1.Introdução

A busca de um "teto" é desde os tempos primitivos uma necessidade fundamental dos seres humanos, todavia, para os detentores do poder parece não ser.

O problema da falta de moradia para tantos cidadãos brasileiros possui raízes num longo passado histórico. É fruto não da ausência de políticas públicas, mas de uma política que sempre esteve voltada para os interesses da elite dominante, desprezando densamente os menos favorecidos.

Dessa forma, coexistem, em nossos dias, bairros luxuosos e miseráveis, cuja semelhança se dá no fato de que: em ambos moram seres humanos.

Embora a nossa Constituição Federal assegure o direito à moradia como um direito fundamental, é visível, em toda parte do perímetro urbano das cidades brasileiras, que a moradia digna "inexiste" para a maioria da população.

Adiante veremos as facetas deste fundamental direito, traçando seu caminho, desde a sua raiz histórica até os efeitos da sua positivação no nosso ordenamento jurídico.

2. Direitos Fundamentais Sociais.

2.1. Processo Histórico.

Do ponto de vista teórico, podemos dizer com veemência que os direitos do homem são nada mais que frutos de conquistas históricas e nascem gradualmente em face das circunstâncias que vão se apresentando.

Diante desta assertiva, não se poderia falar em direito à moradia sem antes delinear, ainda que brevemente, o contexto de surgimento dos direitos sociais.

Foi durante a passagem do Estado Liberal, consagrado pela expressão francesa laissez-faire, laissez-passer, para o Estado de Bem-estar social, também conhecido como Welfare State, que os direitos sociais estrearam como direitos fundamentais[1].

No cenário do século XVIII, o pensamento liberal-burguês, que teve como marco a Revolução Francesa, pregava o ideal do Estado mínimo, não-intervencionista, atuando somente na medida necessária para garantir as liberdades do indivíduo, de forma a protegê-lo dos abusos do Estado.

Tal pensamento se fundamentava na época em que se firmara. As doutrinas iluministas e jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII, dos quais os filósofos mais célebres foram Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, criaram as condições ideológicas indispensáveis para que a finalidade do Estado fosse, essencialmente, realizar a liberdade do indivíduo. Contrapondo-se, por este viés, ao absolutismo estatal, que marcou uma era de sujeição do indivíduo ao príncipe.

Entretanto, o liberalismo não se demonstrou necessário para garantir o equilíbrio na sociedade.

O impacto da industrialização, os sérios problemas sociais e econômicos que a acompanharam, e a constatação de que a consagração formal de liberdade e igualdade não promovia a garantia do seu efetivo gozo acabaram, já no decorrer do século XIX, gerando amplos movimentos reivindicatórios da classe operária e o reconhecimento progressivo de direitos, atribuindo à máquina estatal um comportamento ativo para a realização da justiça social.

Com efeito, surge um novo modelo de Estado. Um Estado galgado no dualismo bem-estar e desenvolvimento econômico. Ou seja, a concepção de liberdade-autonomia, que impunha ao Estado um dever de abstenção na esfera de atuação dos indivíduos, deu lugar a outra perspectiva de atuação estatal.

Do Estado Liberal evoluiu-se para o Estado Social, caracterizando-se este por sua ação interventiva na ordem econômica e social, tendo por objetivo assegurar aos particulares um mínimo de igualdade material e liberdade real na vida em sociedade, bem como a garantia de condições mínimas para uma existência digna. Nos dizeres de Ingo Wolfgang, "[...] não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado".[2]

Cumpre salientar que, de acordo com os ensinamentos de Edvaldo Brito, este Estado Social se manifesta sob dois moldes: o radical, ao qual se suprimem as liberdades e eliminam-se os pilares do Estado de Direito, e o moderado, aquele que mantém o Estado de Direito, acrescendo, aos direitos fundamentais, nascidos com o pensamento liberal burguês, outros direitos de cunho social[3].

Tais direitos, muito embora já tivessem sido contemplados embrionária e isoladamente nas Constituições Francesas de 1793 e 1848, na Constituição Brasileira de 1824 e na Constituição Alemã de 1849 (que não chegou a entrar efetivamente em vigor)[4], tiveram como marco as Constituições do México de 1917, a Russa de 1918 e a de Weimar (da Alemanha) de 1919.

Contudo, apesar da Constituição do México ter sido a primeira de todas, a de Weimar veio a se tornar paradigma do constitucionalismo do primeiro pós-guerra do século XX, dada a importância que assumira e às circunstâncias do seu surgimento, resultado da quebra do antigo regime e implantação de uma República Social na Alemanha[5].

Foi nesse panorama que surgiram os direitos sociais, chamados de direitos de segunda dimensão. Direitos nascidos em razão das circunstâncias que revelaram a sua imprescindibilidade para o exercício dos direitos fundamentais de primeira dimensão e que, por isso mesmo, não os substituíram.

2.2. Algumas premissas de cunho terminológico

Feita essa abordagem histórica, julgamos oportuno, para efeito deste trabalho, tecer algumas considerações acerca do termo "direitos fundamentais".

Tal terminologia aplica-se àqueles direitos da pessoa reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado.

No caso do Brasil constata-se que os direitos fundamentais gozam de grande importância e essencialidade para a pessoa humana. Tanto é assim que são identificados como parte integrante do texto constitucional (o direito à moradia é um exemplo). São nada mais que normas de superior hierarquia e, por esta mesma razão, situam-se no ápice do ordenamento jurídico.

Não obstante, a nossa Carta Magna contemplou os direitos fundamentais com o título de cláusulas pétreas, não podendo ser objeto de reforma constitucional.

Por derradeiro, nos termos do que dispõe o artigo 5º, §1º da Constituição, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são imediatamente aplicáveis, vinculando as entidades estatais e também os particulares.

3. Direito à moradia

3.1. Da positivação no plano internacional e constitucional

Traçada esta breve abordagem histórica, nos incumbiremos agora de tratar do reconhecimento expresso pela ordem jurídica positiva de um direito fundamental à moradia.

Ainda que nos deparemos com a situação subumana vivenciada por milhares de pessoas e famílias em todo Brasil, que sobrevivem nas ruas das grandes cidades, que moram em locais sem as devidas condições sanitárias ou que vivem em áreas de riscos, cumpre asseverar desde logo que o direito à moradia é um direito humano protegido não só pela Constituição Brasileira como também pelas diversos Instrumentos Internacionais do qual o Brasil é parte.

Neste sentido, podemos mencionar, primeiramente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que em seu artigo XXV (1) estabelece: "Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis".

A partir do citado dispositivo o direito à moradia passou a ser objeto de reconhecimento expresso em diversos tratados e documentos internacionais, destacando-se, seja pela sua importância, seja pela sua precedência cronológica, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1996), promulgado pelo Brasil através do Decreto 591, de 06.07.1992. Por um dos seus dispositivos, o art. 11, os Estados Partes reconhecem o direito de toda pessoa à moradia adequada e comprometem-se a tomar medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito.

Nesta seara, oportuno fazer a ressalva de que, enquanto o Pacto dos Direitos Civis e Políticos estabelece direitos endereçados aos indivíduos, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc) estabelece deveres endereçados aos Estados[6].

Na percepção de Thomas Buergenthal

"Ao ratificar o Pacto, os Estados não se comprometem a atribuir efeitos imediatos aos direitos especificados no Pacto. Ao revés, os Estados se obrigam meramente a adotar medidas, até o máximo dos recursos disponíveis, a fim de alcançarem progressivamente a plena realização desses direitos"[7].

Por outro lado, em razão da chamada cláusula de proibição do retrocesso social, é vedado aos Estados retroceder no campo de implementação de tais direitos. Ou seja, a progressividade dos direitos sociais proíbe o retrocesso ou a redução de políticas públicas voltadas à garantia de tais direitos.

Além deste Pacto, o Brasil também ratificou as Convenções sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979) e a Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989)[8]. Todas reafirmam a condenação de qualquer tipo de discriminação – de gênero, idade, raça e nível socioeconômico- relativo ao direito de moradia adequada.

Ainda no cenário internacional, a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver (1976) e a Agenda 21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) do mesmo modo prescrevem o direito à moradia como um direito fundamental.

Sob a ótica normativa constitucional, por força dos §§ 2º e 1º do art. 5º, não é mais possível sustentar a tese segundo a qual, com a ratificação, os tratados obrigam diretamente aos Estados, porém, não geram direitos subjetivos aos particulares enquanto não advém a intermediação de um ato de força legislativa para tornar obrigatório à ordem interna um tratado internacional[9].

Em outras palavras, os pactos e as convenções assinadas pelo Brasil têm força de lei e, dessa maneira, criam uma obrigação por parte do Estado brasileiro de fazer cumprir esse direito para todos os cidadãos. Vale dizer, tornou-se possível a invocação imediata de tratados e convenções de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário, sem a necessidade de edição de ato com força de lei, voltado à outorga de vigência interna aos acordos internacionais.

Assim, acredita-se que, em virtude das obrigações assumidas perante a comunidade internacional o Brasil incluiu no texto da Carta Magna, mediante a Emenda Constitucional nº 26/2000, o direito à moradia como um direito fundamental. O art. 6º da CF/88 assim prescreve: "são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". (grifo nosso).

Contudo, na Constituição de 1988 já havia menção expressa à moradia em outros dispositivos, seja quando dispõe sobre a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para "promover programas de construção de moradia e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico" (art. 24, inc. IX), seja quando no art. 7º, inc. IV, definiu o salário mínimo como aquele capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, dentre outros elementos, com moradia.

Tendo em vista que o direito à moradia é um direito social e que os direitos sociais são caracterizados por sua dimensão positiva, cabe ao Estado efetivá-lo, promovendo políticas de proteção deste direito.

A propósito, a Lei 9.785/99, que trouxe substanciais alterações ao texto da chamada Lei do Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/79) e o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) são também exemplos de textos legais que reforçam tal intento.

Por um lado, a Lei Federal n. 9.785/99 prevê a possibilidade de o Poder Público assumir a regularização fundiária de loteamentos irregulares e clandestinos sem a observância dos procedimentos urbanísticos e administrativos previstos na conhecida Lei 6.766/79.

De outro modo, o Estatuto da Cidade estabelece princípios e diretrizes para o ordenamento territorial e urbanístico, calcado no princípio da função social e ambiental da propriedade e na garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido "como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações" (art. 2º, Lei 10.257/01).

Diante do exposto (MODIFICAR), o Estado deve agir de forma a propiciar melhores condições de vida ao cidadão, visando à igualdade material entre todos. (MELHORAR)

3.2. Da fundamentação e o seu conteúdo

Diante das considerações tecidas no subitem anterior, ousamos dizer aqui que o direito à moradia é direito fundamental mesmo antes do advento da Emenda Constitucional n. 26, ou seja, desde a promulgação da Constituição de 1988. Isso se deve à sua incontestável fundamentalidade material, que lhe é conferida principalmente por sua íntima ligação com o princípio da dignidade da pessoa humana[10].

A título de esclarecimento prévio, a fundamentalidade material diz respeito à importância crucial do conteúdo dos direitos ditos "fundamentais" no sistema constitucional brasileiro, independente de constarem ou não no Título II da Constituição Federal (que trata dos direitos e garantias individuais).

No que tange à vinculação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à moradia, embora não seja nossa intenção adentrar de forma aprofundada, há que se apontar a grande importância deste elo.

Compartilhamos do ponto de vista ora sustentado por Ingo Wolfgang, no sentido de que o princípio da dignidade da pessoa humana vem sendo considerado fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais. Por derradeiro, há de se afirmar que estes constituem concretizações e desdobramentos daquele[11].

Contudo, não se deve levar este posicionamento a extremos indesejáveis. O próprio Ingo Wolfgang defende que o princípio da dignidade da pessoa humana não pode ser entendido como um autêntico direito fundamental autônomo, apesar de suas importantes funções, seja como elemento referencial para a interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, seja como elemento legitimador para deduzir outros direitos fundamentais não expressos na Carta Magna.

Esta constatação não reduz o grau de importância que a dignidade da pessoa humana apresenta no nosso ordenamento jurídico. Com o reconhecimento expresso de tal princípio como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático e Social de Direito (art. 1º, III, CF), o Constituinte de 1987/88 reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, visto que o homem constitui a finalidade precípua e não meio da atividade estatal.

Como se não bastasse, o princípio em questão consubstancia-se como limite e, ao mesmo tempo, tarefa da atividade estatal[12]. Tanto é assim que, considerando a dimensão individual do ser humano, a dignidade, sendo necessariamente algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, assume a feição de escudo protetor da integridade física e corporal do cidadão. Já numa outra dimensão, a social, "consiste na garantia de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua família."[13]

Nessa sólida linha de raciocínio, é óbvio, mas não custa nada afirmar que, não há verdadeira dignidade sem habitação, sem morada, sem um lar. Vislumbra-se, assim, o direito à moradia como um elemento concretizador do princípio da dignidade da pessoa humana.

Certamente, a vida não teria muita importância se o Estado, anteriormente, não criasse condições materiais que satisfizessem as necessidades vitais do indivíduo, quais sejam os direitos à habitação, à alimentação, à saúde e à educação.

Em razão do seu caráter existencial e expressão do próprio direito à vida, o direito à moradia ocupar lugar similar ao direito à alimentação. Morar é uma das mais essenciais atividades inerentes ao ser humano. Todas as civilizações construíram suas casas de habitação, fossem elas iglus, tendas ou ocas. Por esse mesmo motivo, dizemos que a moradia constitui-se como essência do próprio indivíduo.

No concernente ao seu conteúdo, cumpre, em caráter preliminar distinguir o direito à moradia do direito à propriedade. Para tanto fazemos uso das palavras de Ingo Wolfgang:

"[...] o direito à moradia não se confunde com o direito de propriedade (e do direito à propriedade). Muito embora a evidência de que a propriedade também possa servir de moradia ao titular e que, para além disso, a moradia (na condição de manifestação da posse) acaba, por expressa previsão constitucional e em determinadas circunstâncias, assumindo a condição de pressuposto para a aquisição da propriedade (como ocorre no usucapião constitucional), atuando, ainda como elemento indicativo do cumprimento da função social da propriedade, o direito à moradia, convém frisá-lo, é direito fundamental autônomo, com âmbito de proteção e objeto próprios. Como direito autônomo, a definição do conteúdo (objeto) do direito à moradia não pode, de modo especial por força da sua vinculação à dignidade da pessoa humana, prescindir de parâmetros qualitativos mínimos para uma vida saudável [...]."[14]

Definir o direito à moradia não é tarefa fácil, vez que não há norma jurídica que o tenha feito, quer em nível constitucional, quer infraconstitucional. Porém, manifestemo-nos, aqui, no sentido de que a omissão constitucional não pode ser utilizada como alavanque para inação do Poder Público, como veremos no momento oportuno.

Ainda que o nosso legislador constituinte tenha se referido ao direito à moradia de forma genérica, desacompanhada de qualquer adjetivo, há que considerar os parâmetros mínimos indispensáveis para uma vida saudável, justamente aqueles que propiciam uma moradia digna.

Sustentamos aqui tratar-se de uma moradia digna quando de acordo com as condições mais elementares que uma pessoa necessita para a sua sobrevivência, como luz, água e saneamento básico. Uma construção resistente que proteja as pessoas do tempo e das suas variações previsíveis, que garanta aos seus moradores privacidade e tranqüilidade, bem como o acesso aos locais de trabalho e lazer, aos equipamentos urbanos e comunitários, ao transporte e aos serviços públicos projetados de acordo com os interesses da população, mediante uma gestão democrática e respeitando-se o princípio do desenvolvimento sustentável.

Em resumo, o direito à moradia é o direito básico de ter onde morar, de identificar um local como lar, seja ele (ou não) de propriedade do morador.

Portanto, resta inequívoco o caráter fundamental de um direito à moradia, designadamente naquilo em que integra um direito às condições mínimas para uma existência humana digna.

3.3. Dimensões defensiva e prestacional do direito à moradia

Antes de entrar no exame desta questão, alguns esclarecimentos preliminares devem ser feitos.

Seguindo a lição de Robert Alexy, dos enunciados de normas jurídicas podem advir várias posições jurídicas, quais sejam, direitos e deveres, de diversa natureza que englobam prestações bastante diferenciadas entre si quanto ao objeto[15]. "Assim, de um mesmo enunciado normativo poderá surgir uma prestação de abstenção de diante outrem e uma prestação de alguém diante de outrem"[16] (grifo nosso).

Tem razão Ana Cristina Meireles quando afirma que o conceito de direito subjetivo tem a ver com esta intersubjetividade, de maneira que se pode defini-lo como "a situação jurídica em que se encontra um sujeito a quem é devida uma prestação por outrem. Prestação, aqui, há de ser entendida como uma conduta humana, qualquer que seja ela, de dar, fazer ou não fazer".[17]

Todavia, na tentativa de identificar que tipo de prestações advém de enunciados normativos, por mais claros que eles sejam, se faz necessário recorrer à interpretação que possui evidente caráter construtivo.

Destarte, só a título de exemplo, quando se fala que a segurança é um direito social, o que em verdade se está querendo dizer? Qual é a prestação que daí é advinda? Em verdade, dizer que a segurança é um direito social significa que ela é um bem jurídico tutelado numa norma de direito social.

O mesmo se pode fazer com todos os bens jurídicos descritos no art. 6º e que devem ser tutelados, ao menos prima facie, pela ordem jurídica.[18]

Aliás, o citado jurista vai mais além. Ele entende "que os direitos a algo advindo de direitos fundamentais são direitos perante o Estado (que será, assim, nessa sua perspectiva, sempre o sujeito passivo) e os subdivide em direitos a ações negativas – direitos de defesa – e direitos a ações positivas."

No particular, adentrando no mérito deste item, comungamos com a afirmativa de ser o direito à moradia um complexo de direitos e deveres que assumem a condição defensiva (negativa) e prestacional (positiva) concomitantemente.

Neste mesmo sentido, pronuncia-se Ingo Wolfgang Sarlet, ao colocar como pressuposto teórico do seu estudo sobre o direito social da moradia o fato de que

"[...] o direito à moradia exerce simultaneamente a função de direito de defesa e direito à prestações, incluindo tanto prestações de cunho normativo, quanto material (fático) e, nesta dupla perspectiva, vinculada as entidades estatais e, em princípio, também os particulares [...]"[19] (grifo nosso).

Assim, a princípio pode-se dizer que o direito à moradia, na sua dimensão defensiva, como bem jurídico fundamental que é, encontra-se protegido contra toda e qualquer agressão de terceiros.

Por este viés, tanto o Estado quanto os particulares têm o dever jurídico de respeitar e de não afetar a moradia das pessoas, de forma que toda e qualquer medida que atinja e viole o direito à moradia é passível de ser impugnada em Juizo, seja na esfera do controle difuso e incidental, seja por meio do controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, ou mesmo por intermédio dos instrumentos processuais específicos disponibilizados pela ordem jurídica.[20]

Imaginemos a hipótese de uma prefeitura que resolve construir uma praça para homenagear um artista local ali colocando um busto de bronze e, para tanto, terá que desapropriar várias casas e desalojar famílias de suas respectivas moradias. Mesmo não havendo aqui um detalhamento de todas as circunstâncias do caso concreto, até porque ele é imaginário, é claro que não trata-se de um ato razoável. De sorte, partindo-se do pressuposto que já houve a ponderação e viu-se que a medida tomada (construção da praça com desapropriação de casas residenciais) é claramente desproporcional em relação ao bem atingido: moradia de várias famílias.

Esta conclusão se perfaz porque todo cidadão tem o direito a não ser afetado, por qualquer conduta do Estado, em seus bens jurídicos constitucionalmente tutelados. Caso a conduta proibida venha a se efetivar, qualquer cidadão pode contra ela se opor, utilizando-se dos meios citados acima.

Ainda no contexto da sua condição de direito de defesa, impõe-se o registro da proteção do direito à moradia contra um retrocesso por parte do legislador. Utilizando-se do princípio da proibição de retrocesso, num sentido mais amplo do que o tradicional, poder-se-á sustentar que o direito à moradia, notadamente pela sua estreita vinculação com a dignidade da pessoa e o direito à vida, não poderá mais ser suprimido do texto da Carta Magna por meio de emenda constitucional, nem a ser objeto de restrição –igualmente no bojo de uma reforma constitucional, que venha a atingir o núcleo essencial do direito à moradia. Deste modo, passa a integrar o elenco dos limites matérias da nossa Constituição.[21]

Voltando-nos agora, embora sumariamente, a questão do direito à moradia na sua dimensão prestacional, lançamos mão da seguinte pergunta: o titular do direito em tela , com base nas normas constitucionais que lhe asseguram este direito, pode exigir do poder público alguma prestação material que venha a lhe certificar uma habitação compatível com as exigências de uma vida digna?

Oferecer uma resposta adequada a tal pergunta já reclamaria bem mais do que um singelo artigo para o seu adequado enfrentamento. Esta problemática apresenta uma série de questões jurídicas e metajurídicas conexas que suscita a elaboração de um trabalho mais minucioso.

Não obstante, convém lembrar que é justamente neste aspecto que os direitos sociais – e o direito à moradia em especial- têm sido enquadrados na categoria das normas constitucionais programáticas ou impositivas de programas, fins e tarefas a serem realizadas pelo Estado (tema que mais tarde será nosso objeto de estudo). Posição esta que ainda parece refletir a doutrina dominante.

Sem que aqui se pretenda adentrar nesta instigante discussão, não há como negar a fundamentalidade e eficácia do direito à moradia. Ora, sem dúvida alguma, o direito à moradia, com a sua perspectiva prestacional, impõe ao poder público a tarefa de atuar positivamente na promoção, proteção e concretização das metas que possibilitem assegurar uma moradia com as exigências da dignidade da pessoa humana.

Obviamente que não podemos desconsiderar alguns aspectos importantes para a realização destas condutas, de modo especial o fato de que estas estão condicionadas à disponibilidade de recursos e ao princípio da reserva do possível.

Em verdade, o Estado cuida desta problemática com pouca significância, imprimindo uma série de obstáculos para promoção de políticas públicas que permitam o acesso à moradia da classe menos favorecida.

Por derradeiro, no que tangeesta problemática, entendemos como razoável a solução encontrada por Ingo Wolfgang

"[...] o problema apenas poderá ser equacionado à luz das circunstâncias do caso concreto e do direito fundamental específico em pauta, sendo indispensável a ponderação (hierarquização) dos bens e valores em conflito."[22]

6. Conclusão

Conforme nosso entendimento, os direitos sociais estabelecidos em lei (art. 6º, CF) trazem em seu bojo uma finalidade de ordem econômica-social, tendo em vista o seu caráter de justiça social, a fim de, concomitantemente, assegurar a todos, uma existência decente e coordenar mecanismos voltados para a melhoria da ordem econômica.

Nesta esteira, cabível ressaltar a importância do direito de moradia. Sem um lugar adequado para proteger-se a si próprio e a sua família, sem um local para o indivíduo gozar de sua intimidade e privacidade, certamente não há como proclamar a essência do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF),[23] vez que este reclama a satisfação das necessidades básicas para uma vida digna.

Por este viés, torna-se inquestionável que o direito à moradia é a célula básica, a partir da qual se desenvolvem os demais direitos do cidadão já reconhecidos pelo legislador constituinte, quais sejam, o direito à igualdade, à liberdade, à segurança e, principalmente, à vida.A idéia de moradia não se associa apenas à concepção de mero abrigo, mas a um conjunto de elementos ligados ao saneamento básico, serviços urbanos, educação e saúde.



[1] COSTA MEIRELES, Ana Cristina. A eficácia dos direitos sociais. Salvador: JusPodvim, 2008.p.38.

[2]SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais.4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 55.

[3] BRITO, Edvaldo. Reflexos jurídicos da atuação do Estado no domínio econômico apud COSTA MEIRELES, Ana Cristina. A eficácia dos direitos sociais. Salvador: JusPodvim, 2008.p.42.

[4] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. Cit., p. 55.

[5]COSTA MEIRELES, Ana Cristina. A eficácia dos direitos sociais, op. Cit., p. 41.

[6] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. P. 346

[7] BUERGENTHAL, Thomas. Protecting human rights in the Americas-cases and materials apud PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 169.

[8] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, op. Cit., p.168.

[9] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, op. Cit., p. 80.

[10] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. Cit., p. 107.

[11] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. Cit., p. 123.

[12] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. Cit., p. 113.

[13] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. Cit., p. 118.

[14] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. Cit., p. 324.

[15] ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. IN: COSTA MEIRELES, Ana Cristina. A eficácia dos direitos sociais. Salvador: JusPodvim, 2008. p. 375.

[16] COSTA MEIRELES, Ana Cristina. A eficácia dos direitos sociais, op. Cit., p. 375.

[17] COSTA MEIRELES, Ana Cristina. A eficácia dos direitos sociais, op. Cit., p. 375.

[18] ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. IN: COSTA MEIRELES, Ana Cristina. A eficácia dos direitos sociais. Salvador: JusPodvim, 2008. p. 383.

[19] SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: Arquivos de Direitos Humanos, Vol. 4. Organizadores: MELLO, Celso de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo. São Paul- Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

[20] SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: Arquivos de Direitos Humanos, Vol. 4. Organizadores: MELLO, Celso de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo. São Paul- Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 140 e ss.

[21] SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: Arquivos de Direitos Humanos, Vol. 4. Organizadores: MELLO, Celso de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo. São Paul- Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P. 140 e ss.

[22] SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: Arquivos de Direitos Humanos, Vol. 4. Organizadores: MELLO, Celso de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo. São Paul- Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 149 e ss.

[23]BRASIL. Constituição de 1998. Título I. São Paulo: Ridel, 2007.