que pode ser interpretado na leitura de sua obra que, para ele, aquele panorama violento já era de bom grado, era sustentável. Mesmo quando os principados italianos estivessem libertos do jugo dos reis estrangeiros, não valeria a pena mudar.

Foi explicado acima que o escritor d'"O Príncipe" levou em conta a realidade política violenta da época e do continente, mas isso não o isenta do óbvio fato de que sua visão de mundo também era guiada pelas agruras. Em outras palavras, sua mentalidade era tão absurda como a dos reis "jogadores" do "Age of Empires italiano". Era só mais um da corja, pelo que se pode notar em diversos detalhes ao longo da obra:

- era partidário da guerra (vários capítulos);

- em vez de condenar métodos cruéis de conquista do poder, orientava o leitor a como proceder num golpe de Estado cruel bem-sucedido (cap. 8);

- aconselhava a manipulação diplomática (cap. 21);

- apoiava a política alienante de pão-e-circo (cap. 21);

- cultivava valores antidemocráticos (cap. 23);

- manifestava-se violento contra as mulheres (metáfora no capítulo 25).

Vários outros valores negativos preconizados por Machiavelli estão presentes no livro, mas, em vez de mostrá-los, convido ao leitor que os procure ao ler a obra, já para encará-la com senso crítico.

Infelizmente, apesar da falta de caráter que o marcou, "O Príncipe" vem sendo até hoje seguido à risca por muitos políticos. Pode-se imaginar que tipo de políticos o aplica na realidade de hoje: ditadores e pseudodemocratas – governantes e parlamentares que, depois de eleitos, levam em consideração mais os brutais conselhos maquiavélicos do que os valores da democracia – cujo poder político é investido em proveito próprio. Novamente aconselho enfaticamente ao leitor que, ao ler esse livro, leve em conta o fato de que ele foi uma obra escrita para a realidade da época e deve ser interpretado como tal. Não é um livro atemporal!