Teoria da transposição em Teatro
De: Sidney Guedes ? Ator, diretor e dramaturgo.

Em minha trajetória de 27 anos de vida dedicada ao teatro, tenho transitado e refletido sobre inúmeras linguagens e perspectivas no que tange ao fazer teatral e suas consequências estéticas e transgressoras. Muito tem me inquietado tal arte. Não sou do tipo que com o tempo, se acomoda num estágio de organização metodológica, permitindo um arrefecimento da chama intensa que deve impulsionar a complexidade do artista. A arte deve ser perturbadora e gerar constantes lacunas e rupturas para que possa mobilizar a intensidade humana num fazer total, único capaz de produzir, em minha opinião, uma poderosa arte.
Em teatro, tenho me debruçado sobre o corpo do ator e a sua complexidade, gerando uma inquietação pesquisadora que me impõe ao inacabamento humano como matéria-prima para tentar gerar um caldo ou quem sabe mesmo um chorume profundamente contagiante e transformador. Um corpo que necessita de potencialidade, de vigor e excitabilidade mas, que no entanto, inacabado como é, carece de transcender os limites musculares para alcançar a plenitude criativa. Um corpo sensorial, a flor da pele tem sido a busca constante de diversos pensadores, atores e encenadores do tecido teatral, no entanto, penso que um aspecto sensorial deve gerar respostas abstratas que novamente corporificadas, impulsionem o processo criativo numa transposição que faz do corpo sem órgãos de Artaud, algo possível para além da mera conceituação filosófica e idealizada.
A teoria da transposição é fruto de longa pesquisa que venho desenvolvendo em espaços de formação de atores onde tenho atuado desde os anos noventa do século passado. O ator, mais do que alguém que precisa ter um corpo educado e um intelecto sistematizado em conceitos e linguagens, carece de ter a capacidade de transpor obstáculos que geram a dualidade mente e corpo, que tanto compromete o teatro, principalmente o ocidental. No estudo da construção e pesquisa cênicas, tenho percebido que há um lugar que somente pode ser alcançado quando realizamos transposições, isto é transformações de informações em estéticas pós-corporais e desconstruções para outras estéticas cênicas que novamente atingirão o corpo pelo caminho do entranhamento cognitivo epidérmico.
Um conceito, nuance ou característica presente na pesquisa de determinado personagem ou texto pode gerar "alquimias estéticas" que transcendem o fazer teatral e arrombam a totalidade da arte, gerando outras criações, que, novamente decompostas, geram no corpo do ator o contágio que desencadeia um sentido para o seu corpo previamente educado. Um gesto, pode gerar uma sonoridade, que desencadeia uma criação plástica, que se transforma em massa geradora para uma nova construção física, gerando, agora sim, um gesto decantado e livre!
Tenho provocado atores e atrizes a decantar, pequenas nuances de maneira que a reflexão racional não seja a tônica, desencadeando transposições lúdicas dos mais diversos matizes, que ao final de um percurso "alquímico", possibilitam entendimentos corporais e estéticos que brotam no fazer teatral por caminhos inusitados, porém sólidos.
A presente teoria, não tem a pretensão de levantar a bandeira de uma nova descoberta, ou de ser A DESCOBERTA em matéria de teatro. Não teria essa ambição por me perceber incapaz de tal intento. Ela é apenas o primeiro esboço de uma tentativa ? talvez vã ? de organizar os frutos de um trabalho que venho desenvolvendo a partir de minhas inquietações profundas no campo do fazer teatral. Pensar num corpo sem órgãos e num teatro da peste passa pela libertação desse corpo da pretensão de reter nele toda a possibilidade de conter a plenitude do fazer teatral. Expurgar a criação para fora de si, mesmo sendo ela ainda parte de si, me parece um caminho que permite ao processo criador, se expor ao devido contágio, cuja nascente, por ser cristalina demais, não seria capaz de produzir.

O ator e o corpo transcendente
O ator é o veículo de si mesmo. Sua arte e possibilidades criativas são tiradas de suas entranhas e, a partir delas, ele é capaz de executar o seu ofício. O corpo do ator tem sido objeto de pesquisa desde que essa atividade existe (não falo da Grécia, mas de toda manifestação teatral que vem de múltiplos lugares), gerando leituras que vão desde um corpo educado e reprodutor de gestos e posições universais até a mais pura transgressão direcionada à um corpo sem órgãos (Artaud) visceral e intenso. De intérprete fiel a performer autônomo o ator vem construindo/ reconstruindo o fazer teatral cujas fontes são múltiplas e para o bem dessa arte, conflitantes e contraditórias. Um corpo transgressor é sempre um corpo que desafia suas possibilidades cognitivas e biológicas, percebendo no cadinho perscrutador de suas vísceras um lugar onde ainda se possa tirar novas camadas de comunicação e renovação (não acredito que tudo já foi dito!).
Neste presente artigo, me debruço sobre uma inquietação que me assola ao longo dos anos em minha caminhada em direção a utopia de reconstruir-se sempre na busca de novas camadas de comunicação e transformação. Em minhas profundas inquietações, tenho refletido muito sobre a possibilidade de um processo criador ter a capacidade de transcender sua matriz geradora criando algo novo, fora de si - porém impregnado si - que seja capaz de gerar estranhamento nessa mesma matriz, proporcionando, pelo embate de tal transposição, algo inquietante que gere nesse mesmo corpo novas possibilidades de entendimento e criação. A transposição tem sido um caminho experimental onde tenho percebido respostas que atingem diretamente o corpo do ator de maneira sensorial/epidérmica sem a ingerência racional que a tudo tenta esquematizar e catalogar. O ator lançado da transcendência, percebe sua criação apartar-se de si, porém, por estar impregnada de si, refaz o caminho da criação, no que chamo de refluxo, transformando o corpo criador em corpo atingido pela autonomia de sua própria criação.

Transposição
Acredito que, mais do que ser livre, o processo criador precisa ser transcendente, isto é, ir além da linguagem matriz que o proporcionou. Ele deve se macerado e conduzido para outras formas potência de re-transfomação e transposição. O ator, quando transgride o seu corpo levando a criação para fora de si, sem deixar de estar impregnado de si, resignifica essa criação, potencializando a mesma e gerando múltiplas possibilidades construtivas que não se limitam ao entendimento racional do gesto ou da ação. O entendimento o atinge por outras camadas, por lugares alquímicos que existem em si e para além de si. O seu processo criador é decantado por outras linguagens, por outros caminhos proporcionando uma força contaminadora e poderosa. Tal transposição ocasiona um entendimento sensorial/epidérmico, algo indizível porém, de forte poder comunicador. Transpondo-se, o ator macera-se, regurgita e reconstrói-se numa realização intensa, contagiante e pós-corporal que novamente atinge o corpo, só que agora como peste purificadora.

Estranhamento cognitivo epidérmico
Da transposição e maceração do hiposigno, surge a nuance potência com grande capacidade de refluxo. Tal nuance, atinge intensamente o âmago do ator, gerando um estranhamento cognitivo epidérmico, isto é, algo que chega por contágio, para além da ação reflexiva que costuma nortear o trabalho do ator.

Estética pós-corporal
A estética pós- corporal é a transgressão dos limites do corpo como elemento pleno de construção do ator. Mesmo partindo de si, o processo criador quando passa pela transposição, transcende esse mesmo corpo a partir do estranhamento do mesmo no ato de criar. São estéticas que se transformam em lugar de inquietação/construção/desconstrução. Na transposição surge um hiposigno que precisa ser macerado e decantado na perspectiva de surgir uma nuance potência.
Alquimia estética
A alquimia estética nasce da transposição do processo criador. É a transformação de uma nuance em ouro cênico, forjado no conflito das transposições. Transformando e resignificando linguagens e experiências, o ator liberta-se de conceitos pré-organizados por sua experiência acumulada, transformando essa potência em combustível e não em conceituação sistematizada.

Decantação
Decantar é transformar o sulco criativo em chorume, isto é purificar o processo criativo, pela sua capacidade de contaminar e se desprender do lixo da criação. Na decantação, a nuance é lançada para além do esquema corpo disciplinado para proporcionar um além/inter/corpo que refaz o caminho no cadinho da transposição. Quando um ator, faz e refaz o percurso de um gesto, transforma um gesto em música e tal música em potência que mobiliza as forças corporais para um gesto novo, porém de mesma matriz, ele lança o processo criador para fora de si certo de que será atingido pelo seu refluxo.

Massa geradora
Quando transposto, gesto, ação ou nuance, transforma-se numa massa geradora, algo que está localizado entre o texto, o corpo do ator e a sua encenação. Da massa geradora nascem o signos macerados e livres. Livres porque transpõem o corpo e a ele voltam o atingido como algo novo e contagiante. De um hiposigno forjado, surge o signo decantado com grande poder de contaminação.

Hiposigno
Hiposigno é o signo exacerbado, nascido do primeiro momento da transposição. É quando a transposição gera outra perspectiva estética, no entanto ainda necessitada de uma maceração. É um um esboço sígnico, cuja intensidade determina um princípio de construção e expansão! O Hiposígno é fundamental, por ser o primeiro a lançar-se para além do corpo. Ele desencadeia todo o processo que gerará o refluxo criativo mais à frente.

Nuance potência
A nunce potência é o fluxo necessário ao hiposigno é o que impede de haver solução de continuidade no processo criador. O hiposigno em si, se não macerado no cadinho da transposição estagna o movimento externo pós-corporal, gerano contemplação e não visceralidade. Já a nuance potência propõe conflito ao hiposigno desencadeando o refluxo que é algo fundamental para que todo o processo novamente atinga o corpo do ator.

Refluxo
O refluxo é o resultado final da transposição. Nele, o ator é atingido pelo processo de decantação, gerando uma criação sensorial/epidérmica, que comunica ao corpo por caminhos outros para além da reflexão racional. No refluxo o ator é invadido de forma potente e vigorosa pelo signo decantado, pelo signo potência, proporcionando um entendimento epidérmico que reflete em sua estrutura sensocorporal. No entanto, isso não se resolve nem se torna estanque. A transposição é sempre ininterrupta e precisa de um constante movimento fluxo/refluxo para continuar atuando e produzindo arte.

Transposição e reconstrução do movimento
A transposição também se dá na reconstrução do movimento. O movimento reconstruído milimetricamente proporciona no ator um estranhamento fundamento sobre o seu processo criador. Reconstruir o movimento é resignificá-lo, transformá-lo em algo novo numa perspectiva de refluxo e afetação no sensorial do ator. Reconstruir o movimento é é retransformar o criado; é macerar o hiposigno transformando-o em nuance potência.

Em busca do concreto pós corporal
Todo movimento corporal é concreto, no entanto por estar impregnado de si mesmo, muitas vezes não desencadeia o estranhamento necessário para que o movimento afete a epiderme e a musculatura em si. O movimento geralmente é armazenado e catalogado racionalmente como partitura memorizada para posterior reprodução e execução. É uma execução sem afetação epidérmica e sem o devido estranhamento cognitivo. Quando o movimento corporal é transposto para outras linguagens alquímicas o resultado final é concreto e para além do corpo. Esse resultado concreto e extracorporal, gera no próprio corpo um estranhamento contundente que a ele atinge num refluxo devastador de suas resistências racionais e esquemáticas. Ele é atingido e, como tal, reage com o corpo proporcionando o surgimento do signo decantado, do ouro cênico.

Conclusão
Um ator para além de si mesmo, que vê o processo criativo transcender os limites técnicos e cognitivos de seu corpo para depois atingi-lo num refluxo devastador, intenso e decantado é o princípio que norteia todo este trabalho, bem como, tem norteado minhas inquietações no campo do teatro já há bastante tempo. Enfim, tais reflexões que agora esboço neste artigo são apenas um primeiro escoadouro, pouco acadêmico, no entanto profundamente convicto de ser uma tentativa de clarear minhas reflexões na busca de um teatro que não me permita ficar em paz.

Sidney Guedes
12/04/11