Kalunga é a designação dada aos descendentes de escravos que se refugiaram em quilombolas nos grotões do Estado de Goiás. Lá eles formaram comunidades autossuficientes, isoladas da civilização, se é que podemos chamar as cidades brasileiras de lugares civilizados. É também importante lembrar que Kalunga, em bom dialeto banto, significa “Tudo de bom”.  É aí que se encaixa o querido Carlinhos Kalunga, violonista, arranjador, produtor musical e compositor.

Quem lhe deu o apelido não se sabe. Falei com seus amigos de juventude e ninguém tinha informação sobre a origem. Mas de qualquer forma o sentido banto lhe cai bem, pois o Carlinhos Kalunga é aquele sujeito sempre sorridente, de uma simpatia acolhedora.

Carlinhos, músico de profissão e de paixão, começou cedo a lidar com o pinho, pois o pai, seu João Gonçalves, tinha muita afinidade com o velho violão que tinha em casa, num bairro da periferia de Santo André, no ABC paulista. No colo do pai ele, ainda de fraldas, gostava de mexer no violão e ficava encantado ao ouvir a ressonância das cordas, rindo de modo a ouvir-se de longe, como gostava de contar sua mãe, Dona Adelina.

O garoto foi crescendo e, aos poucos, juntando-se à turminha de adolescentes do bairro, como ele, apaixonados por música. Nesta época, anos sessenta, formou o grupo Equipe 4, juntamente com Sérgio Papagaio (guitarrista líder), Isaac (baixo), Simone (bateria, Luis Santana (teclado). Tinha também o Zhorba que era o faz tudo e ajudava também na percussão. O grupo tocava rock nos bailes na região.

Foi assim que conheceu o músico Oscar de Vitto, os letristas Dedo Thenório e Sinésio Dozzi Tezza entre tantos outros. Eram os tempos da beatlemania e canções como Hey Jude, Penny Lane entre outras foram sendo descobertas e aprendidas de forma autodidata, provavelmente no velho violão do pai, que por sua vez preferia as canções do Chico Alves, Lupicínio, Herivelto Martins entre outros da velha guarda. Com a turminha ele começou a criar as primeiras canções autorais que talvez nunca venham a ser conhecidas do grande público.  Num site do Dedo Thenório, um abnegado colecionador de canções dos amigos, é possível conhecer algumas das primeiras canções do Kalunga com seus velhos parceiros.

Tive o feliz privilégio de estar presente durante nascimento de uma dessas composições, já na fase mais madura do compositor, como Urutau e Sem fim, que ele fez em parceria com o Sinésio Dozzi Tezza, belas canções que infelizmente a nossa indústria cultural manterá no velho baú de preciosidades secretas.

Carlinhos, como muitos outros músicos de sua geração, acabou se apaixonando pela MPB e tocou com vários artistas, viajando muito pela Europa, EUA, Canadá etc.  Em Paris, aproveitando-se de uma das turnês  que fazia acompanhando artistas consagrados foi colocada em prática uma ideia, já concebida anteriormente, para formação de um grupo de musica instrumental denominado “Jazz da Garoa”, onde participavam  o próprio Carlinhos, Bira, Djalma e outros. No período em que morou no Rio de Janeiro, foi um dos músicos mais solicitados por grandes nomes da MPB para atuar como arranjador e instrumentista. Outro grande amigo  do Carlinhos foi o Formiga, considerado um dos maiores percursionistas do Brasil, que tocava com o Johnny Mathis, sempre que o cantor vinha ao Brasil.

Carlinhos Gonçalves “Kalunga” precisava ganhar a vida, ou melhor, dizendo, ganhar da vida para sobreviver como músico, sua grande vocação. Entre um trabalho e outro, ele conheceu o cantor e compositor Wando e tornou-se o seu instrumentista e arranjador durante a maior parte da carreira do artista até sua partida de forma repentina.  Wando foi um artista controvertido, existindo aqueles que o adoravam e os que o criticavam, mas gostando ou não do Wando, há que se reconhecer que foi um artista talentoso que teve uma presença marcante na história musical brasileira. Nos bastidores Wando sempre contava com outro artista de talento e grande sensibilidade, seu parceiro e amigo Carlinhos Kalunga, que cuidava com profissionalismo impecável dos arranjos das canções, gravações e direção musical dos shows.

Muitas histórias foram contadas sobre o Carlinhos e algumas envolvendo os amigos mais chegados, ainda alegram a velha turma do ABC, como o inesquecível encontro do seu amigo e parceiro Oscar de Vitto com o Wando nos bastidores do teatro municipal de Santo André durante um show do cantor; a apresentação da artista Isaurinha Garcia no velho Café Luá, em São Caetano do Sul, nos distantes anos 80, quando ele, a acompanhando ao violão, sentiu a cantora desabando sobre seu corpo franzino depois de um homérico porre. Há também o inesquecível encontro no Rio, promovido pelo Carlinhos, do Wando e o poeta e compositor Dedo Thenório, para comemorarem uma recente parceria. Esse encontro teve muitos detalhes pitorescos que merece uma outra crônica.

Seria impossível deixar de lembrar-se de um fim de semana prolongado em Butiá, terra dos Dozzi Tezza onde passamos em companhia do Carlinhos, Márcia, Sinésio, Ana Amélia, Zhorba e Celinha, momentos inesquecíveis, harmonizados com muita cerveja e embriagados de canções, sempre acompanhadas pelo seu impecável violão.

 Carlinhos Kalunga passou também seus maus momentos, mas que ele superou, não perdendo a alegria de viver. Márcia, sua inseparável companheira de todos os momentos, deu-lhe as forças necessárias para ele continuar a sua jornada para a alegria de todos.

E aí está um modesto retrato 3x4 de uma figura 30 x 40 que contempla, nos seus momentos de folga, nas mornas tardes do hemisfério sul, as águas do Atlântico baterem preguiçosamente nas praias de Ubatuba. E Kalunga ou “Tudo de bom”, observa a paisagem com seus olhos de artista, caminhando descalço pela praia com o violão a tiracolo, deve pensar com seus botões: Tenho amigos, a música e meu violão e nada me faltará.