Através do filme “O Óleo de Lorenzo”, este artigo procurará expor o paradoxo científico: a razão e a fragmentação do conhecimento. A ciência, analisada do filme, exibe o cotidiano acadêmico e experimental: diante de um fato novo, neste caso a doença; a busca de uma resposta, ou seja, a cura; e como ainda não existem respostas, as pesquisas se tornam isoladas; a construção de hipóteses para obter respostas através de simpósio; a posterior socialização do conhecimento e a publicidade e o uso social da pesquisa.

O ensino das ciências e a própria ciência está em crise. Esta afirmação pode parecer aos olhos do leigo e do próprio homem de ciências como algo infundado, carente de fundamentos. Para o primeiro há a discordância pelos avanços tecnológicos nas áreas de informática e da medicina, para o segundo os avanços da engenharia genética e da física quântica garantem a primazia do sucesso científico do século XX e a certeza de outros avanços mais para o século XXI.

Mas, apesar de tantas certezas a maior delas é que a ciência está em crise. Para imprimir fundamento a tal assertiva, basta um olhar histórico com o objetivo amplo de observar a manifestação da crise. A primeira, que teve início em fins do século XIX, está representada pela Crise do Racionalismo. Este se impusera como concepção mecanicista ou logicista do Universo, expressa em soberbos sistemas filosóficos que, a partir de Descartes, dominaram o pensamento ocidental durante muitos anos.

A absolutização da Razão, que em Hegel identificaria o racional com real, haveria, entretanto, de ceder lugar a uma nova realidade cultural, marcada pela ausência do Absoluto e pela derrocada dos grandes sistemas filosóficos tradicionais. A ciência positiva, que preenche o espaço vazio deixado pela filosofia especulativa, negará o vigor causal da concepção mecanicista do Universo, já admitindo um certo grau de indeterminação no fenômeno, cujo futuro comportamento apenas pode-se prever através de métodos estatísticos fundados na lei das probabilidades. (BARBOSA, 1996).

Por outro lado, Barbosa (1996), argumenta que a rígida divisão dicotômica do pensamento filosófico entre idealismo e realismo manteve o mistério da existência humana "entre parênteses", o seu estudo a plano secundário. E o próprio homem é diversificado, pelas eliminações de seus aspectos subjetivos, em virtude de se lhe aplicarem os métodos das ciências exatas. Isto evidenciava o que Husserl denominou de "Crise das Ciências Européias".

A crise das ciências, entretanto, era apenas projeção de uma crise maior: a crise da civilização ocidental. Com efeito, o império da razão, que a Revolução Francesa julgara institucionalizado no "nouveau regime", cuja expressão mais alta era o culto da Humanidade e a crença numa era de justiça e progresso cedeu lugar a uma realidade histórica estigmatizada pela guerra, no plano internacional, pela hipertrofia do poder estatal, pela radicalização do mundo no binômio desenvolvimento-subdesenvolvimento e pelo conseqüente cepticismo do homem diante dos valores tradicionais da civilização cristã.

Face à frustração causada pela disparidade entre as mistas expectativas e as desoladoras realidades, só restariam ao homem um dilacerado sentimento de angústia, temor e desespero. E assim, a filosofia se volta para a existência e o existencialismo do homem, nome sugestivo, para expressar e enfatizar o seu compromisso histórico com mistério da vida e o "engagement" resultante da situação fática do seu "Ser no mundo".

O existencialismo, enquanto filosofia da crise (do homem e das ciências) e por suas próprias origens Kierkegaardianas, deve ser historicamente entendido como um complexo de doutrinas eminentemente antirracionalistas ou,símbolo de oficina e de arena onde o homem forja o seu projeto e trava a batalha quotidiana do seu próprio destino. Daí Jolivet conceituar o existencialismo como

[...] o conjunto de doutrinas segundo as quais a filosofia tem como objetivos a análise e a descrição da existência concreta, considerada como ato de uma liberdade que se constitui afirmando-se e que tem unicamente como gênese ou fundamento esta afirmando de si. (Apud ARANHA; MARTINS, 1986, p. 326).

É do existencialismo que surgem as primeiras idéias de ruptura, pela expressão contrária ao acomodamento da filosofia, das ciências e do homem frente à essência da vida quotidiana. E a interpretação da crise e da ruptura das ciências tem seu grande arauto em Gaston Bachelard, que desvenda o seu método geométrico de representação,

[...] isto é, delinear os fenômenos e ordenar em série os acontecimentos decisivos de uma experiência, eis a tarefa primordial em que se afirma o espírito científico. De fato é desse modo que se chega à quantidade representada, a meio caminho entre o concreto e o abstrato, numa zona intermediária em que o espírito busca conciliar matemática e experiência, leis e fatos. (BACHELARD, 1996, p 7).

A obra de Gaston Bachelard ergue uma ponte entre duas culturas muitas vezes apartadas: a científica e a humanista. Em nossa época de transformações contínuas, a filosofia bachelardiana destaca-se pelo caráter proteiforme da descoberta científica e da criação artística, e sugere a fuga da representação geométrica marcada pela autoridade canônica dos cientistas.

Esta representação pode ser verificada através do filme "O Óleo de Lorenzo", lançado nos EUA em 1992, com a distribuição da Universal Pictures e direção de George Miller, que ilustra bem esta situação, ao trazer à tona uma história real de uma criança que tem um distúrbio raro – ALD, uma doença extremamente rara que provoca uma incurável degeneração no cérebro, levando o paciente à morte em no máximo dois anos – . e, pelos prognósticos dos doutos cientistas, não viverá muito.

Já nas primeiras cenas um fato se sobressai: o sofrimento ao qual o menino (Loreonzo Odone) é submetido e as dificuldades da ciência em diagnosticar. A fala fria e científica do médico, ao informar o diagnóstico, contrasta com o desespero dos pais (Augusto e Micaela Odone). A mãe pergunta se não há uma remota possibilidade de cura, se ele tem certeza. O doutor responde, secamente: "Absoluta". Só resta a resignação.

Mas a curiosidade e a intuição dos Odone's se mostraram mais forte que o saber mítico constituído, e, buscam a compreensão do fenômeno que interefere no processo bioquímico que causa amolétia do filho, passando a desagradar aos arrogantes e presunçosos representantes da ciência, ao agir diretamente sobrea natureza e controlar a até então encontrolável licodistofia.

A produção "O Óleo de Lorenzo" exibea arrogância, dos guardiões do saber científico que não permitem concorrência, conduzindo o espectador a uma profunda reflexão acerca da contradição entre o saber científico acumulado pela academia e o saber não reconhecido no ambiente acadêmico.

Discriminados do método científico, os pais de Lorenzo, lutam para salvar o filho, e tornam-se autodidatas, numa afronta aos cientistas em vários momentos, que em nome da ética e da inconsistência quantitativa de dados que demonstrem o sucesso, relutam em aceitar os avanços obtidos nas pesquisas dos Odonne, realizadas externamente ao seu controle.

O controle, no entanto, não é mérito apenas da ciência representada pelos médicos, mas dos pais de filhos acometidos pela ADL, que resistem à tentativa de superação dos Odone ao saber constituído, pois estes se encontram fora da academia e por extensão distantes do saber científico daquela. Numa verdadeira mitificação da ciência e negação da legitimidade ao saber não-titulado. "Querem ensinar os médicos", repele uma mãe, que não concorda com a posição dos pais de Lorenzo, considerando mais uma afronta arrogante ao saber estabelecido.

E, neste momento, Augusto Odone, traz à tona a etimologia da palavra arrogante, originária do latim arrogare, que significa apropriar-se de. E, de fato, o que o pai de Lorenzo faz é, por meios próprios, apropriar-se do conhecimento científico.

O espírito científico de Augusto e Micaela Odone, são de certo modo encontrados em Gaston Bachelard o filósofo da ruptura:

Sente-se pouco a pouco a necessidade de trabalhar sob o espaço, no nível das relações essenciais que sustentam tanto o espaço quanto os fenômenos. O pensamento científico é então levado para 'construções' mais metafóricas que reais, para 'espaços de configuração', dos quais o espaço sensível não passa, no fundo, de um pobre exemplo. O papel da matemática na física contemporânea supera pois, de modo singular, a simples descrição geométrica. (BACHELARD, 1996, p. 7).

A ciência é constituída pelo trabalho coletivo dos operários da prova. A poesia é nosso modo de habitar o mundo através da celebração e da felicidade. Bachelard cimentou estas duas vias com igual simetria e força: a via apenas na aparência mais sábia da epistemologia, cujo universo é explorado e legitimado pela reflexão racional; e a via do devaneio poético, meditando através do material imaginário sobre a empresa sempre surpreendente da linguagem humana.

O saber racional e a criação poética não são excludentes. Embora opostos em determinadas instâncias, vão se encontrar no momento da imaginação criadora. A obra de Bachelard, ilustra ela própria este princípio dinâmico: uma unidade não harmônica de um conflito. A melhor expressão dessa unidade é a imagem recolhida por Jean Lescure num dos últimos cursos proferidos por Bachelard. Chama-se o ponto da vela:

Esse ponto que os dicionários descrevemcomoaquele onde se aplica a resultante de todas as açõesdovento sobre as velas ele o construía na interseçãodestaforça resultante com a força de resistência que o mar opõe ao avanço do navio[1].(Jean Lescure, 1963)

Este ponto tão variável como variam as forças e as resistências, é a obra humana em constante composição. Não existe propriamente repouso, se até o repouso é uma "vibração feliz". (BACHELARD, 1996, p. 7). A filosofia bachelardiana não é uma filosofia do ser, uma ontologia, mas uma filosofia da obra, do fazer-ser, da ontogênese como criação absoluta.

Na ciência e na poesia procura Bachelard um elo primordial entre o homem e o mundo, seja o homem diurno e suas elaboradas construções racionais, seja o homem noturno e a função do irreal da imaginação criadora. Estas duas vertentes da filosofia bachelardiana têm ocupado os críticos, que se perguntam da dualidade inconciliável ou da unidade funcional e dinâmica de sua obra.

Da obra de Bachelard, para efeitos deste artigo, interessa sobremaneira "o conhecimento geral como obstáculo ao conhecimento científico", afinal, segundo o filósofo:

Nada prejudicou tanto o progresso do conhecimento científico quanto a falsa doutrina do geral, que dominou de Artistóteles a Bacon, inclusive, e que continua sendo, para muitos, uma doutrina fundamental do saber" (BACHELARD, 1996, p. 69).

Sábias palavras, afinal, nós do Terceiro Mundo, colonizado e submetido ao pensamento da ciência européia, presenciamos em muitos momentos a aplicação deste conhecimento generalizado. Na literatura temos a crítica de Machado de Assis a estes procedimentos, no seu livro "O Alienista", quando o personagem principal, Dr. Simão Bacamarte, ao bem da clínica, condena uma cidade inteira ao internamento com base nos seus conhecimentos generalísticos da incipiente psicologia positivista, florescente na Europa. O positivismo do 'ilustre' personagem-cientista chega a extremos quando escolhe por esposa uma mulher que apresenta as características de robustez e vigor físico que o levam a concluir perfeita para a fecundação, aleitamento e personalidade materna. Ledo engano, a escolhida, após o casamento, constata-se estéril e de saúde frágil.

Um outro exemplo da literatura nacional que critica este "perigoso prazer intelectual na generalização apressada e fácil" (FICHANT, 1974, p. 128) é a obra "Tenda dos Milagres", do baiano Jorge Amado, que retrata a introdução do pensamento de Césare Lombroso e Gobineau, na Faculdade de Medicina, berço da ciência brasileira. Estes dois teóricos proclamaram teses horripilantes acerca da superioridade racial dos europeus em relação aos negros, mestiços e outros povos colonizados, mas que foram aceitas, acatadas e transmitidas como verdadeiras para gerações de médicos e criminalistas em todo o mundo, de forma arrogantemente determinísticas.

O filme "Óleo de Lorenzo", não descarta o saber instituído. Não apresenta contradição absoluta entre os tipos de saber: o autodidatismo do pai de Lorenzo se referencia no conhecimento científico acumulado e disperso; em contudo negar o saber científico, mas sim de uma determinada maneira de compreendê-lo e de agir.

"O Óleo de Lorenzo " baseado em história real, questiona a arrogância titulada, instituída e o intelectualismo desencantado do mundo: o saber cientificista, abstrato e sisudo, profundamente desvinculado do humano; um saber que não mergulha no mar da humanidade, um saber desumanizado por um método que despreza a intuição e amplia a vaidade.

REFERÊNCIAS

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto. 1996.

BARBOSA, Elyana. Gaston Bachelard: o arauto da pós-modernidade. Salvador:UFBA. 1996.

FICHANT, Michel. "O Racionalismo Aplicado de Bachelard" in:História da Filosofia, vol. 8, o Século XX, p. 127-146. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.

"O ÓLEO DE LORENZO". Direção de George Miller.


[1]Apud FICHANT, Michel. "O Racionalismo Aplicado de Bachelard" in:História da Filosofia, vol. 8, o Século XX, p. 127-146. Rio de Janeiro: Zahar, 1974, p. 128.