O SURDO E O MERCADO DE TRABALHO: CONQUISTAS E DESAFIOS Rosana Passos Quitério de Carvalho RESUMO Este trabalho é uma reflexão sobre as conquistas e principais dificuldades enfrentadas pelos surdos ao tentar se inserirem no mercado de trabalho. Foram realizadas pesquisas bibliográficas, complementadas pela vivência adquirida ao ministrar aulas de Libras para profissionais de diversas áreas, que convivem com surdos em sua rotina diária, dentro das empresas que trabalham. Dentre as principais dificuldades foi constatada a ausência de preparo desses profissionais para o mercado de trabalho, pois em sua formação acadêmica não encontraram instituições capazes de lhes oferecer oportunidades de crescimento e atualização profissional. Em contrapartida, é preciso reconhecer conquistas importantes da comunidade surda, mas que ainda estão muito aquém do ideal. Palavras-chave: Surdez. Mercado de trabalho. Desenvolvimento profissional. INTRODUÇÃO Há tempos os surdos vem lutando para conquistar seu espaço dentro da sociedade produtiva, com a finalidade de fortalecer sua auto-estima e buscar recursos para se capacitarem para o trabalho. O presente trabalho tem a finalidade de mostrar os desafios e as dificuldades que o surdo enfrenta para fazer parte da sociedade produtiva e do mercado de trabalho. Esses desafios são vividos não somente pelo próprio surdo, mas também pela família que acompanha seus passos e pode ter papel decisivo nos caminhos percorridos. Diante desse quadro, alguns aspectos merecem destaque especial: qual é a importância da escola? Como ela pode ajudar para que o surdo possa desenvolver seu potencial? As empresas estão preparadas para recebê-lo e contribuir para seu crescimento? Se família e escola cumprirem seu papel, teria o surdo mais oportunidades de crescimento profissional? Convivendo constantemente com esse quadro em meu ambiente de trabalho, proponho aqui uma reflexão acerca do assunto, para que possamos conhecer um pouco mais sobre esse cenário, apoiados nas contribuições que a bibliografia poderá nos conceder. 1 ? Surdez: deficiência ou diferença Grandes tem sido os desafios encontrados pelos surdos para se sentirem parte da nossa sociedade, sendo a comunicação o foco dessa discussão. Desde os primórdios dos tempos, a tendência é considerarmos anormal qualquer outro tipo de comunicação que fuja dos padrões habituais, realidade esta, cruel com todas as diferenças. Pode-se tentar imaginar o quanto é difícil para uma criança que tenta se comunicar com a mãe, deparar-se com a triste realidade de não compreender e não ser compreendido. E mais adiante, em uma fase mais avançada da infância, não conseguir se relacionar de modo satisfatório com as outras pessoas de sua idade, sentindo-se excluído e relacionando sua diferença à incapacidade. A vida do surdo é cheia de momentos como esses, desde a infância até a fase adulta. Infelizmente, até hoje muitas pessoas veem a surdez como doença, e classificam o surdo como incapaz. A família é parte fundamental neste cenário, pois cabe a ela participar de suas conquistas, incentivando e abrindo as portas do mundo para que ele tenha acesso à escola e oferecendo condições para que se desenvolva como qualquer outra criança. Segundo Kojima e Segala (2008), o surdo não tem distúrbio intelectual e sim, atraso no desenvolvimento cognitivo, devido à grande barreira da comunicação. A surdez, embora afete o principal meio de comunicação entre as pessoas, não impede que o surdo possa se comunicar por outro canal, sendo a língua de sinais de extrema importância para que isso aconteça, devendo ser ensinada à criança desde o início de sua vida. Aliás, o quanto antes isso acontecer, será fator determinante para o seu desenvolvimento e construção de sua identidade surda. É previsível que a família hesite ao ter conhecimento da surdez da criança, mas isso não deve ultrapassar o limite de um breve "choque". A partir daí, o trabalho conjunto, o apoio dos pais, a aceitação e a compreensão, são muito importantes para que ela conquiste seu espaço, sua cidadania e sua história, convicta de suas potencialidades e desafios. Compreender que a surdez deve ser vista como diferença e não como doença, é fundamental para o desenvolvimento cognitivo e social dessa criança. "A dificuldade de lidar com outro tipo de linguagem que não seja a oral, faz que os interlocutores do surdo ? inclusive os pais ? se vejam diante de uma situação conflituosa, da qual preferem se afastar." (Santana, 2007) Além de enfrentar a aceitação e adaptação na própria família, caberá ao surdo um novo e importante desafio: preparar-se para ocupar seu lugar na sociedade, como pessoa produtiva, com direitos, deveres e possibilidade de ascensão profissional. Aqui já podemos fazer alguns questionamentos: como preparar-se para o mercado de trabalho, se as escolas de educação básica e nível superior não oferecerem a ele uma proposta pedagógica adequada a sua diferença? Como fazer para que ele assimile a Língua Portuguesa como segunda língua, se muitas vezes ele não tem a Libras (Língua Brasileira de Sinais) como sua língua materna e natural? Em um primeiro momento, podemos olhar esta situação e visualizar as dificuldades encontradas pelo surdo para se inserir no mundo do trabalho, que proporcionará sua independência financeira e elevação da auto-estima. Porém, aprofundando esse olhar, constatamos que isso é apenas o extremo desse quadro, já que o surdo para chegar a ter essa colocação e ser produtivo, precisa de preparação profissional, proporcionada por instituições escolares que não estão preparadas para tal. E ainda que todos esses desafios já tenham sido superados, o que esse profissional encontrará dentro de uma empresa para que possa desempenhar bem seu trabalho? Como será a comunicação dele com seus parceiros? O reconhecimento da Libras como "meio legal de comunicação e expressão" através de lei nº 10436, em 2002, foi uma grande conquista da comunidade surda, favorecendo a integração social e reconhecimento a Libras como um sistema lingüístico, de natureza visual-motora e com estrutura gramatical própria. Porém, mesmo sendo reconhecida como língua e devendo ser utilizada e difundida visando o atendimento do surdo, não podemos dizer que ela esteja cumprindo seu papel, pois ainda há muita carência de profissionais, tanto em instituições públicas, quanto privadas, que tenham conhecimentos, ainda que básicos, da Libras. Essa escolha e a necessidade de colocar a criança precocemente dentro de um contexto comunicativo rico e estimulante são justificadas nos primeiros anos de vida pelos psicólogos do desenvolvimento. Para eles, é necessário fornecer à criança surda um meio de comunicação eficaz para que seu desenvolvimento seja o mais próximo possível ao da criança ouvinte, mesmo que ela execute outra modalidade comunicativa. (MASIERO, 2009) Portanto, conceder a Libras o conceito de língua não representa apenas uma questão lingüística, mas principalmente social, pois ela legitima o surdo como "sujeito de linguagem". 2. O surdo e a escola A importância de uma escola eficiente é primordial para o desenvolvimento e para o sucesso do surdo no mercado de trabalho. Para termos uma idéia do que isso representa, basta relacionarmos essa situação à vida de um ouvinte: se há uma boa formação e preparo, teremos êxito na vida profissional. Se a concorrência é árdua para os ouvintes que tem a oportunidade de se preparar, o que podemos dizer dos surdos que muitas vezes ainda tem problemas de alfabetização, dificuldades de interpretação e escrita. Na maioria das escolas, a escrita é vista como uma forma de registrar sons de letras e não com a complexidade que merece. Nesta percepção, a preocupação do professor está em converter unidades sonoras em unidades gráficas e, nesse sentido, a discriminação perceptiva é colocada em primeiro plano, conforme Pereira (2006). A capacitação do surdo para o trabalho começa a partir do momento que ele inicia sua relação com a sociedade, captando informações diversas, participando de decisões, emitindo opiniões, influenciando e sendo influenciado. Dessa forma, a escola tem papel fundamental nesse processo, porque será a grande estimuladora desse aluno. Vejamos o que diz Palhares : Na escola é importante que lhes sejam oferecidos programas sócio-educativos que contemplem atividades de lazer, esporte, expressão artística, educação ambiental e para a saúde, iniciação ao mundo do trabalho. Com estes programas se procura desenvolver valores e atitudes que promovam a sociabilidade, a criatividade, o potencial cognitivo, estimulando a vontade de aprender e buscando o desenvolvimento da autonomia e da cidadania, pressupostos estes para a formação de um trabalho qualificado.(www.ines.gov.br) Nunca é demais lembrar que as crianças surdas, filhas de pais ouvintes, quando chegam à escola não dispõem, na maior parte das vezes, de uma língua, uma vez que as famílias usam o português oral, do qual, na melhor das hipóteses, elas tem acesso a alguns fragmentos. Com isto, voltamos ao nosso ponto de partida, que tem a comunicação como foco de toda dificuldade de relação social do surdo, conforme citamos no início deste texto. Durante décadas, o surdo foi visto como deficiente e como pessoa com distúrbio intelectual. Hoje sabemos que isto não é verdade. Na Idade Média, a Igreja Católica teve papel fundamental na discriminação das pessoas com deficiência, pois elas diferiam da chamada "imagem e semelhança de Deus", deixando à margem da sociedade os que estavam fora desse padrão. Como a Igreja tinha grande influência na vida da sociedade da época, foi somente a partir do final desse período que passamos a ter mais informações com relação à educação e à vida do Surdo. Até 1750, a maioria dos surdos que nasciam não era alfabetizada ou instruída. Durante o período do Oralismo (1880 ? 1970), a surdez era vista como doença e a fala era considerada superior aos Sinais. As punições eram severas para quem insistia em utilizar sinais, mímicas ou gestos, e as escolas impunham castigos físicos nessas circunstâncias. Os surdos que não se adaptavam ao Oralismo eram considerados retardados. Atualmente, as escolas tanto da rede pública quanto privada, baseiam-se no ato de inserir os surdos nas classes regulares, para terem uma educação semelhante à dos ouvintes e oferecerem igualdade de oportunidades. Infelizmente, essas mesmas escolas não estão preparadas para tratar esses alunos com igualdade, até porque eles não são iguais aos ouvintes, pois possuem necessidades diferentes. Se as escolas não oferecem condições para o desenvolvimento cognitivo da criança, certamente seu futuro dentro da sociedade estará comprometido. São pouquíssimas as instituições escolares que possuem professores com conhecimentos na língua de sinais ou intérpretes em sala de aula, o que compromete muito o papel que a escola tem com a formação e a preparação do surdo para o mundo do trabalho. Outro aspecto a ser aqui citado, é a escassez de pessoas capacitadas a atuar como intérprete dentro das escolas. No Brasil, poucos tem formação específica para serem intérpretes, mesmo com o crescimento do número de cursos oferecidos, já que eles se concentram nos grandes centros, atingindo um número restrito de pessoas. No interior esse quadro é ainda mais crítico, já que esse tipo de atividade exige dedicação, estudo contínuo e grande disponibilidade de tempo. Não podemos deixar novamente de registrar a importância da língua escrita como segunda língua para os surdos, dentro de uma sociedade letrada. Sem ela, o surdo fica novamente à margem do que acontece no mundo que o envolve, e, novamente restrito em seu desenvolvimento e conseqüente preparo para o trabalho. Neste contexto, a língua de sinais e a segunda língua escrita irão se inter-relacionar, proporcionando a verdadeira inclusão da qual o surdo tanto precisa, mas preservando a sua cultura e o direito à uma língua materna. Botelho (1998) e Lacerda (2000), entre outros autores, alertam para o fato de que o aluno surdo, freqüentemente, não compartilha uma língua com seus colegas e professores, estando em desigualdade lingüística em sala de aula, sem garantia de acesso aos conhecimentos trabalhados, aspectos estes, em geral, não problematizados ou contemplados pelas práticas inclusivas. Ainda segundo Lacerda, a educação bilíngüe busca contemplar o direito lingüístico da pessoa surda de ter acesso aos conhecimentos sociais e culturais em uma língua na qual tenha domínio. 3. O surdo no mercado de trabalho Numa sociedade capitalista, o indivíduo deve produzir e consumir para ser visto como cidadão. Dessa forma, o trabalho tem papel fundamental como elemento significativo de auto-realização e auto-estima. O trabalho é, e assim deve ser visto, uma fonte de satisfação na vida, além de, é claro, uma forma de proporcionar recursos materiais para sobrevivência. Muitas empresas só admitem surdos em seu quadro de funcionários para cumprir a lei (Lei de Cotas para contratação de Deficientes nº 8.213 de 25 de julho de 1991), sem qualquer preparo ou preocupação com a recepção e atendimento a esses trabalhadores. A colocação dos surdos no mercado de trabalho é a grande preocupação das instituições a eles ligadas atualmente. Não basta empregar o surdo, mas também dar condições para que ele dê o melhor de si no desempenho de suas funções. A comunicação volta a ser aqui o centro da nossa preocupação. Ter funcionários com conhecimentos de Libras é de extrema importância para que o surdo se sinta acolhido e possa interagir com a equipe de trabalho. O departamento de recursos humanos precisa ser atuante, atento e parceiro nessa situação. Na grande maioria das empresas não há sequer um funcionário com conhecimento na língua de sinais. Instruções e regras não são compreendidas. O preconceito está quase sempre presente, enxergando o surdo como limitado e incapaz. Quando conseguem um emprego, sentem dificuldades para construir relações interpessoais e compreender a própria dinâmica do espaço laboral. Além disso, o fato de os cargos ocupados pelos surdos serem sempre ligados à mão de obra operária, reforça a tese que eles são intelectualmente menos capazes que os ouvintes. Sabemos que grande parte disso deve-se ao fato de que há falta de qualificação e acesso aos níveis de estudo mais elevados, mas isso não é levado em consideração em um primeiro momento. Somente quando analisamos esse quadro da maneira como o fazemos aqui, temos a noção da dimensão e das conseqüências desses fatores. Assim, os surdos continuam solitários, executando funções simples e mesmo os surdos que conseguiram se qualificar melhor, ainda possuem salários inferiores aos dos ouvintes que desempenham as mesmas funções. Vejamos a contribuição de Danesi: Quando examinamos o sentido de pertencer, sentimos claramente que este fator não tem o mesmo peso para os surdos, do que para os empregados em geral. Ficou evidente que eles, mesmo quando adaptados, não chegam a se identificar com o grupo de trabalho. São atenciosos, solidários, mas não aprofundam os laços de amizade com os colegas de trabalho. A cumplicidade, elemento aglutinatório entre os trabalhadores, só se efetiva entre o grupo de surdos e o sentimento de pertencer só acontece em relação à comunidade surda. (www.psiconet.com) As empresas também podem ter muito a ganhar com a contratação de surdos em seu quadro de funcionários. De um modo geral, as estatísticas são muito favoráveis quando se tem empenho e preocupação com a inclusão dos surdos no ambiente de trabalho. CONCLUSÃO Diante dos fatos analisados, podemos afirmar que preconceito e falta de informação não devem ser fatores impeditivos para se contratar surdos nas empresas. Eles só precisam de oportunidades e capacitação para mostrar do que são capazes. A escolha da profissão deve ser feita da mesma forma que os ouvintes o fazem, dependendo de interesses, habilidades e competências. O importante é que a escola ofereça ações que compartilhem com esse mesmo objetivo, preparando o surdo para atuar de maneira competitiva no mercado de trabalho, com as mesmas chances que tem os ouvintes. A família deve oferecer apoio e incentivo desde a infância do surdo, proporcionando o contato com a Libras desde os primeiros anos de vida, evitando assim que se desenvolva o quadro de déficit cognitivo vivido atualmente por tantos surdos. A comunicação não pode ser o grande entrave do desenvolvimento cognitivo da criança, porque somente se isso for superado, principalmente com o contato com a língua materna dos surdos, teremos cidadãos conscientes, ativos e atuantes no mercado de trabalho e na sociedade. REFERÊNCIAS AMARAL, Lígia Assumpção (1994). 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