O discurso sobre a obra não é um simples adjuvante, destinado a favorecer-lhe a apreensão e a percepção, mas um momento da produção da obra, de seu sentido e de seu valor.(Pierre Bourdieu)

Lavoura arcaica rouba-nos a cada página. Somos arrebatados por uma força estranha que, por vezes, nem mesmo a identificamos, apenas sentimos, por isso inefável, embora seja construída com palavras. Trata-sede um tecer textual capaz de "arrancar a alma do corpo" (LONGINO, 2002, p.83), não por meio da persuasão, como nos ensina Longino, mas por lances geniais que provocam a grandeza do texto.

Traçando um percurso para estudar a estética de Lavoura arcaica, é inevitável passarmos pela questão poética, ideológica e mítica. Isso ocorre porque o autor opera os elementos de linguagem e os elementos ideológicos simultaneamente, para ressaltar os valores estéticos do romance.

No início da narrativa, dois irmãos se encontram num quarto de pensão; o mais velho vem buscar o mais novo, para levá-lo de volta ao lar. Através das lembranças do filho pródigo, André, conhecemos as causas da partida: a impaciência chega a um grau insuportável no ambiente familiar, entre o jugo e a lei paterna e o sufocamento da ternura materna. Porém, no retorno do filho André para casa, houve uma relação incestuosa com uma das irmãs, Ana. Ao tomar conhecimento do fato, o pai mata Ana, o que provoca a revolta dos irmãos que, por sua vez, assassinam o pai.

Ao mesmo tempo, a narrativa introduz o universo primitivo, arcaico, mítico que, através do próprio título do romance, sugere o trabalho (labor/ lavoura) como algo que é primievo, primeiro.

Lavoura arcaica é um romance cuja especificidade escritural oscila entre a prosa e a poesia. Essa hibridização[1][2] de gêneros possibilitou a Octávio de Faria (1976)considerar o romance como "prosa poética", ou "romance lírico". É o que afirma também Leyla Perrone-Moisés (1996, p. 66-67) ao comentar que alguns trechos ou capítulos do romance são "verdadeiros poemas em prosa", pois "Lavoura arcaica é um texto musical, composto como uma sinfonia, cada capítulo correspondendo a um movimento".

Nossa intenção, neste capítulo que esboça uma visão crítica, é analisar a questão da estética literária presente em Lavoura arcaica. No entanto, antes de investigarmos o "lavourar" poético do romance nassariano, faz-se necessária uma abordagem sobre o que entendemos por estética.

Com efeito, a tentativa de definição do termo "estética" há de ser sempre um desafio, uma abertura de sentido múltiplo e difuso no âmbito das artes. Os preceitos que compreendem a natureza e a tarefa da estética são de caráter filosófico e se diferenciam dos conceitos de poética e de crítica de arte.

O crítico Luigi Pareyson afirma que para explicar o significado de "estética" não se poderá fazer grandes avanços partindo da etimologia do termo, adotado no século XVIII, pela influência do romantismo alemão que evidencia a relação entre o belo e o sentimento. O conceito de estética desde então foi construído, tendo como ponto de reflexão o surgimento da arte moderna,segundo a qual o belo, no sentido clássico, não era mais objeto da arte. Essa reflexão aponta a idéiade que a beleza não estaria no objeto, mas no resultado da arte. Esse processo levou-nos a entender hoje o termo estética como toda a teoria que se refira ao belo, num sentido amplo,onde quer que ele se expresse, seja no mundo sensível ou inteligível. Nesse sentido, Pareyson (2001, p. 2- 3) comenta, com relação à variedade de acepção do conceito de estética:

Em meio a tal multiplicidade e, por vezes, confusão de significados, convirá procurar uma definição mais delimitada e precisa [...]. Há quem sustente que a estética é filosófica, ou no sentido de que procura definir o que é ou deve ser a arte, ou no sentido de que o "estético" se encarrega de deduzir, de princípios filosóficos pressupostos, as suas conseqüências no estético, ou nosentido de que, sendo a filosofia pura especulação, não é necessário que o estético apele para aexperiência direta do crítico ou do artista. Pelo contrário, há quem sustente que a estética não é filosófica, ou porque ela é, antes, alguma coisa intermediária entre a filosofia e a história da arte, ou porque ela não se encarrega de dar uma definição geral da arte.

No âmbito dessa discussão sobre o que é estética, é que Pareyson procura conceituá-la, ao mostrar que a filosofia não traz normas, mas sim especulações que emergem da experiência estética. Ou seja, o autor faz uma reflexão sobre os problemas da beleza e da arte, reflexão essa que se constrói sobre a experiência estética. Nesse sentido, a estética não terá normas. Ela se servirá da poética e da crítica para que estas direcionem normas e regras à arte.

Vale dizer que o crítico apresenta a tese de que "a estética é e não pode deixar de ser filosofia" (PAREYSON, p.4), por manter sua autonomia de reflexão sobre a experiência estética.

É por isso que a natureza da estética é ampla, na medida em que não é normativa,como o faz a poética, e não agrega diferentes preceitos a fim de julgar o que é arte, papel da teoria da arte e da crítica. Portanto, a estética abre a discussão sobrea relação do leitor com aobra, para alcançar por meio da experiência estética conclusões teóricas universais.

Entendemos a partir do estudo de Pareyson, que a estética não quer ser normativa, enão é. Ela especula sobre a experiência concreta da arte, e precisa da poética para normativizar e explicitar as leis e regras de determinada arte.

Retomando a discussão sobre a narrativa nassariana, observamos que esteticamente Lavoura arcaica não é uma obra tradicional, no sentido de ser um gênero puro. Trata-se de um romance que, sem deixar de ser prosa, é poético e trágico ao mesmo tempo. O início da narrativa é talvez o melhor ponto de partida para falar da poesia:

Os olhos no teto,

a nudez dentro do quarto;

róseo, azul ou violáceo,

o quarto é inviolável,

o quarto é individual,

é um mundo,

quarto catedral,

onde nos intervalos da angústia se colhe,

de um áspero caule,

na palma da mão,

a rosa branca do desespero,

pois entre os objetos que o quarto consagra

estão primeiro os objetos do corpo...(NASSAR, p. 07)

Indubitavelmente, a disposição de um fragmento do romance exposto em forma de versos auxilia a observação da sonoridade (aliteração, assonância, paranomásia), do ritmo e da repetição, mas essa estrutura não é o que nos faz reconhecer a obra como poética. O que compõe o elemento poético na obra de Raduan Nassar é a recusa de todo e qualquer modelo e a junção de diferentes elementos sociais e artísticos, como a questão do patriarcado, da família, do mito, da paródia, do sagrado/ profano, do visceral, entre outros elementos que originam o lirismo da escritura nassariana.

Nesse sentido, retomamos Erza Pound na obra Abc da literatura (2001, p. 32) quando afirma que "grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível". Tal afirmação remete à condensação da palavra, ou seja, a idéia de que as imagens criadas em um texto poético apresentam inúmeras vertentes de significados implícitos,fazendo do texto uma espaço saturado e carregado de sentidos.

Por essa via, a função estética de Lavoura arcaica é ser prosa e ser poesia ao mesmo tempo. Cada palavra está carregada de sentido, além de apontar para uma multiplicidade de sentidos possíveis,que possibilitem umamultiplicidade das leituras do romance.

Aspecto de relevância do romance é a possibilidade de identificar a condensação do textopoético através do próprio signo lingüístico. Décio Pignatari (2005, p. 13), poeta, escritor e ensaísta, afirma que:

Dois são os processos de associação ou organização das coisas: por contigüidade (proximidade) e por similaridade (semelhança). Esses dois processos formam dois eixos: um é o eixo da seleção (por similaridade), chamado paradigma; outro é o eixo de combinação (por contigüidade), chamado sintagma ou eixo sintagmático.

Observamos que o sintagma, signo da poesia, não está preocupado em conceituar, mas sim "desenhar idéias", criar e materializar o poético, buscando o sentido dentro do próprio texto, ligado ao eixo seleção/ similaridade. Já o paradigma está relacionado à função referencial, ao sentido denotativo dos termos lingüísticos.

Segundo Pignatari,para compreender o sentido de um texto poético faz-se necessário analisá-lo por meio do pensamento analógico, que sistematiza o conjunto das palavras, operando com o sintagma/ paradigma sem separar idéias. Para maior compreensão, observe-se este fragmento:

[...] a pele fresca do seu rosto cheirandoa alfazema, a boca um doce gomo, cheia de meiguice, mistério e veneno nos olhos de tâmara, e os meus olhares não se continham [...] com os pés brancos e limpos ia afastando as folhas secas e alcançando abaixo delas a camada de espesso húmus (NASSAR, p. 30).

Condensar para Pignatari é "correlacionar" (relacionar palavras diferentes que comungam a mesma essência de significado, obtendo como resultado uma fusão imagem/ significação). Na correlação, desde o princípio, a parte tem o todo e o todo tem a parte, nada fica estático, pois os elementos poéticos apresentam intenção e finalidade entre si. Observe-se a correlação por analogia do fragmento de Lavoura arcaica:

Relação materialRelação imaterial

(01) "boca umdoce gomo"=sensualidade/erotismo
(02) "olhos de tâmara" = olhos pequenos/ ressaca
(03) "os pés brancos e limpos = a volta do homem a sua
alcançandoa camada deorigem, ao pó, ao barro

(mito do eterno retorno)

No gráfico, onde se observa arelação material, existe uma sugestão para a relação imaterial, à medida que é atribuído um conceito abstrato elaborado nas teias invisíveis da poesia. No entanto, quanto mais próximo o eixoparadigmático estiver do eixo sintagmático, maiorserá a condensação do texto poético. É o que afirma Pignatari (2005, p. 17):

DescobriuJakobson que a linguagem apresenta e exerce a função poética, quando o eixo de similaridade se projetasobre o eixo de contigüidade. Quando o paradigma se projeta sobre o sintagma.

Neste sentido, quanto mais próximo o sintagma estiver do paradigma, maior será a densidade poética, e maior a força lírica. Parece-nos salutar mencionar a sutileza existente entre os termos lírica e lirismo, porque, embora guardem alguma relação de significação, comportam também muitas diferenças.

No caso da lírica, de acordo com o verbete de dicionário (FERREIRA, 2000, p. 429), diz respeito à poesia lírica, isto é, composição de poemas líricos. O vocabulário lírico diz "do gênero de poesias em que se cantam emoções e sentimentos íntimos". Para Anazildo Vasconcelos da Silva (1975, p.14), o lírico também implica a noção de gênero, sob um conjunto sistemático de obras literárias que podem ser reconhecidas pelo mesmo processo estruturador.

E quanto ao vocabulário lirismo? Qual a relação dele com os demais? Essa distinção leva-nos ao cerne de nossa discussão teórica, haja vista que estamos tratando de um romance e não da análise de poemas. Cabe afirmar que, se estamos trabalhando um romance, o termo mais adequado é lirismo, porque "pode haver lirismo num romance, mas a poesia lírica só existe numa forma lírica" (COUTINHO, 1978, p.61).

A hipótese que apresentamos da poética como questão de estética em Lavoura arcaica é que a relação dolirismo com as artes em geral está, a nosso ver, não na forma na qual se apresenta: poema, soneto, poesia, etc., mas no conteúdo que subjaz à forma criativa pela postura mental ante o mundo, a realidade das coisas, de uma certa experiência poética.

É o que observamos em Lavoura arcaica, pois o caráter poético e lírico também abre um diálogo coma ideologia patriarcal na tentativa de romper com a postura do "homem antigo", representado no romance pelapersonagem pai, para esboçar poeticamente a figura do homem moderno e fragmentado, materializado na personagemAndré.

De fato, o sujeito lírico em Lavoura arcaica é o próprio texto. Pela escolha composicional de Raduan Nassar, é possível identificar a poesia comovalor estético da narrativa. Observamos o romance não como um armazém de emoções individuais, mas como uma reflexão sobre a construção de um grupo familiar, por meio da voz de André, que se levanta de forma lírica e ao mesmo tempo social. Como demonstra este fragmento:

Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho (NASSAR,p.11).

O lirismo está vinculado aos seus sentimentos, às suas emoções que lhe vêm à lembrança entrelaçando e construindo a trama da narrativa. Se o que André busca é o retornoaos laços míticos da família, rompidos pela estrutura patriarcal imposta pela personagem pai, o lirismo de certa forma colabora com essa busca e ao mesmo tempo já realiza o seu objetivo.

Sendo polissêmica, essa multiplicidade de sentidos da linguagem poética faz de André o homem da sociedade fragmentada que, em meio à crise de sua identidade, por não se reconhecer inteiro, assume um discurso de igual modo estilhaçado, como se cada fragmento poético pudesse retomar a unidade perdida. Veja-se este excerto:

[...] quanta sonolência, quanto torpor, quanto pesadelo nessa adolescência! (...)que lousa branca, que pó anêmico, que campo calado, que copos-de-leite, que ciprestes mais altos, que lamentos mais longos, que elegias mais múltiplas plangendo meu corpo adolescente! (NASSAR, p. 70).

Nesse sentido, a fragmentação do "eu" é reflexo da própria "consciência da personagem", algo descontínuo, incoerente elivre emerge da construção de sua subjetividade, pois, através da linguagem, o"eu" ficcional experimenta a consciência de si mesmo, ou seja,alguma coisa que escapa do empírico e que resulta em estranhamento, em confronto com o cotidiano, atingindo-se o eu e sua transcendência.

É no discurso poético que André ganha a especificidade lírica, por buscar entender-se no espaço externo da família e também não se encontra. André realiza um percurso inverso: é na linguagem –espaço lírico – que tenta estruturar essa realidade familiar por intermédio da escuta da natureza que ele adentra, pela sua sensibilidade exacerbada, no âmago da sua natureza carente e solitária, acolhido pela mãe natureza.A linguagem poética está imbuída de grande carga de significado, uma vez que na poesia o sentido e as idéias sempre estão numa correlação entre as palavras e os movimentos rítmicos, como aponta o excerto seguinte:

[...] a natureza logo fazendo de mim seu filho, abrindo seus gordos braços, me borrifando com o frescor do seu sereno, me enrolando num lençol de relva, me tomando feito menino no seu regaço (NASSAR, p. 112).

Neste fragmento do romance, observamos que André por não manter uma relação próxima com a família, por ser impossível sua comunhão com ela, procura realizar tal comunhão num outro plano: o da poética, na descrição lírica da sua comunhão com a natureza, expressar-se e entender-se no seu lirismo. A natureza é vista por André como mãe e acolhedora. No entanto, há momentos de hiatos, no qual a natureza é tida como maligna e perversa, como demonstra o fragmento a seguir:

Pondo folhas em desassossego, centenas de feiticeiros desceram em caravanas do alto dos galhos, viajando como o vento, chocalhando amuletos nas crinas, urdindo planos escusos com urtigas auditivas, ostentando um arsenal de espinhos venenosos em conluio aberto com a natureza tida por maligna (NASSAR, p. 90).

No que tange à questão do lirismo, destacamos a sua concepção no texto Palestra sobre lírica de sociedade, de Theodor Adorno (2003, p.66), que aponta para uma concepção de lirismo diversa da sustentada pelo Romantismo. Desde a abertura, alerta que sua explanação pode causar um desconforto em muitos, justamente por acrescentar a noção de uma lírica que se reconhece no elemento social e provoca: "Quem seria capaz de falar de lírica e sociedade, perguntarão, senão alguém totalmente desamparado pelas musas?".

Adorno sabia do risco e peso de tal afirmação, mas conduziu a discussão com argumentos profícuos para o seu objetivo, fato que nos faz investir em suas idéias, a ponto de transpô-las para nosso estudo como pilares de sustentação do nosso posicionamento crítico, em face do conceito de lirismo. Veja-se a afirmação de Adorno (2003, p. 66):

Pois o teor [Gehalt] de um poema não é a mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando, justamente em virtude da especificação que adquirem ao ganhar forma estética, conquistam sua participação no universal. (...) o mergulho no individuado eleva o poema lírico ao universal por tornar manifesto algo de não distorcido, de não captado, de ainda não subsumido, anunciando desse modo, por antecipação, algo de um estado em que nenhum universal ruim, ou seja, no fundo algo particular, acorrente o outro, o universal humano. A composição lírica tem esperança de extrair, da mais irrestrita individuação, o universal.

O caráter universal de que fala Adorno deve ser entendido enquanto porta-voz da sociedade, pois coloca o indivíduo numa relação de troca. Esse desamparo, essa solidão de André anseando por ser compreendido pelo outro, no caso, o grupo familiar é a expressão daquele que se apresenta como paradigma da vontade universal do ser humano, da vontade de todos, mas a sua atitude é vaga.

É interessante perceber que o conceito de lírica se transformou ao longo dos períodos históricos da literatura, sendo gerado num ambiente musical, passando por um período de isolamento e sentimentalismo, chegando, na atualidade, em meio a formas obscuras e estranhas.

A lírica de que fala Adorno é a da ruptura.O modelo clássico do período aristotélico[2] e romântico[3] não podem mais responder a ela, pois se tornam obsoletos, ante o metamorfosear do conceito. Apresenta-se o lirismo moderno, com um novo enfoque para a questão lírica. Ao contrário do poeta romântico, que floresceu em plena ascensão burguesa, centrada nas questões de um eu subjetivo, "o poeta moderno sabe perfeitamente que qualquer recorte do mundo será apenas linguagem" (CARA, 1989, p.40). Não objetiva mais o longo mergulho na paisagem interior, mas agora se vê refletido no mundo exterior, é consciente de que não conseguirá abarcá-lo, senão numa tradução parcial, numa sociedade que se complexificou enormemente, mas cuja base, a família, ainda tem, como hegemônica a famíliapatriarcal. A família, célula mater de preservação da propriedade privada.

Como afirmamos, o elemento pertinente à construção do lirismo narrativo é a fragmentação. Além de associar-se ao trabalho poético no romance, também se coloca ao lado do trágico. O romance, como gênero literário, já traz em si o caráter fragmentário, por se tratar de um híbrido, que abarca vários elementos distintos, como afirma S. Cheivirev (apud EIKHENBAUM, 1976, p. 160):

Em nosso parecer o romance é fruto de uma mistura nova e contemporânea de todos os gêneros poéticos. Admite igualmente os elementos épicos, dramáticos e líricos. O elemento dominante dá o caráter do romance...

O intenso trabalho estético de Raduan Nassar com as palavras a fim de descobrir seus limites revela os caracteres desse lirismo: agressivo, dramático, dissonante, tenso, que instiga o leitor a penetrar no "lavourar" poético à procura do plurissignificativo. Como demonstra este fragmento:

[...] que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?Que culpa temos nós se fomos duramente atingidos pelo vírus fatal dos afagos desmedidos? que culpa temos nós se tantas folhas tenras escondiam a haste mórbida desta rama? (NASSAR, p. 129).

Em Lavoura arcaica, os fatos aproximam-se, relacionam-se, entrecruzam-se, tornando possível o lírico tão próximo da ideologia patriarcal, o sagrado tão perto do profano e várias outras ressonâncias. Encontramos imagens belas vinculadas ao escárnio, impregnadas do profano, da dor do terrível, do inevitável. Tais imagens são construídas para chocar o olhar, desorientá-lo. O discurso de André, que quer discutir o profano coberto com manto de sagrado produm um efeito intencional de estranhamento. Inferimos que, na narrativa, o choque dos contrários funciona como uma pseudo-voz que entra em tensão com a voz dominante (patriarcal). Como um grito desesperado que ecoa ou reverbera outros gritos, porque, de acordo com Bosi (2003, p. 84):

[...] a palavra lírica soa como uma mensagem estranha porque ela se subtrai a esse império de ideologia, nos remete a certos traços humanos, universais, a certos sentimentos comuns à humanidade, como aangústia em face da morte, a indignação em face de opressão – enfim, a palavra lírica está em tensão com a ideologia dominante, e isto é um papel evidentemente dialético

No romance a cena do pai assassinando Ana recebe um tratamento poético e ao mesmo tempo mantém a tensão ideológica sagrado/ profano, como demonstra o fragmento seguinte:

[...]e a partir daí todas as rédeas cederam, desencadeando-se o raio numa velocidade fatal: o alfanje estava ao alcance de sua mão, e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental ( que vermelho mais pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe nos meus olhos!) (...) mas era o próprio patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina (pobre pai!) (NASSAR, p. 190-191).

O golpe a que Ana é submetida pela ira do pai apresenta-se como elemento profano, na medida em que a figura do pai e do filho representa o sagrado na religião judaico-cristão e também são elementos fundadores da família patriarcal. No caso do romance, a cena funciona como um apelo social, como denúncia do poder patriarcal abusivo e repressor. Mesmo frente à morte criminosa e hedionda, o trecho apresenta talhes de beleza que contrastam com o grotesco e horror da cena, causada pelo assassinato que representa o desespero para manter o poder, a subverssão das energias reprimidas do pai em face a pulsão da vida, dada pela exuberância do erotismo, da sensualidade de Ana.

Ao refletirmos ainda sobre a cena do assassinato de Ana pelo próprio pai, não podemos deixar de mencionar a tragicidade que se apresenta como elemento estético da estrutura narrativa de Lavoura arcaica. Com efeito, tragédia é a representação de um fato trágico, suscetível de provocar compaixão e terror. Aristóteles (2004, p. 63) afirmava que a tragédia era "uma representação de uma ação elevada, de alguma extensão e completa, em linguagem adornada, com atores atuando e não narrando, e que tem por resultado a catarse dessas emoções".

Se não podemos dizer que Lavoura arcaica seja um poema, mas sim uma prosa poética, também não faz sentido nomeá-la tragédia, pois o romance não apresenta todos os elementos da tragédia clássica, com unidade de tempo, lugar, personagens nobres, dentre outros. Contudo, podemos entender essa narrativa nassariana como um romance trágico.

Segundo André Luis Rodrigues (2005, p. 153), o romance apresenta umaambigüidade e oscilação juntamente com a ironia trágica e afirma:

A primeira [ambigüidade e oscilação] inscreve-se mesmo no processo de composição do romance, na confusão entre os personagens (entre Ana e a mãe, entre Ana e Lula, entre o próprio André e Lula), nas revelações que mais ocultam que esclarecem (a relação com a cabra; a relação com o irmão mais novo; a própria relação incestuosa com a irmã, o desejo de morte e a opção pelo suicídio, depois substituído pela fuga; a frieza ou suposta frieza diante da morte da irmã; no diálogo entre André e o pai, em que as palavras assumem significados distintos e mesmo opostos (como a palavra fome).

De fato, ambigüidade e oscilação são os elementos construtores de Lavoura arcaica, e que também caracterizam a mistura dos gêneros prosa,poesia edrama..

Após realizarmos essa sondagem no romance, entendemos o que Pareyson (2001, p. 8) afirma sobre a natureza da estética, ao valorizar a relação da estética com a experiência concreta, ou seja, a relação direta do leitor com a obra, considerando-as indissoluvelmente unidas, de forma que a especulação sem base na experiência se torna estéril abstração. Ao mesmo tempo, a análise dos objetos estéticos sem aprofundamento filosófico (especulativo) que irá determinar, por exemplo, a universalidade de temas, entre outros aspectos,torna-se mera descrição.

Nuança importante a ressaltar é a descrição poética que o romance oferece sobre o tempo. Tal descrição apresenta-se por vezes como verdadeiracélula ensaística, cheia de lirismo e poeticidade, cujo objetivo é a tentativa de explicar e definir o que é o tempo para a personagem pai e André. Veja-se este fragmento:

"O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor, embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento, sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico... (NASSAR, p. 51- 52).

[...] O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas, me aguardando na casa velha, era um tempo também de sobressaltos... (NASSAR, p. 93).

Em Lavoura arcaica, há uma série de acontecimentos, e de repente há um corte na narrativa, para o narrador se deter, por exemplo, no tempo. Esta divagação do narrador sobre um tema qualquer pode ser entendida como uma célula ensaística, faz parte da estrutura estética do texto, pois se coloca a serviço da fragmentação da estrutura da narrativa, a seguir rearticula-se o discurso, retomando-o de novo, uma vez que busca reestruturar no romance as relações familiares no âmbito moral e religioso. É nos momentos de crise, de conflito existencial que a célula ensaísticarompe o fluxo narrativo proporcionando um momento de reflexão para André.

A célula ensaística dentro da narrativa nassariana está vinculada a noção de fragmentação associada à quebra, à ruptura, afatores que causam desconforto, no entanto é também a célula ensaística que abre um espaço para a reflexão e a conscientização da personagem André, pois tal elemento narrativo propõe a organização da contrariedade, da cisão. Mas revela também que o fragmentário faz parte do todo narrativo cujo lirismo oscila entre o"eu" subjetivo e social.

Por isso, a ficção nassariana vai além da intenção de contar uma história. O romance permeado de micro narrativas, como o capítulo 13 (a história do faminto) ou até mesmo o capítulo 9, referente à célula ensaística sobre o tempo, torna-se um espaçode questões relacionadas e interligadas à tessitura do texto, que suscita a reflexão do leitor sobre a paciência, a submissão, a raiva, a revolta.

De fato, pretendemos visualizar o poético como categoria estética, pois cremos que há diferentes meios de atingi-lo, por intermédio da mistura de gêneros, de estilo, de tonicidades narrativas, essa mistura talvez seja um modo interessante e eficiente de articular a linguagem da narrativa de ficção pós-moderna. Em Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo, de Steven Connor (1993, p. 106), a articulação dos gêneros é descrita como um ponto forte da literatura pós-moderna:

Curiosamente, isso [o gênero narrativo] é acompanhado por um relato crítico que, de tempos em tempos, acentua a pluralidade de formas e linguagens do texto literário pós-moderno. A descrição de Mikhail Bakhtin dos discursos plurais e correntes presentes no romance é usada como apoio ao relato que McHale faz da condição literária pós-moderna; onde outros gêneros têm um rígido caráter 'monológico' em sua regularidade estilística, a ficção pós-moderna, diz McHale, é um entrelaçamento carnavalesco de estilos, vozes e registros que alegadamente rompe a decorosa hierarquia dos gêneros literários.

Parece-nos que em Lavoura arcaica tais procedimentos de mescla de gêneros são uma constante. Surge no corpo do texto um embate curioso sobre aquestão da estética, pois os gêneros, ora se aproximam, ora se distanciam. Em outros momentos, integram-se, para depois reinventarem outro gênero, que por vezes não sabemos definir. Ao longo deste trabalho, estamos nos referindo àmescla de gêneros descritos na obra: poesia, prosa, romance, tragédia, sagrado, profano, mítico, dialógico, lirismo. Isso é ocorrência na narrativa nassariana, que tem o seu fundo de reinvenção criativa calcada em muitas outras histórias, entre elas a história bíblica da Parábola do filho pródigo.

O procedimento paródico de Raduan Nassar retira da parábolapersonagens como o pai e o filho pródigo e reconta os fatos à sua moda, de forma poética, lírica e trágica, confirmando que toda a história por mais religiosa ou verídica que seja é uma espécie de literatura, porque o discurso quando relata, também, reinventa. O interesse é que tal manobra sefaz de forma consciente.

Entendemos que, como escritor pós-moderno, Raduan Nassar apresenta em sua escritura o seguinte exercício: olhar para o passado, pensar o presente, estando de olho no futuro. Por isso, há o caráter inacabado da obra, há uma abertura que é pressentida em cada micro narrativa de Lavoura arcaica.

Salientamos que a incursão da sociedade patriarcal no ideal lírico do romance não quer dizer que o lirismo passará a ser tratado como mera fonte sociológica. Ao contrário, não percorremos caminhos alheios ao conteúdo artístico literário, neste caso, a orientação partiu do literário, ou seja, da própria tessitura doromance, da especificidade escritural do autor.

Nesse sentido, entendemos o lirismo como o processo regulador de formas líricas do romance, ou seja, o meio de levá-las a qualquer gênero, porque o lirismo se comporta como uma atitude perante a realidade, uma postura diante da vida e das coisas do mundo. O lirismo é "esse processo de estruturação entendido como uma dinâmica do sujeito ou como uma expressão subjetiva" (SILVA, 1975, p.14). Afinal a essência do lirismo são as emoções, os sentimentos, traduzidos em imagem e sonoridades dadas por ritmos, cortes, etc.

Concluímos que a questão da poética em um texto literário se manifesta de diversas formas. Sendo os preceitos literários que compreendem a natureza e a tarefa da estética de caráter filosófico, uma vez que a poética é por essência normativa. A função estética de Lavoura arcaica é ser prosa e ser poesia ao mesmo tempo. Contudo, é possívelidentificar a condensação do texto poético através do próprio signo lingüístico. Cada palavra está carregada de sentido, além de apontar para uma multiplicidade de sentidos possíveis, o que corresponde à possibilidade demúltiplasleituras do romance.

Uma das maneiras de alcançar a poeticidade do romance está no método de elaboraçãoautoral,que recusa todo e qualquer modelo e opta pela junção de diferentes elementos sociais e artísticos, como a questão do patriarcado, da família, do mito, da paródia, do sagrado/ profano, do visceral, entre outros elementos que originam o lirismo da escritura nassariana.

Também identificamos que o sujeito lírico do romanceé o próprio texto. Pela escolha composicional de Raduan Nassar, é possível identificar a poesia comovalor estético da narrativa.

Enfim, o "lavourar" poético como questão de estética é o que há de sui generis na escritura desse romance – Raduan Nassar acentua a forma de lirismo moderno por captar na prosa elementos ligados ao "eu social" e ao "eu subjetivo" da personagem André, chocantes para os olhares humanos. Esses elementos, embebidos em fragmentos de beleza, formam uma nova concepção de lirismo, porque "também os restos de "belo", que aí estão inseridos, servem à dissonância ou são eles mesmos dissonantes, vinculando potências líricas" (FREIDRICH, 1978, p.78).

Referência Bibliográfica

DO AUTOR

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GERAL

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Notas de Rodapé

1- OLIVEIRA,Nelson. Diversão e arte. Entrevista à revista Isto É Gente, 01/01/1999. Disponível em:< http//www.terra.com.br/istoegente/35/divearte/livros_ping.htm>. Acesso em: 08 jun. 2008.

2- A hibridização de gêneros dentro da obra literária estabelece um método de composição diferenciado, pois o gênero híbrido não constitui um fim em si mesmo. Ele só tem sentido quando estabelece uma combinação particular (varia de obra para obra) entre os diferentes gêneros literários

3- RODRIGUES, André Luis. A casca e a gema: o anseio pelo absoluto em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. In: Literatura e Sociedade nº8, São Paulo, 2005, p.151.

4- A aparição do vocabulário lírica ocorre no período em que é proposta a divisão dos gêneros, na República de Platão, depois a questão é retomada e ampliada por Aristóteles.

5 - Foram os românticos que criaram a identificação entre lirismo e poesia. Paulatinamente a poesia e o sentimento lírico passaram adesignar, para os românticos, a realidade da poesia, sua especificidade e a relação com as camadas mais profundas da alma. Essa pseudo-identidade encobriu, durante muito tempo, a pluralidade de conceitos que envolve: poesia lírica, lirismo e poesia