A (DES) CONSTRUÇÃO DO SUJEITO FEMININO NA OBRA AS TRAÇAS DE CASSANDRA RIOS

Acadêmica: Giana Franco de Andrade
E-mail: [email protected]
Orientadora: Prof.ª Me. Adenize Franco
Co-Orientadora: Profª Mariana Sbaraini Cordeiro
Linha de Pesquisa: Identidade, Alteridade e Imaginários Culturais

Resumo: O presente trabalho propõe o estudo da obra As Traças (1981) de Cassandra Rios, sobre a qual se objetiva analisar a (des)construção do sujeito feminino inserido nos moldes da censura, precedida pelo regime militar. Pioneira na literatura lésbica, Rios visa garantir a existência de suas personagens de forma reconhecível e identificada, não as retratando como simples figurantes e sim como protagonistas. Da leitura da narrativa, é possível perceber os conflitos e questionamentos diante dos processos de identificação, uma vez que há a retração de vários modelos, desde os estereotipados até aqueles em que se assumem posturas contraditórias e deslocadas, o que é abordado pela corrente pós-moderna. Bastante original para a época, Cassandra surge como elemento revelador que se opõe aos padrões hetero-patriarcais de forma transgressora, usando uma linguagem ousada classificada por muitos como pornográfica e imoral.


Palavras-chave: literatura brasileira; identidade; homossexualidade; (des)construção; erotismo.


INTRODUÇÃO: DO CONTEXTO HISTÓRICO À ANÁLISE DA OBRA.

Vários são os teóricos que abordam em suas teses a questão da identidade diante de um declínio social, caracterizando o sujeito de várias maneiras devido às constantes transformações e impermanências da modernidade. Algumas concepções buscam uma identidade fixa/permanente outras analisam os rompimentos/deslocamentos em que os indivíduos são submetidos. Nesse sentido, há a inserção de novas culturas, entre elas a que se opõe as convenções patriarcais: a questão da homossexualidade, abordada no romance de Cassandra Rios. Pretende-se, assim, além de analisar a obra da autora, reconhecer a sua importância no pioneirismo da literatura lésbica, citando-a como sinônimo de resistência e denúncia.
"Quem estiver vestido no cimento de suas certezas".
Não mergulhe nestas águas"
A segunda metade do século XX assistiu a um processo de mudança, acompanhado pela aceleração avassaladora das tecnologias, que tanto se relaciona ao homem quanto ao mundo, resultando em outros modos de se pensar a sociedade e suas instituições, substituindo antigos dogmas por outros valores, menos fechados e categorizantes. Desse modo, anunciando um novo pensamento ? o da diversidade, é que se objetiva contextualizar a questão da homossexualidade, mais precisamente a feminina a uma retratação da sociedade moderna, caótica e conturbada. A literatura, pelo seu caráter eminentemente discursivo, tem sido o espaço em que as localizações do sujeito e as construções da identidade afloram, permitindo-nos uma visualização clara de como os indivíduos de épocas diversas concebiam e construíam suas identidades.
Comenta-se que os conhecimentos sobre a homossexualidade no Brasil estão relacionados a um momento histórico e social, vincula-se o despertar para essa nova visão através de teses do século XIX que enquadravam à prática de relações sexuais e afetivas entre pessoas de um mesmo sexo a uma desgenerescência, considerando-se até como doença. Ao final do século XX, tal abordagem foi deixada de lado, a AIDS tomou papel central acelerando os estudos sobre a sexualidade humana com o intuito de desmistificar a origem e as causas do que hoje entendemos como orientação e/ou preferência sexual, abordando em análise a construção social que foca o indivíduo de formas individuais e coletivas.
Sabe-se, contudo, que a prática das relações amorosas julgadas como desregradas possuem raízes antigas, porém o termo "homossexualidade" só aparece na literatura no final do século XIX e na metade do século XX, sendo associado a três tabus: o pecado, a patologia e o crime. Interessando-nos, portanto essa época uma vez que se pretende analisar a obra de Cassandra Rios "As Traças" pelo viés do pós-modernismo datado de 1950 até dias atuais.
Os primeiros traços da literatura homoerótica no Brasil, conforme algumas pesquisas, surgiram traços na obra O Ateneu de Raul Pompéia em 1888 , seguindo a linha tem-se Aluísio de Azevedo com O Cortiço (1890) e Domingos Olímpio com Luzia Homem (1903). Porém, o marco neste tipo de abordagem se deu com Adolfo Caminha em 1895 com a publicação de O Bom Crioulo, obra que a princípio não teve uma boa recepção do público por retratar uma paixão entre o crioulo e o grumete, volta assim nos anos 70 com maior força possuindo conotações políticas.
A trajetória pela formação de obras com cunho erótico e com personagens de um mesmo sexo continuou sendo a temática de outros autores como Aníbal Machado, Jorge Amado, Gasparino Damata, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, João Gilberto Noll, Caio Fernando Abreu, entre outros que optaram por fazer uma literatura mais densa e introspectiva. Julgada por alguns críticos como literatura marginal por tratar de assuntos periféricos e da condição humana frente ao descaso propiciando a diversificação de modelos que passam de um simples caráter sentimental, testemunhal a outro denominado erótico e pornográfico.
A respeito disso, comenta-se em artigo sobre o homoerotismo e a marginalização da autoria de Iraídes Palermo e Thiago Carbonel que "A retórica da marginalidade permeia a produção literária homoerótica inserindo as personagens homossexuais em contextos de subversão, bizarrice e repressão" . Desse modo, os personagens são o reflexo do meio, da sociedade que entra em contradição com padrões pré-estabelecidos de normalidade, resultando em uma nova cultura à margem da sociedade.
Desafiando os perfis estilizados, versam, também, as mulheres sobre as relações homoafetivas tanto relacionado ao sentimento quanto ao sexo, abordagem que traz um certo estranhamento ao passo que as transformações na sociedade moderna cedem espaço para a manifestação de novas visões inclusive sexuais, havendo um conjunto de representações ao que Nelly Novaes Coelho considera "O desafio à interdição ao sexo" . Assim, diante da consolidação das simbologias, há a inserção da literatura feminina que começa a retratar as relações homossexuais de gays e lésbicas e temos como representantes Lygia Fagundes Telles, Gilka Machado, Florbela Espanca, Cassandra Rios, Lya Luft, Myriam Campelo, entre outras que abordam o tema em suas obras como forma de resistência à opressão do meio. Coelho ainda comenta que "É contra o panorama dessa ?mesmice?, resultante da pacífica submissão da mulher aos cânones que a sociedade lhe impunha, que vão se fazer ouvir as primeiras vozes transgressoras, - as que expressam um eu que se busca dono de sua própria verdade"
Assim, surge a literatura feminina como uma forma de transgressão, que se apresenta com algumas marcas, nesse sentido Mauro Rosso comenta, fazendo uso de algumas concepções da estudiosa Vera Queiroz que

Femininos, sim são os textos que apresentem determinadas marcas, que percorrem o campo semântico de falta, silêncio, indizível, confessional, subjetivo, íntimo, prevalência do eu-narrador, visão interior, esgarçamento do sentido da palavra e da ordem dos discursos, dilaceramento da escrita, busca da identidade, descontínuo, atópico, atemporal, extático, etc. (2006, p.02 )

Essas peculiaridades de escrita possibilitam a ousadia para sondagens existenciais que trazem como exemplo a exploração dos mitos e a clara opção pela linguagem do corpo. Prática discursiva que se associa à manifestação do desejo reprimido pelo sistema de dominação. Se o fato das escritoras abordarem a temática do erotismo com certas expressões de linguagem enquadra seus escritos como pornográficos, e abordar a questão do lesbianismo representa, então, a perversão e a falta de moralidade, a razão para tudo está explícita na censura e autocensura.
Segundo Cristina Bailey, que versa sobre o desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras, "A representação da sexualidade lesbiana [...] rompe com as relações dominantes de gênero [...] não só representa uma dimensão importante da sexualidade feminina como também, serve para expor e questionar o controle social sobre a sexualidade e o corpo femininos" (1999,p.4.). Observa-se, portanto, que a finalidade de expor em obras personagens lésbicos é uma tentativa de resgatar o sujeito de uma tradição patriarcal, mostrando suas diversas formas de representação, temos assim a presença de um sujeito em confronto com a sociedade.
Sobre o embasamento teórico do pós-modernismo, podemos analisar que devido às mudanças do mundo moderno se tem ao contrário do que era antes, um indivíduo fragmentado, deslocado que não possui identidade fixa ou permanente e que tenta com suas características próprias se inserir em uma nova cultura. Para Hall, as variáveis elencadas imbricam no processo de formação de identidade, tanto cultural como social. Assim, o recorte que faço com relação à identidade lésbica se dá através do processo em que

A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato existe na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo ?imaginário? ou fantasiado sobre a sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre ?em processo? sempre sendo formada (HALL, 2005, p.38).

Encarando o desafio de analisar a (des)construção do sujeito feminino que se opõem aos padrões hetero-patriarcais, proponho-me ao estudo da condição da mulher não como complemento da família, mas como importante agente de mudanças pela função que exerce na sociedade, para tanto é que passo a citar Cassandra Rios cujo nome era Odete Rios (1932-2002).Pioneira da literatura lésbica do Brasil, ficou conhecida por sua obra ousada e pela sua linguagem popular que atacava e escancarava preconceitos e estereótipos de forma direta e sexualmente explícita.
A autora ao longo de sua carreira publicou vários livros. O primeiro deles foi a Volúpia do Pecado, escrito aos 16 anos de idade, lançado em 1948 quando as personagens buscavam um termo que definisse e explicasse a causa de um amor desnatural, usando a conceituação de lésbica para descrever como bem se explica "mulher que gosta de mulher". Publicou várias outras obras e misturava nelas homossexualismo feminino, cultos umbandistas - como vemos em Macária (1979), negócios e política. Uma de suas obras, A Paranóica (1969), teve adaptações para o cinema, passando a ter como título Ariella.
Sendo considerada a autora mais vendida nos anos 60 e 70, chegou a ter 36 de seus livros proibidos pela censura militar, tendo obras rasgadas e queimadas por delegados a serviço da ditadura que tachavam-na de pervertida, fato que explica o comprometimento da mãe da autora em não ler suas obras. Como lembra a autora em uma das suas autobiografias:
"[...] me batizaram de Demônio das Letras, Papisa do Homossexualismo, uma dama de capa e espada, seduzindo e corrompendo" (2000, p.30). Nominações que não vetou a repercussão da autora, pois o alcance social da sua obra chegou a atingir a margem de 300.000 mil exemplares. Comenta-se que juntamente com sua obra inaugural, outros títulos como Carne em Delírio, Georgette e Eudemônia, causaram em Rios tristeza e deslumbramento uma vez que tais obras se encontravam em uma lista afixada na porta de igreja como livros que haviam sido excomungados. Comentando sobre o fato uma devota chegou a lhe dizer "Não ligue não, todos adoram seus livros. As pessoas lêem à lista na porta e correm direto até as livrarias para comprá-los. Essa é a sua maior propaganda" (Id, p.48).
A tentativa de proibir as obras consistia em um possível "atentado à moral e aos bons costumes", pois além de verbalizar sobre sexo, a autora criticava o sistema hetéro-patriarcal, onde seus personagens notadamente desobedeciam os códigos morais de comportamento social vigente. Assumidamente lésbica, Cassandra Rios lutava intencionalmente pelo direito à existência ficcional das lésbicas como protagonistas, não como simples figurantes de uma história, mas também fora desse papel na sua real existência. Sua obra, portanto, possuía um caráter modelar, onde o espírito crítico norteava sua escrita fazendo desta um veículo de transformação, de mudança e não qualquer escrito panfletário.
De forma geral, vemos que os trabalhos de Rios estão diretamente ligados à questão da identidade, construção esta que se dá fora do padrão de feminilidade. Assim, a homossexualidade representa a ordem de conflitos psíquicos, sociais e culturais. Nesse sentido, Tânia Navarro Swain faz uma abordagem comentando que a história colabora na construção de um feminino, tipo frágil e submisso, naturalizando os comportamentos e criando representações sociais regidas pela ordem patriarcal, em que "a história, dona do tempo, esqueceu que tempo significa transformação, esqueceu a própria história para traçar um só perfil das relações humanas" (2000, p.14).
É relacionado ao exposto que se aborda a representação social da mulher de forma não uniforme, devido a isso é que se passa a mencionar os pressupostos do pós-modernismo que repensa as categorias fixas que dividem a humanidade em diversas identificações e subjetividades, a respeito disso Stuart Hall Afirma que.

[...] as identidades modernas estão entrando em colapso, o argumento se desenvolve da seguinte forma. Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas ao final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que no passado nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. (2005, p.09)

Diante do exposto, alguns teóricos como Hall (2005), Steven Connor (1993) e Nizia Villaça (1996) mencionam a crise da identidade para justificar o deslocamento e a descentração do indivíduo, amparada por estes e segundo o respaldo de outros estudiosos é que passo a analisar a obra As Traças da mencionada Cassandra Rios. O contexto em que o romance se insere é dos anos de 1981, período em que o país ainda estava sobre o regime da ditadura militar, forma de governo que perdurou de 1964 a 1985.
Adentrando a esfera pública e privada e em resposta a opressão e a exclusão, se procurou-se, de forma ousada e por vezes clandestina, representar pela voz feminina a dominação simbólica dos papéis sociais e sexuais exercidos por poder e submissão tanto do homem quanto pela mulher. Sobre isso, há a manifestação de Ana Maria Colling,

Falar em gênero em vez de falar em sexo indica que a condição das mulheres não está determinada pela natureza, pela natureza, pela biologia ou pelo sexo, mas resultante de uma invenção, de uma engenharia social e política. A idéia de gênero, diferença de sexos baseada na cultura e produzida pela história, secundariamente ligada ao sexo biológico e não ditada pela natureza, tenta desconstruir o universal e mostrar a sua historicidade (2004, p.05).

Historicamente, Adriana Piovesan em sua tese de mestrado sobre Os Deleites dos Sentidos (2005) analisa que a partir da década de 80 se enfatizou o caráter cambiante e multifacetado de que se reveste a identidade, incorporada pela influência que as transformações no espaço urbano exercem sobre o processo.
Assim, faz-se presente no romance anunciado, o revelar do confronto entre condições de identidade tidas como estáveis, a diferença se dá no campo da pós-modernidade porque sugere a multiplicidade, a heterogeneidade e a pluralidade dos personagens. No decorrer das 283 páginas da obra de Rios, é analisado como a autora institui a mulher da invisibilidade enquadrando-a como sujeito participante e revelador.

O efeito político do lesbianismo seria a recusa do patriarcado em seus fundamentos, ou seja, a domesticação do desejo, da emoção e do corpo definido biologicamente como feminino. Essa perspectiva apresenta o lesbianismo como um fator de modificação da ordem instituída, como ponta de lança na transformação dos poderes vigentes ( 2004. p.60).

Relacionando tais considerações, identifico na obra o caráter desviante que se faz presente, uma vez que há a construção e a desconstrução do modelo feminino. Em síntese, temos Andréa como protagonista da história, jovem de 17 anos que está na fase de autoconhecimento, sendo adolescente, algumas mudanças operam paulatinamente no seu comportamento. Ao mudar de colégio, a estudante depara-se com Berenice, uma de suas professoras, a qual alguns anos mais velha inexplicavelmente lhe desperta interesse.
Compreendendo sua tendência, Andréa se entrega a um enternecedor romance, pois é correspondida. Porém, a relação entre aluna e professora resulta, também, em um drama. Insegura, a adolescente encontra seu refúgio nas drogas, passando a praticar absurdos desregramentos que se contrapõem a seus hábitos e sua moral.
Na tentativa de ajudá-la, Berenice se depara com problemas pessoais, revelados de forma surpreendente ao final. O desfecho nos revela que a mãe de Andréa, quando jovem, também mantivera com a professora o mesmo relacionamento, como se vê no fragmento:

[...] Andréa entrelaçou os dedos nos dedos de Berenice e sentiu-a apertar sua mão com força. Mundo pobre! Hipócrita! Teve Vontade de gritar, mas estava sem forças, lábios grudados, dentes trincados. Afrouxou os dedos e sentiu um gelo de faca rasgá-la toda quando ouviu a voz trêmula e doce de sua mãe dizer palavras que a torturavam, e sem comiseração alguma, pesar e ter noção que sua mãe era linda, muito linda, tão linda quanto ela própria, ou talvez muito mais. Eram palavras terríveis como punhais afiados que a estraçalhavam: ?- Berenice, você não fez com minha filha o que fez comigo, não? (RIOS, 1981, p.283)

Aponta-se, inicialmente, Andréa como objeto de estudo, pois sofre mudanças constantes, rápidas e atípicas. Contrastes que alteram seu caráter possibilitando uma transformação social, como bem argumenta Hall

As sociedades da modernidade tardia [...] são caracterizadas pela ?diferença?; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes ?posições de sujeito? ? isto é identidades ? para os indivíduos (2005, p.17).

Logo ao início Andréa é apresentada da seguinte forma "Andréa tinha ideais e pretendia firmar-se numa profissão definida e segura. Entretanto, não conseguia decidir que carreira iria abraçar" (RIOS, 1985, p.05). A jovem encontra-se diante de conflitos primários que se agravam. Recaí sobre si o desejo dos pais em vê-la estudando; o impacto causado ao conhecer Berenice, em um primeiro momento querendo corresponder às expectativas de "boa aluna", em seguida, passando a enfrentá-la de forma agressiva; o relacionamento de amizade com os colegas do instituto e as descobertas que faz por este meio; o incômodo dado pelas atitudes de seu irmão; as práticas sexuais que se submete desde a masturbação compulsiva até o relacionamento com colegas de ambos os sexos; o ciúme por Berenice; a forma manipuladora de controlar seu nervosismo com o uso de remédios e sedativos, tornando-se uma taxicônoma e por fim a revelação de suas condições.
Desse modo, o trabalho desenvolvido pela acadêmica Evely Blaut Rodrigues "Da Experiência da culpa à vivência do desejo" permite atribuir os fatos a uma vivência revolucionária e a uma transformação da percepção do mundo, onde não há estabilidade e sim transgressão. Cumulando estas considerações se faz possível citar a globalização de Stuart Hall e os perfis identitários que Navarro Swain comenta, sendo que o primeiro se justifica pela função de contestar e deslocar identidades centradas e fechadas da cultura nacional, produzindo um efeito pluralizador sobre as identidades. E, por conseguinte, pela segunda abordagem que menciona a identidade lésbica como nômade.
A indeterminação do sujeito que temos é desmistificada pelo reconhecimento. Na obra é identificada pelas falas de Bárbara

[...] a gente vê. Tá na cara! Não adianta esconder. E não pense que falo assim com todo mundo, não. Só com quem eu acho que posso. Não adianta esconder, quando a mulher é entendida, logo se percebe. Há um processo de identificação que não se pode evitar. Tá como que no ar. Logo vi que você era também. Não adianta fingir, dissimular, arranjar namorado e nem casar. Isso é tudo besteira. Um dia a pessoa cai (Rios, 1981, p.35).

Há, nesse sentido, uma nova identificação mais plural e diversa, menos fixa e unificada, que induz a personagem Andréa a refletir sobre a sua condição quanto aluna apaixonada e quanto pessoa, a menina regida por normas. Como expor a sua condição sexual a seus pais? Como camuflar seus sentimentos, controlar seus instintos? Aos seus olhos tudo era perturbador e perigoso, talvez o fato de andar na companhia de Bárbara e Rosana, ambas homossexuais, já lhe afirmasse como indivíduo.
O caráter afirmativo da sua identidade se estabelece ao mesmo tempo em que se contrapõem as possibilidades do novo, pois "misturam-se e confundem-se os signos do eu, consciência, pessoa, inconsciente, interioridade, identidade, individualidade" (VILLAÇA, 1996, p.37). E é por meio disso que Andréa paradoxalmente entra em crise e esvaziamento, surgindo em meio às incertezas como o sujeito pós-moderno, a simultaneidade das transformações coincidiu com uma mudança substancial da moral sexual vigente e do seu próprio papel sexual. Da leitura da obra, vemos a descrição de várias relações, entre elas:

Rosana afastou o rosto que apertava contra sua face e olhou-a nos olhos. As mãos ageis e atrevidas, tateando puxou o vestido para cima desnudando-lhe as pernas, deslizou pelo seu corpo abaixo, enfiou a cabeça no meio das coxas e beijou-a lá. Ficou tecendo carícias com a língua até que Andréa contorceu-se no gozo demorado. (RIOS, 1981, p.146)

No mesmo sentido, porém em outra situação, tem-se a relação concretizada entre Andréa e Berenice, a jovem se submete ao prazer pela dor e total satisfação de sua amada.

O que estava fazendo? Pondo uma calcinha? Não, não era. Gestos estranhos. [...] Berenice deitou ao lado, passou as mãos pelas suas coxas, pelos seus seios. Demorava-se deliberadamente, provocando, fazendo-a sentir coisas que nunca pudera imaginar [...] Berenice parecia uma tarada munida com aquele negócio esquisito. Andréa percebia seus movimentos e embora assustada seu corpo ardia em febre, aguardando que ela a penetrasse. [...] Berenice arreganhou-lhe as pernas outra vez e meteu-se entre elas. Andréa já não oferecia resistência, estava semi-desfalecida (Id. p.167-169).

Em outra passagem da narrativa se tem explícito o sexo com Moacir

Moacir estava arquejante, nervoso, nu em cima dela, transpirando, o sexo duro, espetando-a sem encontrar o lugar onde meter-se [...] Moacir estrebuchou, rangeu os dentes, apertou-a brutalmente, sacudiu-se no ar, arrancou de cima dela e caiu extenuado ao lado enquanto Andréa apenas sentia que ele deixara-a molhada (Id, p.242-243).

As descrições usadas por Rios a um primeiro momento podem aparecer como perversão, porém, a linguagem, genialmente usada pela autora, retrata como argumenta Adriane Piovesan "Uma narrativa em que é articulado tanto o olhar do opressor que é imposto à sociedade frente ao homossexual, como também é destacado a sua preocupação em transmitir a sua visão, de escritora homossexual diante da questão" (2005, p197).
Assim, os fragmentos acima citados refletem as múltiplas identidades assumidas pelas lésbicas na obra, sendo que se apresenta sem artificialismo, demonstrando os conflitos sociais e psicológicos em que os personagens enfrentam em seu cotidiano. A respeito disso temos que "Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou seus oponentes" (HALL, 2005, p.97).
Verifica-se com a análise do romance As Traças, que simultaneamente emergem outras representações simbólicas que, segundo Freud, formam-se com base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente que funciona de acordo com uma "lógica" muito diferente daquela da razão, pois, arrasa com o conceito de sujeito cognoscente e racional. O que é exemplificado pelo descontrole de Andréa ao fazer uso de tóxicos que lhe dão a falsa idéia de bem-estar e evasão de problemas.
Conforme alguns fragmentos da obra, é possível analisar o processo gradual da dependência "a mãe trouxe o copinho com o analgésico. Tomou-o. Não estava com cólica, nem com dor de cabeça, mas de certa forma serviria como calmante". (RIOS, 1985, p.75). Nesse trecho, vemos que não há necessidade de se ingerir o medicamento, uma vez que a jovem faz o uso para outra finalidade. Acentuada a outras circunstâncias vivenciadas por ela, se evidencia, as primeiras das muitas conseqüências derivadas do uso de remédios "Andréa inclinou a cabeça e notou que estava trêmula. Lembrou-se que uma noite tentara assaltar o armário á procura de um calmante" (Id, p.121).
Ultrapassando seus limites e sua razão, o processo de manipulação com o qual inconsciente e inconsequentemente Andréa submete é gravemente acelerado "a pílula era tão pequena que ela não acreditou pudesse fazer efeito contra tanto nervosismo e desejo e tomou mais uma [...] Tudo nela se contraía numa sensação de enjôo, uma sensação mais forte fazia leve, parecia um corpo vazio, eteréo, flutuando no espaço" (Id, 152-153). Em seguida, é apresentado a plena necessidade da personagem em suprir e alimentar seu vício "Eu não consigo livrar-me disso. agora mesmo sinto a garganta seca, meu corpo dói, pede, preciso, me dá o vidro, só mais uma pílula" (Id,p.251)
A associação de todos os elementos e situações que estão relacionados à protagonista do romance, permite conceituá-la como fragmentária. Direcionando a análise aos demais personagens da obra, é observado que, assim como Andréa, as conceituações de indivíduo e de sujeito, gradativamente perdem seus antigos perfis que se acoplam e se excluem paralelamente a outros. Para melhor interpretação, faz necessário se discorrer sobre o lugar das homoafetividades, o espaço é urbano, o principal ambiente é a escola, não temos a retratação da mulher dona-de-casa, mãe exemplar em contraponto há Berenice, professora de perfil e caráter formado, rígida. Alunas lésbicas com traços de feminilidade marcantes. Meninos que representam a masculinidade. "É justamente esta convivência de várias destas visões de indivíduo e do sujeito articuladas ao social, à questão do real e da verdade que vai desaguar nos paradoxos que bem expressam a complexidade do contemporâneo" (VILLAÇA, 1996, p.55).
A subjetividade de cada um é produzida pela da existência de um discurso que sempre está em constituição, desse modo se releva as múltiplas retratações de indivíduo. A tentativa de fixação de uma identidade, representada pela personagem Andréa, indica a necessidade de dar existência e visibilidade a uma categoria excluída pela sociedade e analisar que, assim como as outras que se apresentam de forma estereotipada, há sim vitimação dada por conflitos sociais e psicológicos. Sendo que a resistência a repressão institucionalizada demonstra também a variedade de papéis possíveis dentro desta construção identitária que a autora promove.
Vários outros aspectos poderiam ser apontados da leitura da obra. Alguns de seus recursos assemelham-se ou estão presentes em outras obras, a questão do título, por exemplo, está associado à intenção do que Rios pretende explicitar em Eu sou uma lésbica (2006), a identidade já é revelada, o que se tem do conteúdo é o desenrolar da história do descobrimento e auto-afirmação das personagens, já em As Traças e melhor exemplificando com passagens do texto

- Somo duas traças.
- Traças? Por quê? Eu não quero ser traça, prefiro ser um cogumelo branco do mato, você já viu? É tão Lindo, tão branco, parece um pompom de algodão, mas é venenoso.
- Eu sou a traça, pertenço à família dos tineidas e dos tisanuros, talvez do gênero lepisma, sou aquilo que destrói pouco a pouco, não vê o franjar das minhas asas e as unhas em forma de cascos?
- Não são cascos! Prefiro que você seja uma cigarra.
- Traça. Sou traça! Tentando passar despercebida entre os outros, sinto-me a traça que se esconde entre as costuras dos livros pra o fim morrer esmagada entre suas páginas (RIOS, 1981, p.214).

A nominação que Berenice dá a sua condição sexual é uma alegoria que muito explica a condição do homossexual, ela própria adjetiva seu modo de ser conceituando-o de duas formas "tineidas" e "tisanuros", biologicamente pertencentes à mesma espécie divergindo porém seus hábitos. A transcendência de um ser a outro explícita pela alusão de tornar-se um, abre margens ao que denominamos como "metamorfose" que nada mais é que uma mudança de forma não definível, nesse sentido há a co-relação entre ser mulher e tornar-se lésbica, ambos os fatos que se dão por um processo de representação condicionante e de representação real de existência em síntese é a retração de uma cultura lésbica em formação.
Revendo as opções pessoais e a organização social dos personagens é possível buscar elementos na transformação histórica que justifiquem seu posicionamento, pois com um caráter desviante Rios escapa de meras simplificações, a justificativa para a existência dessa abordagem é que o homossexual até então era visto como um infeliz, doente fadado ao fracasso amoroso e a solidão. Em suas obras são os próprios gays que se encarregam de dizer quem são, não correspondendo às classificações dadas por outros que são na maioria das vezes artificiais e carregadas de pré-conceitos.

Considerações finais

Muito além de uma simples retratação de relações homossexuais entre mulheres, o trabalho de Cassandra Rios é uma forma de representação de uma nova cultura. Que literariamente com uma temática transgressora constitui os reflexos de uma sociedade estigmatizada, surgindo simultaneamente como uma forma de resistência camuflada, entendida e abordada atualmente como denúncia.
Desse modo, a análise do romance que resultou nesse artigo, procurou trazer a mulher ficcional á visibilidade, demonstrando e relacionando seus papéis a personagens reais que também se colocam contra os padrões sociamente construídos e que de uma maneira ou de outra compõem sua história.

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