Mestiçagem no Brasil Colonial ? A dor da convivência entre brancos e índios


Resumo
A proposta deste artigo é discutir a prática da miscigenação nos primórdios do Brasil por intermédio dos escritos de jesuítas e viajantes, além de registros em documentos oficiais que evidenciam a maneira conflituosa como tudo ocorria.

Abstract
The proposal of this article is discuss the ethnic mix at the beginning of Brazil through Jesuits and travelers? writings, we analyze, also, records in official documents that evidence the unhappy way as all happened.


Palavras-chave ? Miscigenação, Colonial, Jesuítas, Brasil.

A verdadeira identidade do povo brasileiro só se revela quando mergulhamos nos espaços mais recônditos da história do Brasil. Entre esses lugares, pouco visitados, temos, em grande profusão, os escritos deixados pelos jesuítas e viajantes. Entre uma infinidade de temas abordados por esses encontra-se também a temática da mestiçagem. É surpreendente a maneira como os autores referem-se aos mamelucos contatados por eles, nos dois primeiros séculos da Colônia. Por meio de seus discursos, tem-se noção do que representava, para um europeu letrado, a questão da miscigenação no Novo Mundo.
Ao chegar ao Brasil, uma das primeiras observações de Anchieta foi constatar, na terra, copiosa multidão de mamelucos. O fato era-lhe estranho e, até certo ponto, repugnante. Porquanto revelava a "devassidão moral" adotada pelos portugueses que aqui chegaram logo nos primeiros decênios. Mesmo assim, considerando os 50% de branquitude daqueles meninos, logrou arrebanha-los para os trabalhos da catequese. No epistolário anchietano, esses meninos são tratados como órfãos e eram recolhidos nos colégios para educação e cristianização. Sendo filhos de mulheres nativas com portugueses, o número desses mestiços crescia em tal velocidade a ponto de representar, para os jesuítas sérias preocupações. Quem sabe, muitos deles, filhos de donatários, senhores de terras, os mamelucos ocupam fartas linhas dos escritos jesuíticos. Houve, inclusive a intenção de manda-los à Espanha, a fim de que fossem educados.
Nota-se que o plano de exportar mamelucos para a Espanha, certamente pertencia a Nóbrega que comandava as atividades jesuíticas no Brasil desde sua chegada, em 1549. Mais tarde encontra-se Anchieta propondo a troca de mestiços por irmãos enfermos do colégio de Coimbra. Contudo, tal estratégia não tem seus resultados registrados nos escritos dos jesuítas e o problema da assimilação desses indivíduos, no contexto colonial, continuou sempre muito mal resolvido.
Fato é que ao emprega-los na catequese, Anchieta não obteve sucesso, pois, "não é gente de que se deva fazer caso para conversão do gentio" . Os rapazes eram filhos da terra, não pertenciam aos índios nem aos portugueses, conforme observa Darcy Ribeiro:

Os brasilindios ou mamelucos paulistas foram vitimas de duas rejeições drásticas: a dos pais, com quem queriam identificar-se, mas que os viam como impuros filhos da terra, aproveitavam do seu trabalho enquanto meninos e rapazes e, depois, os integravam às suas bandeiras, onde muitos deles fizeram carreira. A segunda rejeição era a do gentio materno. Na concepção dos índios, a mulher é um simples saco em que o macho deposita sua semente. Quem nasce é o filho do pai, e não da mãe, assim visto pelos índios. Não podendo identificar-se com uns nem com outros de seus ancestrais, que os rejeitavam, os mamelucos caíam numa terra de ninguém, a partir da qual constrói sua identidade de brasileiro.

Assim, sem família, "sem eira nem beira" e absolutamente indispostos à disciplina, em especial, à disciplina jesuítica, que era extremamente rígida, os mestiços fugiam de sob as asas dos padres para melhor viverem suas libertinas vidas entre as matas e os rios. Analisa também Anchieta que os mamelucos representavam mais tropeço que ajuda na evangelização dos nativos, visto que, logo se dispersavam, "tentados pelo espírito de fornicação".
Na verdade, a escolha de Anchieta não se deu apenas pela mescla européia no sangue desses meninos, mas, ocorreu, principalmente, por outro quesito: os mamelucos conheciam a língua da terra e a língua dos colonos, por conseguinte, podiam vir a ser excelentes canais de comunicação entre religiosos e indígenas - como se deu nos anos seguintes, nas negociações comerciais entre portugueses e nativos. Entretanto, apesar da ambivalência étnica e lingüística, esta que lhes conferia a alcunha de "línguas", faltava-lhes a tendência religiosa. Sem mais escolhas, os mamelucos adestraram-se nos trabalhos, que, segundo os jesuítas, eram os mais vis e se embruteceram ao sabor da terra que, conforme Anchieta, fizeram-se mais bárbaros que os próprios nativos. Salvo exagero do padre, registra-se também, nos documentos oficiais, a ação desses mamelucos na captura de nativos - não poucas vezes, liderados por brancos eminentes - no meio da selva, a fim de comercializá-los como escravos no próprio planalto ou no litoral, onde existiam muitos engenhos e a demanda de mão-de-obra era grande. Quando não se satisfaziam com as entradas pelo sertão atacavam os aldeamentos, onde os índios já domesticados e cristianizados representavam presas fáceis.
Particularmente, no Planalto de Piratininga, Anchieta enfrentou, durante toda sua vida, um grande inimigo, que segundo evidências, era João Ramalho: português que vivia em concumbinato com a índia Bartira, filha do Cacique Tibiriçá, maioral do Planalto. Constantemente encontramos Anchieta a registrar, em suas cartas, queixas em relação a esse homem - considerado nos documentos oficiais, homem bom e eminente, a ponto de ser convidado para a vereança do Planalto, como prova o documento oficial:

Aos quize dias do mês de fevereiro da era de Mill e quinhentos e secênta e quatro hanos nesta vila de São Paulo eu jº fiz escrivão da quamara da dita vila co beltezar roiz precurador do cõselho da dita villa fomos as cazas de Luiz Martins q são na dita vila haonde hai estava jº ramalho pouzado a lhe requerermos q aceitasse ho quargo de vereador desta vila pr quãto saira na eleisão e pautoa q nesta dita vila se fez (...)

Para desventura dos jesuítas, os filhos mamelucos de João Ramalho, e ele mesmo, especializaram-se também em empreender entradas pelo sertão e apresar índios. Se não fosse pouco, dominavam uma estratégia discursiva cuja força tornavam céticos os índios que, por curiosidade ou por convicção, se aproximavam dos padres. Observa-se na carta de Anchieta que os citados mestiços viviam como índios: armados de arco e flecha, despidos e distantes da doutrina cristã, embora a professassem, quem sabe, por simples ostentação.
Além desse registro pontual, os mamelucos paulistas ainda desciam ao extremo sul: região habitada por carijós - muitos deles já domesticados pelas missões espanholas ? e cometiam grandes atrocidades ao executarem resgates de índios cristãos e aterrorizarem os padres responsáveis por essas reduções.
Dentro do contexto colonial, os mestiços eram realmente homens desprezíveis, para os quais não existiam leis de Deus nem dos homens. Todavia, não se pode perder de vista a situação desses indivíduos no contexto social que lentamente plasmava-se na nova terra. Eram indivíduos limitados à margem da ideologia colonialista, no contexto de uma terra remota, avessa à civilidade e à polícia. Considera-se ainda que tudo o que sabemos sobre eles são escritos de outrem.
Outro relato curioso e que suscita reflexão é feito por Gabriel Soares de Sousa, português radicado na Bahia, no primeiro século. Tornou-se senhor de engenho e teve a seu serviço muitos mamelucos, entre eles muitos que "nasceram, viveram e morreram como gentios; dos quais hoje há muitos descendentes, que são louros, alvos e sardos, e havidos por tupinambás, e são mais bárbaros que eles". O cronista relata a existência, em suas terras, de alguns tupinambás louros e que, segundo o escritor, deviam ser filhos de franceses com índias. Nota-se, no discurso de Sousa a análise vigente, o estigma de possuir a origem dúbia. Apesar de serem brancos e alourados, eram infectos filhos de mulheres da terra, logo, "menos humanos" que os próprios tupinambás.
Das referências analisadas até o momento nenhuma delas iguala-se àquela feita pelo jesuíta Antonio Vieira, no século XVII. Embora aceitasse os cativeiros indígenas, instituídos pela Igreja , tornou-se ferrenho defensor da liberdade dos nativos e contra a ação dos colonos portugueses. E é num desses momentos cruciais que despeja sobre o papel sua opinião a respeito dos mestiços, segundo ele:

Toda verdade e justiça desses cativeiros ficou na fé dos línguas ou pombeiros, os quais todos são mamalucos, mulatos, gente vilíssima, e sem alma nem consciência, criados nesta carniceira de sangue e liberdades, e perpétuos instrumentos, ou algozes das infinitas crueldades e tiranias, que a cobiça dos maiores tem executado naquele rio.

Quase cem anos após José de Anchieta e Gabriel Soares de Sousa, Antonio Vieira conserva o mesmo tom de desprezo e repulsa pelos mestiços da terra. Se o índio adquirira alma a partir da bula papal Siblimis Deus, o mestiço nascera sem alma nem consciência. Conseqüentemente, gente rasa, subserviente dos poderosos da terra, sempre dispostos a praticar as maldades planejadas por aqueles. Como já foi dito, não se encaixavam em nenhuma esfera humana existente no momento e no lugar, por outro lado, segundo Anchieta, nas mãos deles estava a edificação ou a destruição da terra . Certamente, porque eram muitos e não se submetiam a nenhuma lei, a não ser a da sobrevivência.
A exceção de alguns portugueses que viveram publicamente com mulheres índias e geraram prole, como o já citado João Ramalho, registra-se nos documentos oficiais, no Planalto de Piratininga, uma petição que nos leva a crer que muitos desses indesejáveis mamelucos nasceram como resultado da violência, visto que:

Requereo o dito procurador na dita câmara q muitos mansobos solltrºs q iaô as fontes peguar nas negras e as afrontavão ao q elles sñrs oficiaes mandarão q fose apreguoado q todo o mancebo asi solltrº como casado q achar peguando hallgua negra q va a fonte ou ao rio pague sincoenta rs prª o cº pª a primeira e pª a segunda sem rs.

O documento escrito no Planalto de Piratininga, em abril de 1576, conduz-nos, em princípio, a algumas reflexões práticas antes da análise de seu conteúdo. Em primeiro lugar, é fato notório, na história que "negros", no século XVI, e particularmente, em São Paulo, eram os índios, visto que a importação de africanos para o Planalto era ocorrência rara, dada a pobreza da maioria dos colonos estabelecidos no lugar. Assim, todo trabalho braçal era realizado por indígenas escravizados ou aldeados. Com efeito, as negras, referidas na ata, eram índias a serviço de senhoras brancas. Outro ponto importante que não pode ser ignorado é relativo à pena a pagar pela infração: considerando que mesmo os índios livres não manipulavam dinheiro em espécie e só pagavam pena no pelourinho, os mancebos citados no documento só podem ser brancos, portugueses ou filhos destes.
Não há duvida de que o documento em questão explica o desprezo cultivado pelos brancos em relação aos mamelucos, considerando que, não poucos desses, surgiram como conseqüência de estupros sofridos pelas índias no exercício de seu trabalho. Retornamos a Anchieta e entendemos por que essas crianças eram tidas como órfãs. Por certo, não eram filhos das índias nem dos brancos. Eram rebentos da colonização, filhos da lascívia, retrato vivo e contundente de um modo de vida que se tornou regra, mas que, escandalosamente, incomodava religiosos e autoridades a ponto de se reunirem e prescreverem pena para os criminosos.
Assim formou-se a primeira vertente da etnia brasileira: os mamelucos ladinos, filhos da terra que sempre os expeliu como frutos amargos, avessos às leis e a ordem, cultivadores do ócio e da libertinagem, segundo registram as letras coloniais.

BIBLIOGRAFIA
Livros
ANCHIETA, José de. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões, São Paulo, Editora Itatiaia, 1988.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra ? Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro ? A Formação e o Sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
VIEIRA, Antônio. Escritos instrumentais sobre os índios. São Paulo, Loyola, 1992.
_________Sermões ? Tomo I, Organização de Alcyr Pécora, São Paulo, Hedra, 2003.

Documento
Atas da Câmara da Cidade de São Paulo ? 1562 ? 1596 ? Volume I. São Paulo, Publicação da Divisão do Arquivo Histórico do Departamento de Cultura, 1967.

Rosemeire França de Assis Rodrigues Pereira
E-mail ? [email protected]
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Professora de Língua Portuguesa e Literatura na rede estadual de ensino de São Paulo
Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo
Doutoranda em Literatura Brasileira ? Universidade de São Paulo