1. 1.   INTRODUÇÃO

Diante do avanço tecnológico e da crescente globalização que o mercado internacional atravessa hodiernamente, tornou-se premente a necessidade de aprimorar as técnicas que entremeiam as avenças internacionais, bem como de fortalecer as garantias de adimplemento de tais contratos.

De fato, afora a álea ordinária inerente a qualquer contrato, avultam inúmeras outras variáveis quando se trata de contratos internacionais, quais sejam: distância entre os contratantes, diferenças de costumes, necessidade de uniformização das normas, complexidade dos transportes, documentação variada, além de eventuais acontecimentos políticos, monetários e naturais que podem frustrar as intenções inicialmente pretendidas pelos contratantes.

Nesse cenário, é imperioso que surjam modalidades contratuais com características próprias do comércio internacional, distintas das utilizadas no comércio interno de diversos países. Ademais, considerando, as peculiaridades e a rápida transformação do comércio entre países, poucos ordenamentos jurídicos internos se prestam a tipificar e regulamentar tais instrumentos, os quais nascem e moldam-se a partir da prática internacional, dos usos e costumes das partes contratantes e da habilidade dos negociadores em entabular avenças que reflitam as circunstâncias comerciais de cada caso concreto.

Tal é o contexto de utilização do crédito documentado (ou crédito documentário, conforme aludem alguns doutrinadores), o qual, mediante a participação de instituições financeiras, incrementa sobremaneira a segurança no que tange ao adimplemento dos contratos internacionais.

  1. 2.   CONCEITO

Nos termos do texto das Normas e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentados, elaborada em congresso da Câmara de Comércio Internacional – CCI – realizado no México, em 1962 (o qual sofreu revisões em 1970 e 1974), “entende-se pela expressão ‘crédito documentário’ qualquer estipulação pela qual um banco (banco emitente), operando o pedido e conformemente às instruções de um cliente (ordenante), é incumbido de pagar a um terceiro (o beneficiário) ou à sua ordem, ou de aceitar ou negociar letras de câmbio sacadas pelo beneficiário, ou de autorizar outro banco a fazer tais pagamentos, ou a pagar, aceitar ou negociar tais saques, contra documentos convencionados e conforme termos e condições estipulados.”

Celso Marcelo de Oliveira, a seu turno, conceitua o instituto como sendo o “contrato financeiro pelo qual a Instituição Financeira emissora em conformidade com as instruções de seu cliente ordenante se compromete a efetuar o pagamento ao beneficiário contra a entrega de documentos representativos dos bens objeto de uma operação comercial internacional.”

Nelson Abrão, por sua vez, pretende resumir referidos conceitos, ao passo que propõe ser possível conceituar “crédito documentário” como “operação pela qual o banco, de acordo com instruções do comprador de uma mercadoria, se compromete a pagar por este ao terceiro vendedor contra a entrega dos documentos, o respectivo preço.”

Dessa forma, o crédito documentado é uma obrigação condicional, de sorte que o pagamento é feito em nome do comprador contra a apresentação de documentos que efetivamente representem as mercadorias e que lhe dão inequívocos direitos sobre elas. Tais documentos devem incluir aqueles para propósitos comerciais, oficiais, de segurança ou de transporte, verbi gratia: fatura comercial; apólice ou certificado de seguro; conhecimento de embarque ou documento de transporte combinado.

De outra parte, o crédito é garantido por uma relação bancária precedente, v.g., conta corrente. Basicamente, o banco se compromete a satisfazer a obrigação do tomador, se este não a cumprir, assegurando ao beneficiário o seu efetivo cumprimento.  A presença do banco é o ponto central no que tange à prática do instituto, o qual se baseia na fidúcia. Entretanto, a confiança na solvabilidade do importador é substituída pela confiança na solvabilidade do banco, conferindo muito mais segurança aos contratos internacionais.

A intervenção do banqueiro numa operação de crédito documentário é caracterizada pela neutralidade absoluta, a qual praticamente elimina os riscos, assegurando solidez necessária à instituição do crédito. Na absoluta maioria dos casos, é firmado, previamente, um contrato de financiamento entre o tomador do crédito e a instituição bancária. Caso o importador esteja impossibilitado de arcar com ônus da compra, ele pode, inclusive, financiá-la. Obviamente, tal financiamento é lastreado por garantias reais ou fidejussórias, a depender das exigências bancárias.

  1. 3.   NATUREZA JURÍDICA E CARACTERÍSTICAS

Ponto nevrálgico na delimitação do presente instituto consiste em afirmar, com precisão, qual a sua natureza jurídica, porquanto não se encontra facilmente, na taxonomia jurídica atual, categoria na qual o instituto se encaixe perfeitamente. No artigo em análise, portanto, descreveremos um esboço das principais opiniões acerca do tema.

Ao longo de seu desenvolvimento, teorias diversas tentaram enquadrar o crédito documentário em institutos jurídicos pré-existentes, a exemplo de mandato/representação, cessão de crédito para com o banco de parte do comprador, empreitada, fiança, contrato a favor de terceiro, antecipação bancária, delegação novatória ativa, delegação novatória passiva, contratos coligados, etc. De fato, sendo referido instrumento criação da praxe comercial entre países, houve dificuldade em associá-lo às ideias tradicionalmente aplicadas ao Direito Privado.

 

Nelson Abrão, com espeque na doutrina italiana, prefere sustentar a tese de que o crédito documentário seria “um negócio plurilateral típico do direito consuetudinário, e, assim, um contrato sui generis, cuja função causal é representada pela troca contextual do preço com os documentos preestabelecidos.”

Em suma, o contrato de crédito documentado se compõe de uma complexidade de relações que o fazem apresentar uma natureza atípica, sui generis. Entretanto, prescinde de grandes formulações jurídicas, pois é fruto da práxis. De fato, o direito bancário, tomando como ponto de partida a realidade prática, mesclou diferentes caracteres contratuais, originando uma nova unidade jurídica. Assim, o crédito documentário se constitui em um contrato apenas: sui generis, autônomo e independente.

Essa afirmação serve de substrato a uma conclusão salutar à própria índole assecuratória da operação de crédito documentário: a de que “os créditos são, por sua natureza, transações distintas das vendas ou outros contratos que lhes possam ter servido de base, e, de modo algum, tais contratos envolvem ou obrigam os bancos, mesmo que alguma referência a tais contratos esteja incluída no crédito.” (art. 3º das Regras e Usos Uniformes relativos a Créditos Documentários). Assim, eventuais vícios na relação jurídica de compra e venda inicial não podem ser invocados como justificativa para o banco não efetuar o pagamento do crédito a que o beneficiário faz jus, simplesmente por não tomar parte em tal relação causal.

De outro giro, impende salientar o contrato de crédito documentário é avençado entre o banco emitente e o tomador do crédito, sendo o beneficiário estranho a tal contrato, de modo que somente receberá as vantagens por eles estipuladas, caso apresente a documentação estipulada na carta de crédito (da qual trataremos com mais vagar em momento oportuno). Conforme nos ensina Arnaldo Rizzardo, “na medida da necessidade prática, poderão surgir ‘enes’ bancos intermediários, quantos bastem para que seja garantido o pagamento ao beneficiário. A função deste banco é de simples intermediação ou de mero mandato, representando o banco que abriu o crédito.” Tal característica encontra-se plasmada no art. 6º do texto das Regras e Usos Uniformes relativos a Créditos Documentários, que reza: “O beneficiário não pode, em hipótese alguma, prevalecer-se das relações contratuais existentes entre os bancos ou entre o tomador do crédito e o banco avisador.”  

  1. 4.   ESCORÇO HISTÓRICO

Conforme já afirmado reiteradas vezes, as origens do crédito documentário são consuetudinárias. Remontam à chamada lex mercatória, a qual protagonizou respeitável expansão na Baixa Idade Média, com o crescente comércio levado a cabo principalmente em Gênova, Veneza, Marselha, Barcelona, Amsterdã e nas cidades da Liga Hanseática. Os mercadores deslocavam-se para as grandes feiras, os grandes mercados e os portos principais, levando, além de suas mercadorias, seus usos e costumes, que foram incorporados às regras das diferentes cidades do comércio oceânico.

Conquanto tenha sofrido relativo abalo por ocasião da ascensão dos Estados Nacionais da Idade Moderna, a comunidade internacional, em virtude das limitações e restrições típicas das legislações nacionais, viu-se obrigada a reconhecer instrumentos e estruturas legais da lex mercatória. A partir de 1920, a Câmara Internacional de Comércio de Paris desempenhou papel importante em sua revitalização.

O crédito documentado, tal como o conhecemos atualmente, surgiu durante a Primeira Guerra Mundial, época em que os Estados Unidos destacaram-se com vultosas exportações aos países europeus, cujas economias enfrentavam a crise do pós-guerra. Os exportadores norte-americanos exigiam garantias dos bancos europeus para assegurar o sucesso de seu comércio internacional. Nesse cenário, por ocasião da Conferência sobre Crédito dos banqueiros de Nova York, 35 bancos adotaram regras comuns, influenciando os banqueiros europeus da época. Em 1933, em uma conferência realizada em Viena, surgiram as Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários, texto revisto e aprovado pela Câmara de Comércio Internacional, em 1951.

Por fim, em nova Conferência da CCI realizada no México, em 1962, foi aprovado o texto das Normas e Costumes Uniformes para os Créditos Documentários, correspondente à brochura nº 222. Tal documento foi revisado nos anos de 1970 e 1974. Sucessivamente, a CCI lançou as brochuras nº 400 (1984), 500 (1993), eUCP 500 (um complemento à brochura nº 500, editado em 2002) e, mais recentemente, a brochura nº 600 (2007), a qual regulamenta o instituto atualmente.

As hipóteses de aplicação da brochura nº 600 estão claramente especificadas no art. 1º de seu texto, o qual versa o seguinte: “os Costumes e Práticas Uniformes relativos a Créditos Documentários, Revisão 2007, Publicação nº 600 da CCI são as regras a serem aplicadas a todo crédito documentário (“crédito”) (inclusive, na medida em que foram aplicáveis, a qualquer Carta de Crédito de Standby) sempre que o texto do instrumento de crédito expressamente indicar que o respectivo crédito está sujeito a essas regras, às quais estarão vinculadas todas as partes envolvidas, exceto modificação ou exclusão expressa constante do referido instrumento”. Caso não haja vinculação expressa subordinando o crédito à UCP 600 da CCI, suas normas podem ser invocadas, ao menos, a título de “usos e costumes”, caso não sejam contrárias a dispositivo expresso de lei. No Brasil, não há regulamentação específica sobre o assunto, embora seja possível reconhecer seus contornos na “venda sobre documentos”, estipulada nos arts. 529 a 532 do novel Código Civil.

 

  1. 5.   PROCEDIMENTO

As operações de crédito documentado contam, basicamente, com a participação de quatro sujeitos intervenientes: o requerente ou tomador, o beneficiário, o banco emitente e o banco avisador. O requerente (applicant) é a pessoa sob cuja solicitação o crédito for emitido; na prática, equivale ao importador.  O beneficiário (beneficiary/seller) é a parte em cujo favor o crédito for emitido; na prática, equivale ao exportador. O banco emitente ou instituidor (issuing bank) é o banco que emite um crédito sob solicitação do requerente. O banco avisador (advising bank) é o banco que avisa o crédito mediante solicitação do banco emitente; na prática, o banco avisador pode se tratar de agência do mesmo banco emitente, situada na praça do beneficiário exportador. Pode haver, além dos sobreditos sujeitos, a interveniência de um banco confirmador (confirming bank), o qual agrega sua confirmação ao instrumento de crédito mediante a solicitação ou a autorização do banco emitente, contraindo obrigação de sua parte de pagar ao beneficiário o valor do crédito.

A operação de crédito documentado encontra-se descrita por Nelson Abrão, com substrato na doutrina de Rodière e Rives-Lange, prelecionando que “quando da conclusão da venda, o vendedor exige e o comprador promete a intervenção de um banco (a convenção entre o comprador e o vendedor). Na execução desta convenção, o comprador dá a ordem a seu banco para abrir um crédito documentado a benefício do vendedor. Conformemente a esta ordem, o banco emite uma carta de crédito comercial (creditamento) a benefício do exportador. Estas operações constituem a abertura do crédito documentado (a abertura do crédito documentado). Na execução do contratado, o exportador organizará os diversos documentos solicitados e os remeterá ao banco. Após a verificação dos documentos, o banco pagará ou aceitará a letra de câmbio sacada pelo exportador contra si (a realização do crédito documentado).” À sequência descrita, cabe acrescentar, ainda, que o banco avisador remete os documentos ao importador, o qual estará apto a retirar a mercadoria e cumprir as exigências alfandegárias, de posse dos referidos documentos.

5.1.        Carta de crédito

A Carta de Crédito é uma operação inerente e concomitante com o crédito documentário. É uma ordem de pagamento internacional, contra a entrega de certos documentos que devem estar nela especificados. Normalmente, é feita por bancos, mas não o é obrigatoriamente.

 No Direito Internacional Privado, não é considerada um contrato, mas apenas uma ordem de pagamento, uma operação concomitante com o crédito documentado; não tem as características e os objetivos de um contrato. É chamada de commercial letter of credit , ou na expressão francesa lettre de crédit . Assemelha-se mais a um título de crédito, por ser uma declaração unilateral de vontade. Não tem, contudo, várias características e os objetivos de um título de crédito, tanto que, se não for paga, não caberá o protesto cambiário. Nosso Código de Processo Civil não a elenca entre os títulos executivos extrajudiciais e nossas leis cambiárias não a regulamentam. Não se pode considerá-la, pois, um título de crédito.

5.2.        Documentos necessários

Os documentos constituem elemento essencial para o contrato, gerando obrigações inarredáveis para os sujeitos envolvidos. Como a obrigação está condicionada à apresentação e entrega de documentos, o tomador ou requerente deve elencar na carta de crédito os documentos necessários que autorizem ao banco avisador o adimplemento do avençado; o beneficiário deve apresentar os documentos exigidos na cártula sob pena de ver seu direito tolhido; o banco deve analisar a conformidade dos documentos apresentados pelo beneficiário e, caso não se coadunem com as instruções do tomador do crédito, recusá-los-á.  Apenas a título exemplificativo, elencamos os seguintes:

  • fatura comercial (comercial invoice) – é a primeira peça entre os documentos relativos às mercadorias. Em geral é estabelecida pelo beneficiário e não obedece a nenhum modelo oficial. Sua função essencial é caracterizar a venda de uma mercadoria indicando o alcance e o valor da operação;
  • guia de exportação - É um documento intransferível, emitido em formulário padronizado, que confere ao exportador o direito de providenciar o embarque da mercadoria vendida ao exterior, obedecidos o preço, prazo e demais condições estabelecidas na guia;
  • conhecimento de embarque marítimo (bill of lading) – é um título de transporte e também um título de crédito, regulamentado na legislação cambiária brasileira. Representa as mercadorias transportadas e ultrapassa assim o âmbito do transporte marítimo propriamente dito. Esta força probante faz do conhecimento um instrumento indispensável, pois só ele pode assegurar a possessão jurídica da mercadoria;
  • contrato de seguro – serve para conferir segurança durante o transporte reforçando o papel exercido pelo conhecimento marítimo”. Enquanto os documentos secundários são todos aqueles solicitados em função da vontade das partes, dos usos comerciais, ou, ainda, em razão de eventuais exigências alfandegárias;
  • certificado de origem (origin certificate) - documento utilizado para caracterizar o lugar de origem da mercadoria, ou seja, quem a fabricou, ou o local onde foi fabricada. Seu principal objetivo é permitir que o tomador do crédito se beneficie de eventuais vantagens alfandegárias.

 

  1. 6.    EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES

 

O contrato de crédito documentário extingue-se com sua liquidação; quando do pagamento contra-documentos ao beneficiário; ou em virtude de seu cancelamento.

BIBLIOGRAFIA:

ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. 1 ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

SAMPSON, Anthony. Os credores do mundo. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 1981.

História do Banco do Brasil no sítio eletrônico da instituição: http://www.bb.com.br;

História do Banco Central do Brasil no sítio eletrônico http://www.bcb.gov.br;

História da Caixa Econômica Federal no sítio eletrônico: http://www.caixa.gov.br