UNIÃO HOMOAFETIVA E ADOÇÃO DE CRIANÇAS POR CASAIS HOMOSSEXUAIS: SOBRARÁ PARA QUEM?

Por Márcio Melo*

"Todas as pessoas nascem livres e iguais, em dignidade e direitos."
(Trecho do Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos)

"Família é quem você escolhe pra viver/ Família é quem você escolhe pra você/ Não precisa ter conta sanguínea/ É preciso ter sempre um pouco mais de sintonia". (O Rappa)

Vi recentemente o filme "Sobrou Pra Você" (The Next Best Thing), produção norte-americana de 2000, dirigida por John Schlesinger e com Madonna e Rupert Everett nos papeis principais. Na verdade, foi para uma atividade da disciplina de Direito Civil (Famílias), na faculdade.
É um filme interessante, que está mais para o drama do que para a comédia. A sinopse. Abbie (Madonna) e Robert (Rupert Everett) são amigos com muita coisa em comum: jovens, têm uma visão não-convencional da vida, inteligentes, impulsivos e um terrível azar no amor. Eles fariam um par perfeito, se não houvesse um porém: Robert é gay. Um dia, quando muitos coquetéis e martinis os levam a um novo nível de intimidade, eles se transformam "acidentalmente" em pais. Um novo mundo então se abre para ambos e também para Sam, seu filho, que decidem criar como se fossem uma família comum.
Vendo esse filme, percebo como a nossa cultura está muitíssimo atrasada.

Comecemos com um relato de uma das melhores amigas da cantora Cássia Eller: "Cássia vivia machucada. Seus joelhos estavam sempre esfolados dos tombos que levava no palco. Jogava-se no chão com força e não estava nem aí. Seu filho Francisco Ribeiro Eller, o Chicão, na época com dois anos, dispara: ?mãe, você está machucado?. Ela instantaneamente responde: ?já te disse, não é machucado, é machucada. Machucado é homem, machucada é mulher!? e o garoto: ?mas mulher não namora mulher", e ela prontamente: ?claro que mulher namora mulher. Eu sou mulher e namoro a Eugênia?. E estava feito, sem drama, elaboração nem problema. Bastava a verdade".

O filho de Cássia ficou com a sua "segunda mãe". O processo que envolveu a guarda de Chicão mobilizou os pais de Cássia. O avô do menino pediu na justiça a guarda dele. "Ele tem 16 filhos extranconjugais. Por que não pega um desses para criar?", declarou Nancy Ribeiro, mãe de Cássia, que já estava separada há 17 anos, em entrevista para a revista Isto É Gente, na época do processo. Vários artistas assinaram manifestos a favor de Eugênia. Ela venceu a ação e criou jurisprudência no país. Com isso, Cássia, Eugênio e Chicão abriram uma pequena janela para que várias outras pessoas no Brasil possam enxergar a própria felicidade.

Segundo o jurista Paulo Lôbo, "a família sofreu profundas mudanças de função, natureza, composição e, consequentemente, de concepção, sobretudo após o advento do Estado social, ao longo do século XX". Falta o nosso ordenamento jurídico acompanhar essas mudanças. Hoje, segundo Lôbo, "o modelo igualitário da família constitucionalizada se contrapõe ao modelo autoritário do Código Civil anterior. O consenso, a solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas que a integram são os fundamentos dessa imensa mudança paradigmática que inspiraram o marco regulatório estampado nos arts. 226 a 230 da Constituição de 1988".

Mas vamos ao estudo e análise do filme. A autora Maria Helena Diniz aponta três acepções para a palavra família, que acabam designando três sentidos para a sua compreensão: sentido amplíssimo, acepção lata e acepção restrita. No que concerne ao sentido amplíssimo, abrangeria todos aqueles que estiverem ligados pela consangüinidade ou pela afinidade (CC. art. 1412, § 2° e Lei n. 1711/52 art. 241). Na acepção lata compreenderia os cônjuges e seus filhos bem como os parentes, afins ou naturais (CC. arts. 1591 e ss., Dec-Lei 3200/41 e Lei 883/49). Em sentido restrito abrangeria apenas os cônjuges ou conviventes e seus filhos (CC. arts 1567 e 1716), ou a comunidade formada por qualquer dos pais e descendentes (CF. 226, §§ 3° 4°). Sendo assim, considero que aquela família seria conceituada como sendo uma família no sentido amplíssimo.

Os laços familiares encontrados no filme são os melhores possíveis, normais, como em toda família normal. O cotidiano da família era tranquilo, comum, como de qualquer outra família. A única diferença que pude observar é que, até os sete anos, o pai do garoto havia omitido para ele o fato dele ser gay, para preservar a criança. Não podemos esquecer de lembrar dos PRINCÍPIOS FUDAMENTAIS da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Aquela família observou esses princípios, assim como também os GERAIS ? igualdade, liberdade, afetividade, convivência familiar e melhor interesse da criança. Aqui cabe um comentário de Maria Helena Diniz ao artigo 1.630 do Código Civil, que define como sendo poder familiar aquele exercido pelos entes da família: "Um conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido em igualdade de condições por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção dos filhos." Nesse sentido, considero que o princípio da convivência familiar foi rompido e descumprido no momento em que o pai perdeu o direito de ver o filho.

Quanto à orientação sexual do indivíduo ser empecilho para a constituição de uma família, vai depender de qual sociedade estamos nos referindo. Mas para aquela família do filme, especificamente, era tranquilo, com uma celeuma aqui ou ali, mas o casal e a criança "tiravam de letra", até o surgimento do novo namorado de Abbie. Mas tudo é possível, quando as pessoas se amam, todas as diferenças são esquecidas e todos os preconceitos são combatidos.

Já a família de Robert era a chamada família "normal", ou em sentido restrito. Claro que com um filho que o pai, principalmente, a princípio, não aceitava, devido à sua opção sexual.

A família do filme pode ser considerada uma família, sim. O casal namorou, teve um filho, construiu uma casa, foi morar junto, com emprego e estabilidade financeira. O nosso ordenamento jurídico ainda não fez o que o Uruguai e a Argentina já fizeram, mas na prática, no cotidiano, isso já é uma realidade.

Quanto à adoção de crianças por casais homossexuais é possível, sim. O nosso ordenamento jurídico já está sinalizando positivamente nessa direção, concedendo adoção para casais homossexuais. O primeiro caso de uma criança adotada oficialmente por um casal homossexual ocorreu em 2006, em Catanduva, no interior de São Paulo. Os riscos de crianças adotadas por casais homossexuais apresentarem problemas psicológicos são os mesmos de uma adotada por um casal heterossexual. Paulo Lôbo afirma que "diversos estudos de especialistas têm mostrado o fato de que uma criança criada por pais de mesmo sexo não tem impacto negativo em relação a outra criada por pais heterossexuais. Ao contrário, considera-se ser do melhor interesse da criança sua adoção regular. Na Alemanha, a Lei de Parceria Registrada, de 2005, permitiu que o parceiro homossexual possa adotar o filho biológico do outro. O Canadá foi mais longe, com a lei de julho de 2005 ? ao lado de outros países que enfrentaram o problema -, ao admitir o casamento civil de pessoas do mesmo sexo, com os mesmos efeitos do casamento heterossexual, inclusive para fins de adoção conjunta". Na verdade, o que conta muito é a forma como o casal lida com isso. Se a criança questionar por que a família dela é diferente da dos colegas, eles têm que explicar. É preciso que haja diálogo sempre.

O respeito às diferenças ganha cada vez mais força na sociedade, mas ainda é preciso muito para acabar com o preconceito. Paralelo às muitas lutas, correm os esforços políticos. Uma dessas ações é a aprovação do projeto de lei 5003, de 2001, da deputada federal Iara Bernardi (PT/SP), que criminaliza a homofobia em todo o país. De 2001 para cá, aumentou significativamente o número de concessão de direitos a casais homossexuais, tais como patrimoniais e de pensão. Também há um número maior de juízes concedendo a adoção, mesmo sabendo tratar-se de um casal homossexual. O maior medo por parte dos setores mais conservadores da sociedade é a constituição de família por parte dos homossexuais. Afinal, a família tradicional é o grande bastião dos políticos conservadores. Aqui cabe a trazer a opinião da grande jurista Maria Berenice Dias, especialista em União Homoafetiva, sobre o tema: "Necessário é encarar a realidade sem discriminação, pois a homoafetividade não é uma doença nem uma opção livre. Assim, descabe estigmatizar a orientação homossexual de alguém, já que negar a realidade não irá solucionar as questões..."

O casamento de pessoas do mesmo sexo, com pleno reconhecimento de seus direitos e sem nenhuma diferença perante os outros cidadãos, já existe em alguns países. Em dezembro de 2007, o Congresso uruguaio aprovou a lei da "união concubinária". Com isso, o Uruguai se tornou o primeiro país latino-americano a legalizar o matrimônio entre gays. O mesmo também já é uma realidade na Argentina, país vizinho ao nosso. E na Cidade do México idem. Os países pioneiros foram a Dinamarca, que desde 1989 passou a permitir a união civil a casais homossexuais, com os mesmos direitos dos casais heterossexuais. E, em 1993 e 1994, Noruega e Suécia, respectivamente, fizeram o mesmo. Na Holanda, parceiros homossexuais podem se casar e adotar desde 2000. na Bélgica, o casamento homossexual é permitido desde 2003 e a adoção por casais homossexuais desde 2006. No Canadá e na Espanha, o casamento gay é permitido desde 2005.

Por aqui, como não poderia ser diferente, a coisa anda devagar, aos trancos e barrancos, sem pressa. Por aqui, o exercício de direitos dos gays é negado por questões exclusivamente religiosas, como no caso do casamento, por exemplo. Enquanto isso ocorrer, não seremos uma sociedade efetivamente democrática. Impressiona a quantidade de pessoas que lutam acirradamente para impedir que casais possam viver uma vida feliz juntos, porque esta relação contraria os dogmas da sua fé. Lutam para que o Direito impeça as pessoas de expressarem seu afeto, seu carinho, seu amor. A escritora Debbie Ford, no livro "O Efeito Sombra", traz um caso emblemático que aconteceu nos EUA, quando o famoso pastor Ted Haggard, que falava fervorosamente contra a imoralidade e o homossexualismo, mais adiante foi descoberto num relacionamento gay, regado a drogas. Ela encerra o relato de vários casos com a seguinte ponderação: "Eu poderia literalmente dar milhares de exemplos de pessoas que em público condenam os outros, menosprezando o comportamento que elas próprias têm."

Sendo assim, concluindo, consideramos que já chegou a hora de aprovar uma lei que permita o casamento dos homossexuais no Brasil, mesmo porque o Direito não pode servir de cão-de-guarda da intolerância religiosa alheia. Que os casais homossexuais também possam se casar e ser felizes para sempre, até que a morte ? ou o divórcio ? os separe.


REFERÊNCIAS

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed.rev, atual. E ampl. 3.tir. ? são Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. V, Direito de Família. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
FORD, Debbie. O Efeito Sombra / Deepak Chopra, Debbie Ford, Marianne Williamson; tradução: Alice Klesck. ? São Paulo: Lua de Papel, 2010.
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 3.ed. ? São Paulo: Saraiva, 2010.

Márcio Melo, professor de História, estudante de Direito, casado e pai de uma filha linda de dez anos, que se esforça para que ela aceite as pessoas como elas são, e que as diferenças, num mundo plural como o nosso são possíveis, aceitáveis e cabíveis sim.