¹ Licenciada em Letras Vernáculas pela Uneb - Universidade do Estado da Bahia

  Bacharelanda em Direito pela Uneb - Universidade do Estado da Bahia.

 

² Bacharelando em Direito pela Uneb - Universidade do Estado da Bahia.



1. INTRODUÇÃO:

 

Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez (grifo nosso).

 

A norma contida no art. 1.520 do Código Civil Brasileiro (Lei 10.406, de
10-1-2002), oferece hipótese de extinção da punibilidade penal nos casos de estupro de vulnerável, através do casamento entre “vítima” e agente.

A Lei 11.106/2005 revogou expressamente os incisos VII e VIII do art.107 do Código Penal, nos quais se lia que:

         

Art. 107 - Extingue-se a punibilidade:

“VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código”;

“VIII - pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contra da celebração”.

O presente artigo se propõe a analisar se a extinção da punibilidade prevista no art. 1.520 CC permanece válida após a vigência da Lei 11.106/2005, já que esta veio a revogar os incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal.

É possível resumir a questão à seguinte hipótese: No caso de alguém relacionar-se sexualmente com pessoa vulnerável, menor de 14 anos (art. 217-A CP), e, não mais constando o casamento entre vítima e agente das hipóteses de afastamento da punibilidade penal previstas no art. 107 CP (alterado pela lei 11.106/05), encontrar-se-ia o art. 1.520 do C.C. revogado parcialmente, especificamente na parte referente à extinção da pena criminal?

Vale ressaltar que o objeto do presente artigo encerra questão de difícil resposta, fomentadora de controvérsias na doutrina e jurisprudência brasileiras, englobando reflexos da mudança do código penal no direito de família e encerrando princípios constitucionais e institutos relativos a vários micro-sistemas (penal, constitucional, civil), motivo pelo qual as respostas advindas de sua análise revestem-se de grande importância.

Dito isto, passemos a análise da questão aqui proposta.

 

EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

 

Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci, Extinção da Punibilidade “É o DESAPARECIMENTO da pretensão punitiva ou executória do Estado, em razão de específicos obstáculos previstos em lei”. O art. 107 do Código Penal traz um rol de causas de extinção da punibilidade, devendo-se observar que se trata de enumeração meramente exemplificativa, já que existem diversas outras causas de extinção previstas na Parte Especial do código, assim como em leis penais especiais. Podemos encontrar um exemplo do aqui afirmado no art. 34 da Lei 9.249/95 que alterou a legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas, bem como da contribuição social sobre o lucro líquido, onde temos que o pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia, nos crimes de sonegação fiscal, é causa extintiva da punibilidade.

 

 

A LEI 11.106/05 E A ALTERAÇÃO DO ART. 107 DO CÓDIGO PENAL

 

            A Lei 11.106, de 28 de março de 2005, procedeu à alteração e revogação de diversos artigos do Código Penal, sobretudo em relação aos crimes contra os costumes (atualmente crimes contra a dignidade sexual), constando de seu texto:

 

Art. 5o Ficam revogados os incisos VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o inciso III do caput do art. 226, o § 3o do art. 231 e o art. 240 do Decreto-Lei .2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.”. (grifo nosso).

            Como se vê, ocorreu a revogação de duas causas extintivas da punibilidade constantes dos incisos VII e VII do art. 107 CP, conforme abaixo:

“VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código”

“VIII - pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contra da celebração”.

 

ART. 1520 DO CÓDIGO CIVIL

            Reza o art. 1.520 do Código Civil Brasileiro:

Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez.(grifo nosso).

            Na visão de grande parte da doutrina, a revogação dos incisos VII e VIII acima descritos, a princípio, teria importado na revogação parcial do art. 1.520, especificamente em relação à parte em que é afastada a imposição ou cumprimento de pena criminal, sob a alegação de que os incisos e o artigo em questão seriam conexos.

 

 

Em suma, a partir da revogação desses incisos, o casamento não mais seria uma forma de extinção da punibilidade no caso da prática do crime de estupro de vulnerável, encontrando-se o artigo civilista em comento revogado parcialmente (restaria vigente apenas em relação à possibilidade de casamento de pessoa que não alcançou a idade núbil no caso de gravidez).

            Contrariamente ao juízo acima exposto, parte minoritária da doutrina penal e civilista, com a qual concordamos, entende que a Lei 11.106/2005 não teria revogado a extinção de punibilidade prevista no art. 1.520 do Código Civil. Passemos então a análise dos argumentos referentes a este posicionamento.

 

LC 95/98 E A NECESSIDADE DE REVOGAÇÃO EXPRESSA

            A Lei complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, alterada pela Lei complementar nº 107, de 26 de abril de 2001, trouxe regra referente à atividade legislativa, determinando que toda revogação legal deva ser expressa. Tal imposição encontra-se prevista em seu art. 9º, onde se lê:

“Art. 9° - A cláusula de revogação deverá enumerar expressamente as leis ou disposições legais revogadas”.

Por resultado, teríamos o choque entre a Lei Complementar 95/1998 e a Lei de Introdução do Código Civil, já que esta prevê a revogação tácita, o que seria incompatível com a determinação do art. 9º acima transcrito.

Entendeu-se em um primeiro momento que, nas situações em que disposições legais devam perder a eficácia (incompatibilidade superveniente), não caberia presunção e sim expressa declaração, ou seja, o legislador deveria indicar obrigatoriamente todas as disposições que perderam a vigência, tornando extinto o habitual “Revogam-se as disposições em contrário”. Em suma, se uma nova Lei não traz expressamente a revogação de dispositivo então vigente, este não poderia ser considerado revogado, ainda que houvesse incompatibilidade entre ambos.

 

 

Baseados nesta prerrogativa legal poder-se-ia argumentar a vigência completa do art. 1.520 C.C., mantendo-se a extinção da punibilidade ali prevista, sob o argumento de que a Lei 11.106/2005 não revogou expressamente o dispositivo civil. Tal entendimento, no entanto, revela-se equivocado.

Apesar da previsão do art. 9º da Lei Complementar em comento não há que se falar em extinção da revogação dita “tácita” de nosso sistema jurídico, pois neste jamais poderiam coexistir duas normas incompatíveis, simplesmente porque a mais recente calou-se acerca dos dispositivos ou leis revogados. Existem em nosso ordenamento inúmeros exemplos de incompatibilidades normativas que trazem imperativamente a necessidade de revogação tácita, sob pena de ocorrerem verdadeiras “aberrações” jurídicas. Como um dos muitos exemplos referidos podemos citar um trazido pelo jurista Roberto Pamplona Filho, referente ao conflito entre a Lei 9.957/2000 que instituiu o rito sumaríssimo trabalhista, obrigando a sua observância nas causas cujo valor não exceda a 40 salários mínimos e a Lei nº 5.584/70 que previa instância única para causas até 2 salários mínimos. Nas palavras do douto magistrado: “Como a nova regra admite recursos, há entendimento de que não há como compatibiliza-las.”.

Dito isto, podemos afirmar que, em verdade, a LC 95/98 e a LICC coexistem em harmonia. A primeira preconiza a revogação expressa dos dispositivos legais, enquanto a segunda supõe os outros casos possíveis de revogação, evitando-se situações indesejáveis de conflito legal que acabariam por tornar inviável todo o sistema jurídico. Resumidamente, a imperatividade da LC 95/98 encontra-se mitigada, porque encontra na LICC norma subsidiária para os casos de inobservância de seu art. 9°.

Logo, o fato da lei 11.106/2005 não ter revogado expressamente o art. 1520 do CC, não serve como argumento para defesa da tese de que este permanece vigente em sua totalidade.

 

 

NATUREZA DA AÇÃO

            Outra linha de argumentação muito utilizada até recentemente referia-se a natureza da ação em relação aos crimes que poderiam ter sua punibilidade extinta, abarcados pelas situações previstas nos extintos Incisos VII e VIII do art. 107. Nos casos de estupro presumido (atualmente estupro de vulnerável), a ação a ser impetrada possuía natureza privada, logo o casamento da “vítima” com o agente importava obviamente em renúncia ou perdão tácito, já que o matrimônio era incompatível com o desejo de punição do autor do crime.

            No entanto, com o recente advento da Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009, que trouxe nova redação ao artigo 225 do CP, temos que a natureza da ação penal nos crimes definidos nos arts. 213 a 218-B passou, em regra, a ser pública condicionada à representação, exceção feita aos menores de 18 anos e vulneráveis (menores de 14 anos), sendo a ação, nestes casos, pública e incondicionada.

            Portanto, as ações referentes a tais crimes após o advento da Lei 12.015/09 não mais possuem natureza de ação penal de iniciativa privada, salvo se de forma subsidiária da pública. Portanto não há que se falar em renúncia ou perdão tácito, não sendo mais a natureza da ação argumento válido á manutenção da extinção da punibilidade prevista no art. 1.520 do C.C em relação ao crime de estupro de vulnerável.

 

INCISOS VII E VIIICORRENTES DOUTRINÁRIAS

          Voltemos a analise dos incisos revogados:

“VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código”

“VIII - pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contra da celebração”.

 

Essas hipóteses de abolição da punição penal estatal presentes de longa data em nosso ordenamento (já eram previstas no Código Penal de 1.940 (artigo 108, incisos VIII e IX) e no Código Penal Republicano de 1.890 (artigo 276, parágrafo único), tem sua origem e sentido interpretados de forma dúbia. Para parte da doutrina (mais tradicional) o principal objetivo seria incentivar a “reparação do dano”. Já para uma 2ª. corrente (mais moderna), sob a luz da interpretação constitucional dos direitos penal e civil, o objetivo primordial seria o de preservação da família.

Entende a 1ª. Corrente que os dispositivos revogados são oriundos de uma época em que a sociedade brasileira vivia sob a égide de outros costumes, diferentes dos atuais, interessando “desesperadamente” aos pais casar as filhas que “cometeram um mau passo”, escondendo a “vergonha” da donzela “deflorada” atrás da sacramentalidade do matrimônio. O casamento de pessoas extremamente jovens (abaixo da idade núbil) era permitido em face do interesse dos pais em casar suas filhas, a fim de preservar sua honra. Segundo a douta Maria Helena Diniz "Nessas hipóteses, o magistrado, para coibir a desonra, ou pôr termo ao processo criminal, supre a idade da menor, ordenando, conforme as circunstâncias, a separação de corpos até os cônjuges alcançarem a idade legal ( CC, art. 214, parágrafo único), e impondo a separação de bens, que é nesse caso, o regime obrigatório ( CC, art. 258, parágrafo único, IV).”. Vale ressaltar que a separação de corpos constava do Código de 1916. Com o Código Civil de 2002, o magistrado não precisa ordenar tal separação.

Resumindo a visão da tradicionalista corrente, a necessidade premente de limpar a honra da ex-donzela maculada pelo crime impunha a reparação através do matrimônio, o que só poderia ser alcançado através da extinção da punibilidade.

            A 2ª. Corrente entende, à luz dos princípios e direitos fundamentais presentes na Constituição Federal da República Federativa do Brasil, que a extinção da punibilidade presente nos citados incisos possuía a motivação principal de proteção à família. Essa linha de entendimento configura-se num dos principais argumentos daqueles que entendem ainda vigorar a extinção da punibilidade prevista no artigo 1.520 do C.C. em relação aos crimes de estupro contra vulnerável.

Passemos então a analise mais detalhada do argumento jurídico de proteção á família prevista em sede constitucional, como imperativo incidente no direito penal e civil em relação ao tema objeto do presente artigo.

 

MANUTENÇÃO DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE À LUZ DA CONSTITUIÇÃO

A Constituição federal de 1988 abarcou todos os grandes temas sociais, relevantes juridicamente, como forma de garantir-lhes efetividade. Tratando-se da Lei Maior é forçoso a todo e qualquer operador do direito ler e interpretar os diversos micro sistemas do direito pátrio (penal, civil, etc.) à luz da Constituição. O direito brasileiro constitucionalizou-se, devendo a consideração de qualquer norma (ou seu afastamento) obedecer a fundamentos de validade constitucionais. Deste modo, a forma com que criamos, estudamos, interpretamos e aplicamos as normas de nosso ordenamento foram alterados em face da promulgação da CF/88, sendo esta caracterizada como uma carta de princípios que trás em seu bojo toda uma gama de direitos e garantias fundamentais que devem ser dotados de eficácia. Nas palavras de Flávia Piovesan: “Acima das regras legais, existem princípios que incorporam as exigências de justiça e valores éticos que constituem o suporte axiológico, conferindo coerência interna e estrutura harmônica a todo o sistema jurídico.”. A Constituição, ao eleger determinados princípios e alçando determinados direitos à categoria de direitos fundamentais, está na verdade afirmando valores, que deverão irradiar-se sobre todo o ordenamento e atividade judiciários, implicando pois em uma valoração de ordem objetiva. Em face disto, os Juízes têm o dever de dotar da maior eficácia possível os direitos fundamentais.

Em seu art. 226 a Lei Maior declara a família como pedra angular da sociedade e como objeto especial de proteção do estado, elegendo o casamento, civil ou religioso, como instituição base para sua formação. Logo, se a Constituição afirma que a família deve vista e protegida dentro de um contexto social, sendo reconhecida como imprescindível à própria existência da sociedade, seria possível até mesmo questionar-se acerca da constitucionalidade ou não da revogação dos incisos penais em comento. Ou seja, tratando-se de hipóteses de exclusão do jus puniendi estatal ligadas a proteção da entidade familiar, sua revogação poderia ser considerada até mesmo inconstitucional.

 

Porém, para além das discussões acerca da constitucionalidade ou não da revogação trazida pela Lei 11.106/2005, o fato é que à luz da Constituição federal e da imperativa necessidade de proteção à família ali prevista, para parte da doutrina, com a qual concordamos, o art. 1.520 do Código Civil permanece vigente em sua totalidade, permanecendo válida a hipótese de extinção da punibilidade ali prevista, ainda que revogados os incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal. No crime aventado no presente artigo, estupro de vulnerável, em face do direito a família e à sua proteção previstos em sede constitucional nada mais lógico do que, em determinadas situações, afastar o peso da punição penal estatal daqueles que cometeu um crime sexual, se a posteriori a própria “vítima” como ele pretendeu casar-se.

Além disso, devemos lembrar que o Direito Penal se caracteriza como a ultima ratio, ou seja, não deve interferir mais do que o estritamente necessário na vida dos indivíduos. Em outras palavras, o direito penal não deve ser utilizado como a primeira opção para solução dos conflitos sociais, existindo diversos outros ramos do Direito aptos a solucionar/inibir conflitos existentes em sociedade. No caso do Art. 1.520 CC, há de se perguntar se, consistindo o Direito Penal na ultima ratio e já estando presente a paz social, seria correto considerar revogada a extinção de parte do artigo (“... para evitar a imposição ou cumprimento de pena criminal...”) encaminhando-se o agente para prisão? É importante que se faça essa reflexão a vista de cada caso concreto. Vejamos um exemplo trazido por Flavio Tartuce:

“... imagine-se o caso de uma menina de 13 anos que teve relacionamento sexual com um homem de 18 anos e com ele ficou grávida. O pai da criança não tem qualquer antecedente criminal e a menor quer casar com o criminoso a qualquer custo. Ambos se amam.”.

Em tal situação, como deve o operador do direito proceder? Deve entender que houve ou não a revogação parcial do art. 1.520 CC, em referência ao excludente de punibilidade ali previsto?

Caso considere o artigo parcialmente revogado o casamento não será possível e o pai da criança será enviado para a prisão, ficando a jovem e seu filho, muito provavelmente, desassistidos. Aqui vale também refletir que, sendo a vontade da “vítima” a de casar com o “agressor”, esta certamente manterá contato com o mesmo, indo visitá-lo na cadeia, constituindo verdadeira União Estável, fato este mais do que provável em face da situação colocada. Então haveremos inevitavelmente que questionar se seria esta a solução ideal do ordenamento para atingir a paz e equilíbrios sociais. Manter o pai longe do filho e da mulher (que deseja viver com o mesmo em matrimônio) certamente está longe de ser uma situação ideal.

Fica claro no caso em tela, em face ao fato de que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, do Direito buscar sempre a harmonização e pacificação sociais, da função social da família ser reconhecida em nível constitucional e principiológico e acrescentando-se como apoio a nosso entendimento o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (best interest of child), o casamento e a extinção da punibilidade seriam a única solução desejável. Pela possibilidade de ocorrência de casos da espécie e em respeito a constituição e os valores abarcados e garantidos pela Lei maior que entendemos que a exclusão de punibilidade prevista no art. 1.520 do CC deve ser considerada como não revogada. Neste caso, a ponderação de princípios e uma interpretação sistemológica nos leva indubitavelmente a uma mitigação do direito penal em função do direito de família.  

Aqui se faz necessária importante observação em relação ao objeto do presente artigo. O que se defende aqui, em confluência com o entendimento de alguns penalistas e civilistas como Luiz Augusto Zamumer e Flavio Tartuce, para citar alguns, não é a aplicação da exclusão de punibilidade presente no art. 1.520 CC na totalidade dos casos, mas a manutenção deste dispositivo, ainda que modificado o art. 107 do CP, para que se proceda à sua aplicação ou não de acordo com a análise de cada caso concreto. Conforme lembra Tartuce, “Por certo é que muitas situações que ocorrem na prática não são românticas como a aqui descrita...”.

JURISPRUDÊNCIA - STF

No campo jurisdicional, a mais alta corte deste país em julgado referente ao Recurso Extraordinário 418376 MS entendeu pela não extinção da punibilidade penal em caso semelhante ao aqui relatado, caracterizado pela constituição de união estável entre o autor e a vítima.

 

Penal. Recurso Extraordinário. Estupro. Posterior Convivência Entre Autor e Vítima. Extinção da Punibilidade com Base no Art. 107, VII, do código Penal. Inocorrência, no Caso Concreto. Absoluta Incapacidade de Autodeterminação da Vítima. Recurso Desprovido.

EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE: ESTUPRO DE VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS E UNIÃO ESTÁVEL - 2

Em conclusão de julgamento, o Tribunal, por maioria, negou provimento a recurso extraordinário em que se discutia a possibilidade de se aplicar a regra prevista no inciso VII do art. 107 do CP em favor de condenado por estupro, que passou a viver em união estável com a vítima, menor de quatorze anos, e o filho, fruto da relação (CP: ?Art. 107. Extingue-se a punibilidade:... VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes...?). Entendeu-se que somente o casamento teria o condão de extinguir a punibilidade, e que a união estável sequer poderia ser considerada no caso, haja vista a menor ser incapaz de consentir. Ressaltaram-se, também, as circunstâncias terríveis em que ocorrido o crime, quais sejam, o de ter sido cometido pelo tutor da menor, e quando esta tinha nove anos de idade. Asseverou-se, por fim, o advento da Lei 11.106/2005, que revogou os incisos VII e VIII do art. 107 do CP. Vencidos os Ministros Marco Aurélio, relator, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence que davam provimento ao recurso para declarar a extinção da punibilidade, reconhecendo a união estável, e aplicando, por analogia, em face do art. 226, § 3º da CF, o inciso VII do art. 107 do CP, tendo em vista o princípio da ultratividade da lei mais benéfica.

RE 418376/MS, rel. orig. Min. Marco Aurélio, rel. p/ acórdão Min. Joaquim Barbosa, 9.2.2006. (RE-418376)

Vale destacar que o julgado sob comento jamais poderia ter chegado a uma conclusão diferente já que o crime foi cometido contra uma menor de apenas 9 anos de idade, não sendo possível falar-se em excludente de punibilidade já que não existe capacidade para consentir em uma criança. A manifestação da vontade de uma criança em tais casos não é juridicamente relevante. Mas, tendo adentrado no assunto, cabe aqui aprofundar-nos um pouca acerca da temática relativa ao consentimento do ofendido.

 

 

ASPECTO TEMPORAL DO CONSENTIMENTO DO OFENDIDO

Importante aspecto jurídico se dá em relação a existência ou não do consentimento do ofendido, para que se possa formar o Juízo de tipicidade. É ponto pacífico na doutrina que, em certos casos, o consentimento da vítima irá influenciar este Juízo. Havendo concomitantemente a discordância do sujeito passivo (expressa ou implicitamente) como elemento do tipo penal e consentimento para realização da conduta, a tipicidade deve ser afastada. No entanto, para que se possa reconhecer a excludente e absolver o réu por ausência de ilicitude de conduta é indispensável a presença de determinados requisitos e dentre eles encontra-se a existência da capacidade para consentir. É necessário observar que não há em nosso ordenamento idade legal para que o consentimento seja dado. Autores de escol como Guilherme Nucci entendem ser razoável estabelecer um limite a partir da idade penal, ou seja, 18 anos. Em seu entender, estando apto a responder por seus atos criminalmente, naturalmente o maior de 18 anos também se encontra apto para decidir a cerca de seus interesses. Porém, mesmo defendendo este limite extra legal, o próprio Nucci reconhece que a capacidade de consentimento não pode ser definida a partir de um marco inflexível (18 anos), ponderando que mesmo um menor, de 17 anos, por exemplo, possui discernimento para ponderar a cerca de algum bem/interesse.

Aqui faremos um novo exercício de análise de um caso concreto. Imaginemos que a jovem do caso acima descrito não só tivesse 13 anos, mas 13 anos e 11 meses. Como vimos, a situação apresentada enquadra-se no crime de estupro de vulnerável (art. 217- A). Aqui importante discussão se daria em razão da vulnerabilidade da vítima, discutindo-se se esta possuiria caráter absoluto ou relativo, questionando a existência ou não de capacidade para consentir.

ESTUPRO DE VULNERÁVEL – VULNERABILIDADE ABSOLUTA X VULNERABILIDADE RELATIVA

A partir da vigência da Lei 12.015/09 ocorreu a expressa revogação do art. 224 do Código Penal, onde eram arrolados os casos onde caberia presunção de violência, criando-se a figura do “estupro de vulnerável”. Atente-se que tal opção legislativa afastou a necessidade de uso de violência, utilizando-se de critérios biológicos e psicológicos para a caracterização da vulnerabilidade. Neste caso, o pressuposto é o de que o vulnerável não possui capacidade para assentir. No exemplo em comento, sendo o requisito de vulnerabilidade a idade inferior a 14 anos da menor, até mesmo a alegação de consentimento seria irrelevante, frente à “vulnerabilidade da vítima”. Contudo, conforme anteriormente afirmado, é necessário indagar-se acerca do caráter absoluto conferido a vulnerabilidade.

Como dito, a legislação pretérita previa a violência presumida contra menor de 14 anos, ocorrendo uma interminável discussão acerca de seu caráter relativo ou absoluto. Entendemos que apesar da criação do novo tipo penal (estupro de vulnerável) prossegue a discussão referente à presunção de violência transportada à vulnerabilidade, sendo tal tema perfeitamente abarcado pelo caso em tela. A menor encontra-se a um mês da idade escolhida pelo legislador como “ponto de corte” definidor da vulnerabilidade. Deve a vulnerabilidade ser encarada como critério unicamente objetivo, deixando de se analisar os elementos subjetivos do caso concreto? O novo tipo penal deve tornar casos como o em tela “hermeticamente” fechados à realidade, ao mundo real? Acreditamos que não. Além disso, a alegação por parte do jovem e a confirmação da menor de que consentiu na prática realizada poderia evitar o enquadramento do crime de estupro de vulnerável por parte de um Magistrado que entenda ser a falta de consenso elemento inafastável para caracterização de toda e qualquer lesão à liberdade sexual.

Por esse prisma, pode-se afirmar que a vulnerabilidade deve ser relativizada em alguns casos especiais. Utilizando-se a situação presentemente estudada: existirá diferença no grau de conscientização para a prática sexual por parte da menor num curto período de 30 dias? Por certo que não. Por isso, entendemos que neste caso deve-se ir além do elemento objetivo (menor de 14 anos), buscando o operador do direito inteirar-se dos elementos subjetivos (houve consentimento? houve prática sexual anterior por parte da menor? qual o seu grau de conscientização? E o do jovem agente?). Podendo-se, apenas após sua análise, afirmar se houve ou não, efetivamente, o delito sob comento.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo quanto acima exposto podemos afirmar que, apesar da revogação dos incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal Brasileiro, trazida pela Lei 11.106/2005, o art. 1.520 CC não se encontra parcialmente revogado, mantendo-se válida a hipótese de exclusão de punibilidade prevista naquela norma.

Por fim, necessário se faz reforçar que o presente artigo não prega a aplicação da exclusão de punibilidade prevista no dispositivo civil em comento em todo e qualquer suposto crime de estupro de vulnerável, mas apenas propaga a necessidade de manutenção do dispositivo, pois a aplicação do mesmo se faz necessária em alguns casos, como nos aqui exemplificados. A outra conclusão não poderíamos chegar, seja em respeito aos princípios e direitos fundamentais constitucionais voltados à proteção da família, a busca inafastável pela harmonia e paz sociais que deve nortear o Direito assim como da vocação do Direito Penal como última hipótese para a solução de conflitos.

 

Referência Bibliográfica:

-        Julio Fabbrini Mirabete/Renato N. Fabbrini, Manual de Direito Penal, 22ª. Ed., São Paulo, Atlas 2007;

-        Guilherme de Souza Nucci, Manual de Direito Penal, 5ª. Ed, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009

-        Flavia Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional.2 ed. São Paulo: Max Limonad, 1997;

-        Uadi Lammêgo Bulos, Curso de Direito Constitucional, 2ª. Ed, São Paulo, Saraiva 2008;

-        Vicente Paulo/Marcelo Alexandrino, Direito Constitucional Descomplicado, 2ª. Ed, Rio de Janeiro, Impetus 2008;

-        Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias, 5ª. Ed, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009

-        Flávio Tartuce/José Fernando Simão, Direito Civil – Série Concursos Públicos, 3ª. Ed, São Paulo, Método, 2008

-        Pablo Stolze Gagliano/Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de Direito Civil, 10ª. Ed, São Paulo, Saraiva, 2008

 

Artigos Consultados:

-        Rômulo de Andrade Moreira, “Ação Penal nos Crimes Contra a Liberdade Sexual e nos Delitos Sexuais Contra Vulnerável – a Lei nº 12.015/2009”, Em Evidência – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal nº 31 – ago-set/2009;

-        César Malta Marangoni, “Os reflexos das mudanças do Código Penal no Direito de Família”, 2005;

-        Luiz Augusto Zamuner, “A Lei nº 11.106, de março de 2005 e o artigo 1.520 do novo Código Civil, 2005