A influência do mundo adulto na vida das crianças

Resumo: Este artigo tem como objetivo principal discutir a partir dos estudos de autores sobre a infância, o comportamento das crianças na atualidade que vem sendo mudado através das influências do mundo adulto. Essas mudanças que vem ocorrendo no mundo infantil são perceptíveis a todos e muitas vezes os valores e desejos das crianças em nada mais têm a ver com a infância. Dessa forma, o artigo aborda rapidamente questões referentes ao ser criança e à infância em tempos passados e a infância na atualidade observando a influência dos produtos da modernidade, sobretudo a mídia, na vida das crianças.

Palavras-chave: infância; adultização; comportamento infantil atual, mídia.

Introdução

No decorrer da história da humanidade, o pensamento social em relação à criança e à infância foram mudando,surgindo na Idade moderna o sentimento de infância, e assim a criança passou a ter um lugar específico na sociedade, um lugar próprio, porém a mesma sociedade que se atentou para a infância e a fez tornar-se legítima também a fez sujeitar-se a pressões de amadurecimento precoce. Sociedade essa que cada vez mais é fortemente influenciada pelos produtos da modernidade que contribuem para tal fato. Diante dessa hipótese, esse trabalho se propõe a refletir sobre as influências do mundo adulto na vida das crianças, se está ocorrendo a "adultização" da criança na atualidade e as transformações de valores, além de uma reflexão sobre o papel da sociedade de modo geral na vida dessas crianças que estão "amadurecendo" precocemente.

Assim, pensando no comportamento das crianças na atualidade, nos seus desejos, nas suas falas, no seu modo de agir, é que resgatamos um tema pensado há algum tempo por estudiosos de diversas áreas. Afinal, o que está acontecendo com as crianças? Será que a Infância está sendo perdida? O que está levando às crianças agirem de forma tão "adultizada"? Pensar sobre o comportamento das crianças na contemporaneidade é refletir como estão sendo influenciadas pelos diversos "mundos" que as cercam: família, escola, mídia e sociedade.

A concepção de criança e infância em tempos passados

A idéia e o sentimento de Infância nem sempre existiu, como mostra os estudos sobre a infância do pioneiro Philippe Ariès (1981, p.52) "[...] para os homens dos séculos X- XI, a infância não tinha interesse nem realidade, pois era um período de transição, logo ultrapassado, e cuja lembrança também logo era perdida". Nesse período a mortalidade infantil era alta, por isso os adultos não se apegavam às crianças. Assim, a criança não tinha um lugar específico na sociedade, não havia o sentimento de infância, ou seja, não existia a consciência de que a infância é uma fase da vida que tem suas particularidades, e que se diferencia do mundo dos adultos, por isso, "logo que a criança crescia um pouco mais era misturada aos adultos, participando de seus trabalhos, jogos, e costumes em geral" (ARIÈS, 1981, p.10). Os assuntos sexuais, brincadeiras indecentes e termos de baixo calão eram discutidos e praticados na frente da criança, e os jogos, danças e brincadeiras se confundiam com os dos adultos. Não havia para as crianças distinção do mundo adulto.

Tudo começa a mudar a partir do momento em que a visão sobre a infância vai sendo construída, e é na Idade Moderna que esse sentimento surgiu inicialmente, no ambiente familiar, direcionado aos menores, à criança em seus primeiros anos de vida, um sentimento chamado de "paparicação", ou seja, tinha-se certo divertimento e relaxamento com essas crianças.

Na mesma época, surgiu através dos homens da lei ou eclesiásticos, o sentimento de moralização, exasperação que produzia irritação e aversão pela "paparicação", por isso, a literatura pedagógica impôs hábitos como nunca deixar as crianças sozinhas, evitando assim más companhias e ensinamentos duvidosos, não mimá-las para que se acostumassem à seriedade, serem recatadas, comportadas. Do mesmo modo, a leitura, a música e as conversas também deveriam ser decentes. A preocupação com a modéstia também fez com que fosse evitada que as crianças ficassem na companhia dos criados que tinham brincadeiras e gestos indecentes. Os modos e a linguagem também deveriam ser refinados. Com a invenção do livro impresso, a infância vai sendo cada vez mais percebida e estudada. Livros de pediatria e de boas maneiras foram escritos, mostrando que o conceito de infância já estava se formando, com mudançasem todos os aspectos: nas roupas, na linguagem, na aprendizagem, já não mais participavam da vida social dos adultos. No século XVIII a criança havia ganhado espaço dentro da família, que se preocupava com a higiene e a saúde física das crianças, com a educação, com o futuro e também com a sua existência.

A infância na atualidade

A sociedade vem ao longo do tempo passando por diversas transformações, nos aspectos econômico, cultural, social e político, o que leva a mudança de valores, estilos de vida, a relação do homem com o próximo, mudança de cultura, crenças, valores, regras, atitudes e interesses, onde é gerada uma sociedade complexa que carrega diferentes vivências que colaboram para a redefinição da infância sob várias perspectivas, e principalmente para a "adultização" da criança, Assim, os diversos produtos da modernidade (a televisão, a internet, a mídia, dentre outros), vão influenciando a vida das crianças, ficando perceptível que cada vez mais as crianças estão usando as mesmas roupas dos adultos, participando das mesmas festas, usando a mesma linguagem, vendo os mesmos programas de televisão, vendo e lendo as mesmas revistas, usando os mesmos acessórios, e se comportando tal qual os de maior idade.

A família e a escola hoje não são mais capazes de controlar tudo o que a criança vê, ouve, descobre, e nesse caminhar, tanto a escola quanto a família já não são mais tão importantes como instituições que apresentam o mundo às crianças, que as ajudam a fazerem descobertas, e assim, a mídia vai ganhando mais espaço e as novas tecnologias cada vez mais influenciam as suas atitudes, e vão cada vez mais entrando no mundo dos adultos, porém nem sempre de maneira positiva. Sob estes aspectos, Postman diz que,

para onde quer que a gente olhe, é visível que o comportamento, a linguagem, as atitudes e os desejos – mesma a aparência física- de adultos e crianças se tornam cada vez mais indistinguíveis(POSTMAN, 1999,p.18).

Dentre os produtos da modernidade que influenciam a vida das crianças, a televisão tem destaque maior por ser um instrumento de divulgação de todos os tipos de informações, e por ser o eletrodoméstico mais comum na casa dos brasileiros. A televisão está ao alcance de todos, disponível tanto para adultos quanto para crianças, conforme mostra a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE 2004) "no total das moradias do País, 87,4% tinham geladeira, 17,1% possuíam freezer e 34,5% contavam com máquina de lavar roupa. A televisão existia em 90,3% dos domicílios e o rádio, em 87,8%, enquanto o microcomputador estava disponível em 16,3% das residências".

As crianças de hoje já manipulam sozinhas a televisão e nem sempre vêem juntos com os pais ou responsáveis por ela, e quando vêem, geralmente não são programas destinados ao público infantil, que muitas vezes são exibidos numa tarde, mas que em outro momento foram proibidos para os menores. A televisão é aberta, suas imagens são fáceis de decifrar, os comerciais de televisão usam as imagens visuais para persuadir, e os programas televisivos como novelas, seriados, filmes, e até mesmo programas de auditório, mostram com freqüência crianças que não diferem dos adultos em seus interesses, linguagens, roupas, e sexualidade. De acordo com Postman (1999) o brincar pelo brincar é cada vez mais menos comum, e os jogos infantis estão desaparecendo, além de cada vez mais crianças estarem jogando profissionalmente onde o importante é treinar, ficar em concentração, ter um espaço na mídia para fazer publicidade com o intuito maior de ganhar dinheiro, ascensão social, orgulho nacional e não se divertir enquanto crianças. Além de todas essas mudanças na vida das crianças, existem complexas questões sociais que levam as crianças a serem pequenos infratores, crianças que roubam e até matam, e "como o mundo adulto se abre de todas as maneiras possíveis para as crianças, elas inevitavelmente imitam a atividade criminal adulta" (POSTMAN, 1999, p.150).

Todas essas mudanças vieram com a globalização que em todo o tempo e principalmente na era contemporânea onde ela ganha mais força, deixando marcas na sociedade de forma geral, e as crianças como fazem parte dessa sociedade também têm sido influenciadas. A influência da mídia faz com que a população se torne consumidores passivos, sem criticidade, que compram tudo o que ela oferece, sem na maioria das vezes necessitar do produto anunciado. Dessa forma, as crianças vão sendo formadas num contexto de homogeinização onde a sociedade do consumo vai produzindo a idéia de posse, em que é mais importante ter do que ser, e essa vontade de ter acaba sendo impregnada em todas as crianças de todos níveis sociais. "Estes sujeitos-crianças (carvoeiros, favelados, etc) inseridos na lógica do capitalismo, que num mesmo movimento que os exclui, enquanto consumidores, de algum bem ou serviço, os inclui pela ótica do desejo" ((MIRANDA, 1997, p. 60).

A infância tem tempos múltiplos, em diferentes épocas, sociedades e contextos, por isso a infância se caracteriza como infâncias, cada uma com diferente significação e singularidade, mas na sociedade globalizada, a infância tende a "estabelecer-se de forma universal, sob influências do poder político, das organizações internacionais, e pela disseminação de imagens dominantes que fazem da infância uma categoria única, um único modelo" (SARMENTO, 2001, P.14).

Em uma sociedade adultocêntrica, a criança está submetida ao adulto. "Não é incomum constatar que em função do momento e do contexto ora as crianças são consideradas como adulto em miniatura- adultização- ora são entendidas como imaturas e despreparadas- infantilização" (FILHO, 2001, p. 52). Assim, De certa forma a infância tem sido negada às crianças, pois aos mais privilegiados economicamente são impostos tantos afazeres que lhes afastam de sua infância, (MOTA; CRUZ, 2004, p.194), e aos menos favorecidos a exploração do trabalho, dos afazeres domésticos nem sempre possibilita a vivência plena da infância.

Segundo Araújo (1996, p.77-78) "enquanto crianças procuram imitar outras crianças, ambas reproduzem uma mentalidade e um comportamento centrado no adulto, pois passam a ser o ideal, o futuro e a própria réplica do modelo traçado pelo adulto" Esse modelo traçado pelo adulto hoje advém principalmente da influência do poder econômico que enxerga na criança um instrumento de lucro, de consumo, e "em conseqüência dessa massificação publicitária, vê-se hoje a criança como protótipo do adulto" (ARAÚJO, 1996, p. 87).

Apesar das influências negativas que os meios de comunicação exercem sobre as crianças, eles são importantes, pois têm diversas utilidades, como informações úteis no nosso dia-a-dia, a realização de diversas pesquisas, a comunicação em tempo real com outra pessoa, a facilidade de comprar algum objeto, entre tantos outros benefícios.O que precisamos é que todos os segmentos da sociedade, inclusive a mídia que se mostra através das tecnologias, tenham uma postura diferente em relação à criança, abandonando o único e exclusivo objetivo da economia que é o lucro. Utopia ou não, é um assunto a ser pensado, com a família que juntamente com a escola, sociedade e mídia pensem, valorizem e conheçam mais o ser, o fazer, o conviver, e não o ter, onde a criança possa de fato se tornar um sujeito de voz ativa, sem manipulações do mundo adulto.

Apesar de todas essas influências sobre as crianças, ela "constitui apesar dos adultos, um mundo com uma significação própria" (JOBIM e SOUZA, 1994, p.88). As crianças reconstroem o mundo à sua volta, dão outro significado para os acontecimentos, refazem o espaço onde estão, moldam o ambiente em que se encontram, dando uma nova interpretação para o que elas vivem de acordo com as suas vontades. Nesse recriar, reinventar, a criança vive a sua infância e ressignifica-a, e não a perde, e "com isso as crianças formam seu próprio mundo de coisas, mundo pequeno inserido em um maior" (JOBIM e SOUZA, 1994, p.150).

Considerações finais

Mesmo nos dias atuais em que a infância vem passando por diversas influências do mundo globalizado, ela não se perdeu, acabou, mesmo que ela esteja sendo bombardeada pelo que é exclusivo do mundo adulto, sua identidade tão plural não morreu, por isso não podemos falar em morte da infância e conseqüentemente em uma única infância uma vez que na contemporaneidade a infância vem se configurando, mudando através da globalização, e ganhando novas identidades, ao mesmo tempo que também tende a ser uma só pela iniciativa do objetivo lucrativo da mídia. Ainda assim, temos diversas crianças e infâncias que se configuram de acordo com o meio em que vivem, como por exemplo, a crianças de rua, a criança trabalhadora, a criança de classe média, da alta sociedade, indígenas, africanas, brasileiras, entre outras. Dessa forma, podemos dizer que "[...] A infância está em processo de mudança, mas mantém-se como categoria social, com características próprias" (SARMENTO, 2004, p.19).

Dessa forma, pode-se perceber que as crianças estão sendo forçadas a crescerem rápido, e essa pressão pode acarretar vários problemas às crianças, uma vez que elas têm uma forma própria de pensar, agir, sentir, aprender, e se comunicar na vida. "Se, de um lado, elegemos a infância como a explicação para o que somos, de outro, fazemos de tudo para que os infantis deixem de ser infantis e cada vez mais rapidamente em tudo se assemelhe a nós" (CORAZZA, 2002, p.196-197). Mesmo que o sentimento de infância aparentemente esteja caminhando para a extinção uma vez que os meios de comunicação estão a desmontar a infância através dos seus conteúdos que torna tão próximo a fase adulta e a infância, e como os pais em sua maioria não têm tempo disponível para controlar o que seus filhos vêem, a infância vai sendo reconstruída a cada dia pelas próprias crianças nos diferentes tempos-espaços e sociedades em que vivem, e como diz Sarmento (2006), "o lugar da infância na contemporaneidade é um lugar de mudança", em que a cada dia vai se reconfigurando e ganhando novo significado".

Assim, podemos afirmar que a infância é um sentimento, uma postura em relação à criança que faz com que essa fase da vida assuma determinadas características, diferentes dos adolescentes, dos adultos e dos idosos. Esse sentimento não desaparece, ele muda de contexto para contexto, de sociedade para sociedade, e nessa onda de transformações, é preciso que juntamente com as crianças todos nós nos estejamos empenhados em valorizar a verdadeira infância que tem como característica um mundo de imaginação, fantasia, criatividade, brincadeiras e sonhos.

Referências

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