TRIBUNAIS MIDIÁTICOS: A CRIMINALIDADE SOB A VISÃO DOS PROGRAMAS POLICIAIS

 

 

Gessivando Meneses da Silva¹

Jânio Ponciano de Oliveira²

 

“Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é um homem.”

Fernando Sabino

 

 

Resumo: Na tentativa de combater a criminalidade, a mídia, sobretudo os programas policiais, muitas vezes, banalizam a violência, infringem direitos fundamentais e segregam a sociedade em cidadãos e não cidadãos, contribuindo para a formação de preconceitos e prejulgamentos. O presente estudo visa analisar a maneira como estes programas abordam o tema da criminalidade.

Palavras-chave: Programas policiais. Direitos fundamentais. Desumanização. Cidadania.         

 

Abstract :  In an attempt to combat crime, the media, especially the police programs often trivialize violence, infringe fundamental rights and segregate society into citizens and non-citizens, contributing to the formation of prejudices and prejudgments. This study aims to analyze how these programs address the issue of crime.

Keywords: Police programs. Fundamental rights. Dehumanization. Citizenship.

Percebe-se, cada vez com maior frequência, a confrontação entre cidadãos e não cidadãos, principalmente, quando se acompanha as notícias policiais veiculadas pelos mais diversos meios de comunicação. Esses programas que, em geral, deveriam transmitir às pessoas informações de maneira clara, imparcial e, sobretudo, condizente com a verdade, proporcionando meios para reflexão sobre os problemas sociais, na maioria das vezes, acabam por inserir prejulgamentos e violando direitos e garantias estabelecidos pelo ordenamento jurídico.

A imprensa encontra respaldo constitucional que lhe assegura direito à liberdade e a livre manifestação do pensamento. Porém, entende-se que tais garantias não são absolutas e, por isso, não podem infringir o direito à privacidade dos indivíduos. Entretanto, vê-se uma exploração midiática exercida de maneira desarrazoada e, ainda, desrespeitosa, desempenhando diariamente papel completamente contrário ao esperado, que induzem a população a erros de conclusão e a julgamentos antecipados.

O discurso propagado, precipuamente, pelos programas policiais televisivos acaba segregando a sociedade em dois grupos; os cidadãos e os não cidadãos, ou, usando os vocábulos empregados pelos repórteres e apresentadores; os “homens de bem” e os “marginais”. Aqueles correspondem aos que não têm envolvimento com o crime, enquanto estes, por já terem praticado atos infracionais, violentos ou não, fazem parte da corja social e, por isso, devem ser isolados ou, até mesmo, eliminados.

Aparentando popularidade, a linguagem utilizada por tais programas é o meio para liberar concepções preconceituosas e posições reacionárias como a implantação da pena de morte, a redução da maioridade penal, entre outras. Assim, ao parecer engraçado, o telespectador não identifica a ironia e a discriminação nas notícias veiculadas. Desta maneira, ele não percebe a vinculação que os programas policiais fazem da pobreza à violência, da exclusão à criminalidade e, pior, quando tentam naturalizar a aceitação de que existem indivíduos destituídos de direitos.

Como se não bastasse a segregação, tais programas ainda negam aos “bandidos” direitos básicos que são assegurados a qualquer pessoa, independente dos crimes que tenham praticado. Por outro lado, as vítimas destes veem sua condição de cidadania sendo ampliada e adquirem, assim, uma posição elevada e favorecida.

A palavra cidadania vem do latim civitas e foi usada pela maioria das civilizações na antiguidade para indicar a situação política de um indivíduo e os direitos que esse tinha ou podia exercer. No entanto, com as transformações políticas e sociais ao longo dos tempos, tal conceito sofreu alterações e por diversas vezes sua história foi confundida com a dos direitos humanos. Dalmo Dallari (1998. p.14) assim aduz:

A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social.

Nota-se que esta concepção de cidadania é, pelos programas policiais, apresentada à população de forma diversa, uma vez que estes propagam a cidadania como sinônimo de inocência e integridade de caráter. Infelizmente, pode-se também encontrar amiúde esse equívoco nos discursos de autoridades policiais.

De início, quando um programa policial atribui determinado delito a um indivíduo, não há nenhuma certeza de que realmente o fato delituoso fora praticado por ele. Todavia, a partir do momento em que o programa faz um prejulgamento, passa-se o sujeito de mero suspeito a culpado, não se respeitando o princípio orientador do processo penal e garantia constitucional, a saber, o principio da presunção de inocência que deverá assegurar ao acusado a não condenação por nenhum crime até que se tenha comprovado sua culpa e não haja mais como recorrer de tal decisão.

Em sua essência, tal princípio somente tornou-se consagrado com a promulgação da Constituição Federal Brasileira em 1988 que se encontra disposto no art. 5o, inciso LVII, e assim dispõe:

Art.5o. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; [...]

Alterou, ainda, a Lei nº 12.403, de 5 de maio de 2011, o disposto no art. 283 do decreto-lei 3.689/41-Código de Processo Penal, instituindo novas medidas cautelares de natureza pessoal no processo penal, estabelecendo que:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

O princípio da presunção de inocência encontra-se compreendido nos direitos fundamentais chamados de direitos de defesa, presente também nas disposições de que trata os direitos civis e políticos, o que a doutrina reconhece como direitos de primeira dimensão, uma vez que são os primeiros a serem conquistados.

Ressalva faz Alexandre de Morais (2003, p.132) ao consagrar a presunção de inocência, como um dos princípios basilares do Estado de Direito de garantia processual penal, com a intenção de se obter a tutela da liberdade pessoal; “dessa forma, há a necessidade de o estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal”.

Indiscutivelmente, a liberdade figura como sendo um dos bens de maior importância para um indivíduo, por isso é razoável que toda e qualquer prisão seja efetuada quando se provar a sua real necessidade. Assim, de acordo o código processual penal, deverá o juiz, ao decretar na sentença condenatória a prisão do réu, fundamentar sua decisão com intuito de evitar subjetivismos e arbitrariedades.

No entanto, o princípio da presunção de inocência não é o único violado pelos programas policiais, principalmente frente aqueles casos de maior repercussão e que causam grande comoção. Muitas vezes, o próprio direito de defesa dos acusados passa a ser questionado e garantias básicas são confundidas com mordomias.

Por outro lado, sabe-se que a própria Constituição Federal de 1988, em seu art.5o, inciso LV, busca assegurar a ampla possibilidade de defesa quando determina que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Bem como outorga ao Estado, no mesmo artigo em apreço, inciso LXXIV, o papel de fornecer defesa quando dispõe que este deverá prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

A violação do direito de imagem também se tornou prática recorrente pelos escravos da notícia, ainda que os “meliantes” estejam na condição de suspeitos, situação esta muito comum. No art.5o, inciso X, a defesa aos direitos fundamentais que a Constituição apregoa estabelece que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Deste modo, a mídia viola não apenas preceitos consagrados constitucionalmente, mas, ainda, o bom senso, a noção de justiça e a visão humanista que deveriam nortear não só o trabalho da imprensa como também o da polícia, uma vez que, não raro, esta se encarrega de expor suas tarefas ao exibir suas capturas.

A exposição excessiva e abusiva tanto midiática, quanto a realizada pela própria polícia contribui negativamente, pois a divulgação da notícia da detenção ou prisão produz um reconhecimento público imediato do acusado, mas, muitas vezes, sua culpabilidade não é comprovada, o que torna o procedimento ilegal. Assim sendo, o indivíduo tem sua imagem e, por consequência, seu futuro comprometidos, uma vez que, provavelmente, carregará essa mácula de “bandido” pelo resto de seus dias. 

Desta feita, quando abordam os temas da violência, da criminalidade e da segurança pública, os programas o fazem estigmatizando determinados territórios e segmentos sociais. Os apresentadores sentem-se no poder de julgar e estabelecer sentenças e punições. Com isso, condenam muitos inocentes, uma vez que após essa avalanche de acusações midiáticas que influenciam a opinião pública, estas pessoas, mesmo absolvidas judicialmente, perdem a cidadania, bem como jamais recuperarão a dignidade plena e enfrentarão grandes dificuldades para retornar a vida social.

Ao analisarmos o tratamento dado pela mídia em geral aos não cidadãos envolvidos em delitos criminais, ou supostamente envolvidos, bem como as soluções apresentadas por aqueles que estão a frente desses programas que exploram a violência, indaga-se se eles pretendem que seja instaurado em nossa sociedade um Estado de Exceção, como panaceia para estes males, tal como nos estados totalitários, ou seja, um estado de exceção desejado.

É cediço que, durante um Estado de Exceção, direitos fundamentais são excluídos em detrimento de uma causa maior. Entretanto, nota-se que tal instituto antes temporário e de absoluta necessidade vem tornando-se regra. Assim, teme-se que o combate a crescente violência enseje na adoção desta forma de estado e que acabe por justificar uma ditadura constitucional como expõe Giogio Agambem (2008, p.21), ao citar Rossiter, quando afirma:

em tempos de crise, governo constitucional deve ser alterado por meio de qualquer medida necessária para neutralizar perigo e restaurar a situação normal. Essa alteração implica, inevitavelmente, um governo mais forte, ou seja, o governo terá mais poder e os cidadãos menos direitos.

Assim, os programas policiais indireta ou diretamente pregam a transgressão da constituição numa situação de necessidade, baseando-se na convicção de que a lei fundamental pode ser violada, uma vez que a ordem social encontra-se em risco. Motivo este que serviu de alicerce para a instauração de vários estados de exceção ao longo da história que seguiam o pensamento desenvolvido por Tomás de Aquino em sua Summa Theologic de que a própria necessidade traz consigo a dispensa, porque a necessidade não está sujeita à lei.

De outro modo, isso pode não ser intencional e, assim sendo, apenas demonstrar o quanto há de despreparo por grande parte da mídia e da polícia que, ao abordarem a criminalidade, a violência e a segurança pública, deslocam as matérias do contexto, dificultando a reflexão sobre as situações retratadas. Talvez, devido à pressa, em razão da exclusividade na divulgação da informação, eles acabam por fazer denúncias descabidas, depreciativas e que prejudicam a análise do telespectador que, raramente, lhe é dado condição de identificar um prejulgamento.  

Isso advém com o crescimento da violência, sobretudo nos grandes centros urbanos em decorrência, principalmente, da difusão de armas de fogo e do tráfico de drogas. Assim, o crime propaga-se de forma a causar como resposta da mídia e do poder público um aumento da repressão policial que, nos últimos anos, mostra-se sem efeito, uma vez que não combate a criminalidade em sua origem. Portanto, o comportamento truculento de parte da polícia serve apenas como fator gerador de terror na sociedade trazendo, com isso, a banalização da violência.

Outra resposta, erroneamente, adotada pelo Estado e presente também nos discurso dos programas policiais na tentativa de conter a crescente de violência consiste no aumento do aparelho carcerário. Entretanto, sabe-se que este sistema que deveria ter como finalidade a recuperação e a ressocialização dos presidiários, no Brasil, atualmente, não consegue efetivar o fim correcional da pena, passando a ser apenas uma escola de aperfeiçoamento do crime, além de ter como característica um ambiente degradante e pernicioso, acometido dos mais degenerados vícios, sendo impossível a ressocialização.

Fatores diversos culminaram para que se chegasse a um precário sistema prisional. Dentre eles destacam-se o abandono, a falta de investimento e o descaso do poder público ao longo dos anos que agravaram ainda mais as condições do sistema carcerário brasileiro.

Diferente daqueles que afirmam ser a prisão um investimento eficiente e rentável para a sociedade, estudos confirmam que não existe relação alguma entre índices de criminalidade e níveis de encarceramento a nível internacional.  Entretanto, muitos são os defensores do fortalecimento do Estado penal em detrimento do Estado econômico e, principalmente, social.

Em suma, entende-se que a defesa de um Estado penal excessivo e austero é inaceitável, uma vez que apenas intensifica a criminalidade em vez de combatê-la e provocar seu decréscimo. Como também, o aparato estatal não deve voltar-se unicamente contra os criminosos, mas sim em todas as direções, sobretudo contra a significativa desigualdade social que, indiscutivelmente, é um forte gerador da violência.

Importante, ainda, é uma alteração no olhar para o acusado, um olhar mais humanizado que, em geral, a mídia, a polícia e alguns setores sociais recusam-se a observar. Assim, jamais deverá o indivíduo, sob quaisquer circunstâncias, ser tratado antecipadamente como se condenado fosse e, principalmente, mesmo após condenação, ter seus direitos e garantias constitucionais infringidos, uma vez que os valores emanados da Constituição vigoram para todos.  

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

AGAMBEM, Giorgio. Estado de Exceção. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, atualizada até a Emenda Constitucional nº 67, de 5 de janeiro de 2011. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm>. Acesso em: 30 jan. 2013.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. 1. ed. São Paulo: Moderna, 1998.

MADEIRA, Raimundo. Centro de Defesa da Criança e do Adolescente. Televisões: Violência, Criminalidade e Insegurança nos Programas Policiais do Ceará. Expressão Gráfica Editora, 2011.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.