A quebra do celibato presente na obra O Crime do Padre Amaro ? Eça de Queirós 1

Mara Rogelma Soares Torres 2


RESUMO
O presente artigo pretende analisar a crítica anticlerical presente na obra O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, à luz do que se refere ao dogma do celibato. Eça faz parte de um momento em que a literatura e o pensamento passaram por profundas transformações. É o momento em que surge o Realismo, do qual O crime do padre Amaro é uma das obras mais representativas. É uma obra caracterizada, sobretudo, pelo tom de crítica à sociedade portuguesa, inclusive ao clero.

PALAVRAS-CHAVE: celibato; Igreja; Realismo; romance; crime.

INTRODUÇÃO
Esse trabalho tem como base a obra O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, focando, no artigo em questão, as quebras aos votos de castidade, o desrespeito do clero diante das obrigações que lhe cabe.
Essas características são bem encontradas em Amaro, que, após romance secreto com Amélia, "rompe" sua aliança com a Igreja, convivendo fortemente com os contrastes de suas leis (como batizar uma criança enquanto seu filho é entregue a uma tecedeira de anjos), muito bem expressados por Saraiva, quando este cita, em seu resumo crítico da obra, que as falas e devaneios do "casal", aflorados pela sexualidade represa, se confundem com as práticas e símbolos devotos.
Com esses opostos, o objetivo proposto a partir dessa análise é fazer uma breve comparação entre o conceito de celibato e sua presença na obra, abordando os fatos que, sendo marcantes histórica e politicamente, influenciaram no pensamento realista de Eça de Queirós.

DESENVOLVIMENTO
A Igreja Católica é uma entidade que tem dois milênios de história, sendo uma das instituições mais antigas do mundo contemporâneo. Historicamente, as críticas a esta Igreja já tiveram muitas formas e partiram de diversos pressupostos ao longo das gerações.
No contexto atual, as críticas tendem a centrar-se em dois pontos. Em primeiro lugar, a história dessa instituição possui episódios que, em maior ou menor grau, são vistos por muitos como injustos e em contradição com a mensagem cristã que a
Como tema escolhido para elaboração deste artigo, tendo como parâmetro a obra O Crime do Padre Amaro, o celibato ganhará foco, pois trata-se de um dos mais polêmicos dogmas eclesiásticos, enquadrando-se bem no foco realista.
O Crime do Padre Amaro apresenta fortes características do Realismo, como podemos observar na descrição feita por Massaud. Segundo ele, os realistas escolhiam suas personagens nas várias camadas sociais e grupos sociais do tempo, selecionando casos patológicos para atestar a decadência da sociedade contemporânea. O romance realista objetiva conscientizar o público de suas deficiências, mostrando a realidade nua e crua e levando-o a atuar na sociedade para transformá-la.
À luz de Serbin, a regra de celibato surgiu na Espanha, no ano 306, por determinação do Concílio de Elvira. Houve uma luta de mais de 1.200 anos para impor o celibato aos sacerdotes da Igreja Católica, até que no Século 16, durante o Concílio de Trento, o celibato acabou se tornando obrigatório aos padres e madres de todo o mundo.
O celibato não foi adotado pela Igreja Romana pelo fato de a sexualidade atrapalhar a espiritualidade, como afirmam os teólogos. Segundo os sociólogos, o celibato foi adotado com a finalidade de que as posses do clero não fossem utilizadas para uma eventual despesa familiar.
Cientificamente, existe diferença entre celibato e castidade. O celibato consiste em não se casar, não ter filhos nem ter relações sexuais. A castidade consiste em não chegar à fornicação, nome pelo qual o orgasmo é conhecido nas Escrituras Sagradas.
Após esta análise da história do celibato, confrontaremos estas definições com a afamada e polêmica obra do escritor português Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro, que, ainda hoje, numa sociedade que se diz moderna e acostumada a romper com paradigmas, causa impactos, descortinando toda a hipocrisia da burguesia portuguesa do séc. XIX.
O romance O Crime do Padre Amaro inicia-se com a morte de José Miguéis, pároco da cidade de Leiria. Para ocupar o seu lugar é designado, graças a influências políticas, o jovem Amaro Vieira, que havia saído do seminário há pouco tempo "No outro dia, na cidade, falava-se da chegada do pároco novo, e todos sabiam já que tinha trazido um baú de lata; que era magro e alto, e que chamava "padre-mestre" ao cônego
Dias" e que não tinha muita vocação para o sacerdócio "De resto não lhe desagradava ser padre. Desde que saíra das rezas perpétuas de Carcavelos conservara o seu medo do Inferno, mas perdera o fervor pelos santos".
A Igreja é duramente massacrada através das figuras dos religiosos da cidade. Sodré nos retrata bem a realidade do clero exposta nas obras de Eça, quando este exerce sua crítica anticlerical empregando todos os recursos de sua arte flexível, principalmente a dos contrastes; no que diz respeito ao celibato, quando se refere à missa, padre Amaro encosta-se em Amélia.
O contato com a comunidade, aos poucos, revelará que os valores pregados pela Igreja são distintos dos valores que regem as relações na cidade, como podemos observar na passagem do texto a seguir, quando Amaro, dominado pelo desejo oprimido, presenteia Amélia, já possuída de intenções anticlericais, com um livro de sentido dual em relação à doutrina pregada.

"E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem páginas inflamadas onde as palavras gozo, delícia, delírio, êxtase, voltam a cada momento, com uma persistência histérica. E depois de monólogos frenéticos de onde se exala um bafo de cio místico, vêm então imbecilidades de sacristia, notazinhas beatas resolvendo casos difíceis de jejuns, e orações para as dores do parto! Um bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas lêem-no no convento. É beato e excitante; tem as eloqüências do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim e dá-se às confessadas; é a cantárida canônica!" (QUEIRÓS: 2000, pág. 69)

Acobertado pelo bispo e pelo prefeito, padre Benito mantém um romance secreto com Agustina, ao mesmo tempo em que se manifesta contra opiniões progressistas, como o fim do celibato dos padres. Já Amaro, procurando manter-se alheio a isso tudo, terminará por conhecer a bela Amélia, nascendo daí um romance proibido que, como em toda comunidade pequena, não ficará por muito tempo em segredo. Assim, como pretende a estética realista, o religioso é colocado em sua individualidade, na possibilidade de optar pela renúncia ao celibato e às hipocrisias vistas em sua paróquia.
"Ele atirava-lhe beijos vorazes pelo pescoço, pelos cabelos; às vezes mordia-lhe a orelha; ela dava um gritinho; e ficavam então muito quedos, escutando, com medo da paralítica embaixo. O pároco depois fechava as portadas da janela e a porta muito perra que tinha de empurrar com o joelho. Amélia ia-se despindo devagar; e com as saias caídas aos pés ficava um momento imóvel, como uma forma branca na escuridão do quarto. Em redor o padre, preparando-se, respirava forte. Ela então persignava-se depressa, e sempre ao subir para o leito dava um suspirozinho triste." (QUEIRÓS: 2000, pág 231)

Apaixonar-se por uma mulher é uma falta grave para um celibatário, mas um ato humano. Padre Amaro se sente culpado de ter praticado algo evitável, mas tal culpa não o consome como ocorre com Luísa de O primo Basílio, que adoece e morre.
Da quebra do celibato de Amaro, Amélia engravida e morre após perceber a ausência do filho, como podemos ver nos seguintes fragmentos, retirados, respectivamente, das páginas 328 e 332 da obra de Eça de Queirós: "diante daquela mãe que acordava depois da fadiga do parto e reclamava o seu filho, o filho que lhe tinham levado para longe e para sempre"; "Depois das convulsões que foram de arrepiar, caiu naquele sono, que é o sono da morte...".
Na hora do parto, Padre Amaro entrega o filho a uma tecedeira de anjos, que se encarrega de dar um fim na criança, configurando, assim, a realização de um crime que é sugerido pelo título da obra. O título sugere a falta cometida por Amaro, que passa a ser considerada o crime da história, remetendo o conceito de crime a uma problemática mais social que individual.

"Então o contato do seu filho, contra o seu peito, desmanchou como um vendaval todas as idéias de Amaro. O quê! ir dá-lo àquela mulher, à tecedeira de anjos, que na estrada o atiraria a algum valado, ou em casa o arremessaria à latrina? Ah! não, era o seu filho!" (QUEIRÓS: 2000, pág 326)

Toda a tentativa de dissimulação da realidade é percebida apenas por Dionísia, uma velha bruxa e mendiga. Ela é aquela que tudo sabe e que tudo vê. O véu dos disfarces é descartado de sua visão de mundo. Dionísia percebe com facilidade a relação de Amaro e Amélia, apesar de sua condição de enjeitada pela sociedade.
Não é novidade nem surpresa que esta obra não tenha obtido as graças da Igreja. Tanta podridão dentro de tão sagrado ambiente, partindo de pessoas cuja obrigação seria justamente a de preservar a pureza da comunidade em que se insere, provoca natural repulsa nos setores ultraconservadores desta instituição. Relações promíscuas entre padres e fiéis, a discussão maior de O Crime do Padre Amaro limita-se mesmo ao tal pecado da castidade, a grande aberração da Igreja católica, que, ao obrigar ao celibato os seus agentes, os leva a agir contra a sua própria natureza. Não seria exagero sugerir que a própria Igreja corrompe os seus padres, proibindo aquilo que é natural, e, portanto, divino. No caso de Amaro e Benito, e de tantos outros de que não temos conhecimento, a proibição levou à desobediência. E a primeira desobediência levou à segunda, gerando um círculo vicioso de "pecados" e de mentiras para encobrir tais pecados. O resultado foi a tragédia.


CONCLUSÃO
Uma obra como O Crime do Padre Amaro vem apresentar uma das principais características das obras de Eça de Queirós, que é mostrar a sociedade como num espelho, para vermos que triste realidade ela forma.
Ramalhete nos expõe muito bem essa aspiração de Eça em descortinar a sociedade e sua decadência, expondo trechos descritivos, detalhistas, colados de perto à banalidade real.
A quebra do celibato é uma das frágeis questões abordadas na obra, tocando fundo na ferida do catolicismo. Os padres, como homens que são, também caem em tentação, também pecam e têm vícios, quebrando votos e envolvendo-se em escândalos públicos.
Atento analista da sociedade, Eça de Queirós caracterizou a sociedade leiriense de beata e muito devassa, sendo Amaro o personagem escolhido para forjar as leis sagradas. Ele quebra os votos do celibato, planeja um fim para o filho, fruto de suas relações com Amélia, e expõe a mesma à morte, pois esta não resiste à falta do filho e ao processo secreto do parto.

REFERÊNCIAS
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 30ª Ed. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 165 ? 168.
QUEIRÓS, Eça de. O Crime do Padre Amaro. 25ª Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
RAMALHETE, Clóvis. Eça de Queirós. 4ª Ed. São Paulo: LISA; Brasília: INL, 1981.
SARAIVA, A.J. e LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. 17ª Ed. Porto: Porto Editora, 1996.
SERBIN, Kenneth P. Padres, Celibato e Conflito Social: uma história da Igreja Católica no Brasil: Companhia das Letras, 2008.
SODRÉ, Nelson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira AS, 1965