SUMÁRIO:

1. INTRODUÇÃO. 2. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. 2.1 Conceituação. 2.2 Contexto Histórico. 2.3 Finalidade. 2.4 Teorias da maior e menor desconsideração. 3. Considerações Finais. 4. Referências

 

RESUMO.

O presente artigo busca estudar a personalidade jurídica das sociedades, em especial a das empresárias, definindo, inicialmente, a figura da sociedade empresária como tal, os efeitos decorrentes desta personalidade jurídica, e ao final, analisar, as consequências do abuso em nome da pessoa jurídica, ensejadores de responsabilidade pessoal dos sócios através do instituto da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, pontuando suas características principais, bem como a crítica à aplicação da teoria na legislação consumerista, face a teoria da imputação direta da responsabilização dos administradores, nos casos da prática de atos ilícitos.

 

PALAVRAS–CHAVE: Obrigações; Personalidade; Sociedade; Desconsideração; Sócios.

 

1. INTRODUÇÃO.

                  

O tema abordado no presente artigo tem como finalidade o exame do instituto jurídico da “Desconsideração da Pessoa Jurídica”, tendo por supedâneo o disposto insculpido no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor – Lei 8078/1990, bem como dos artigos 45, 50, combinado com os artigos 981 e seguintes do Código Civil, entre outros, e sua aplicação no Direito Empresarial.

Tem-se que o interesse pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica não é tão recente, pois, tanto a doutrina como a jurisprudência brasileira já mencionavam o instituto. Observa-se que o tema ganhou maior atenção com o advento do Código Civil de 2002, tratando-se, portanto, de tema inquestionável atualidade.

Como cediço, a idéia de personalidade esta intimamente ligada a de pessoa, pois exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações. Entretanto, o Direito reconhece a personalidade não só aos seres humanos, mas igualmente aos entes que se constituem de agrupamentos de indivíduos que se associam para a realização de uma finalidade econômica...como é o caso das sociedades.

Neste respeito, segundo o douto André Santa Cruz, “o princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, consagrado no art. 1024 do Código Civil, constitui uma importantíssima ferramenta jurídica para o empreendedorismo..., e de estímulo ao exercício de atividade econômica, sobretudo em função da adoção do regime capitalista de mercado pela Constituição Federal”.

Assim sendo, considerando esses fatos, a sociedade empresária, por possuir natureza de pessoa jurídica, ou seja, sujeito de direito autônomo em relação aos seus sócios, pode ser em certas circunstâncias, ser instrumento de fraude contra credores, ou torna-se manipulável por sócios ou administradores inescrupulosos, ou mesmo com conhecimento de outros sócios, objetivando a consumação de fraudes ou mesmo abuso de direitos cometidos por meio da personalidade adquirida, ao ponto de se afirmar que no "Brasil há empresas pobres, mas empresários ricos". Foi para coibir a prática de atos ilícitos, abusos, confusão patrimonial ilícita ou ilegal, que nasceu a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica.

 

 

2. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica dos entes coletivos surgiu como um mecanismo de repressão aos abusos e fraudes cometidos através da pessoa jurídica.

Discorrendo acerca da teoria, preleciona Fiúza (2004, pag.143):

A inteligência humana criadora e produtiva também tem seu reverso. Logo se percebeu que a segurança atribuída pela personalidade jurídica, no que tange a separação patrimonial e à limitação da responsabilidade de seus membros, logo poderia ser utilizada para fins diversos dos sociais. A partir daí, surge uma teoria que visa considerar ineficaz a estrutura da pessoa jurídica quando utilizada desvirtuada mente.

Desse modo, a teoria tem por objetivo principal, tornar ineficaz a autonomia da pessoa jurídica em relação a seus componentes, somente quando essa mesma autonomia tenha servido de escopo para fraude. É mister ressaltar que, de modo algum é anulada a sua personalidade, apenas, procura-se imputar aos sócios os resultados negativos que caberiam à pessoa jurídica (ALVES, 2001, pag.259).

Assim, quando restar configurada a fraude ou abuso de direito, torna-se possível desconsiderar a personalidade atribuída à pessoa jurídica "de modo a atingir os verdadeiros praticantes dos atos danosos, surpreendendo uma realidade que se encontra subjacente, imputando efeitos jurídicos além daquele sujeito a que se destinou originariamente". (GONÇALVES, 2004, pag. 45).

Pode-se então observar que o princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, expresso no artigo 20 do Código Civil de 1916, não constitui algo absoluto, ocorrendo, portanto, a sua relativização quando os membros que compõem a sociedade agirem em desacordo ao ordenamento jurídico.

 

 

 

2.1 Conceituação.

 

Antes de conceituar a teoria em epígrafe, é imprescindível que se faça a distinção entre despersonalização e desconsideração da personalidade jurídica, tendo em vista que, ao contrário do que possa parecer, essas duas expressões não são sinônimas e nem tampouco se confundem.

Despersonalizar significa anular definitivamente a personalidade, o que não acontece na desconsideração, pois, nesta, não há que se falar em extinção da personalidade jurídica, mas apenas na retirada momentânea de sua eficácia.

Na desconsideração, visa-se, portanto, a superação episódica da pessoa jurídica, para que se alcance o sócio infrator com o intuito de protegê-la contra atos abusivos ou ilegais cometidos pelo mesmo.

Corroborando o entendimento acima, Koury (2003, pag. 48) esclarece que na despersonalização:

[...] visa-se à anulação da personalidade jurídica, fazendo-se desaparecer a pessoa jurídica como sujeito autônomo por lhe faltarem condições de existência, como nos casos de invalidade do contrato social ou de dissolução das sociedades.

Ao passo que, segundo a mesma autora, na desconsideração "o que se pretende é desconsiderar a forma da pessoa jurídica, no caso particular, sem negar sua personalidade de maneira geral". (KOURY, 2003, pag. 48).

Desse modo, quando necessário e diante do caso concreto, o que poderá advir é a desconsideração e não a despersonalização da pessoa jurídica, vez que trata-se de um instituto muito importante para ser destruído. Não há, portanto, de forma alguma, nulidade da personalidade jurídica, mas sim, preservação da pessoa jurídica.

Diante do exposto, conclui-se que despersonalizar não se compatibiliza com desconsiderar, tendo em vista que aquela conduz à extinção da pessoa jurídica, enquanto esta suspende temporariamente os efeitos da personificação para assim, proteger os sócios, terceiros de boa-fé e, até mesmo, a própria pessoa jurídica.

Após as considerações feitas acima, destacar-se-á algumas concepções doutrinárias concernentes à teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ressaltando a impossibilidade de se formular um só conceito, tendo em vista a própria complexidade que envolve o assunto.

Discorrendo acerca da teoria em comento, Koury (2003, pag. 86) afirma ser difícil exprimir de maneira precisa, um conceito único, aplicável a todas as hipóteses tidas como justificadoras da desconsideração, porém, conclui que a desconsideração da personalidade jurídica:

Consiste em subestimar os efeitos da personificação jurídica, em casos concretos, mas, ao mesmo tempo, penetrar na sua estrutura formal, verificando-lhe o substrato, a fim de impedir que, delas se utilizando, simulações e fraudes alcancem suas finalidades, como também para solucionar todos os outros casos em que o respeito à forma societária levaria a soluções contrárias à sua função e aos princípios consagrados pelo ordenamento jurídico.

Para Farias (2005, pag. 302):

A disregard doctrine significa, essencialmente, o desprezo episódico (eventual), pelo Poder Judiciário, da personalidade autônoma de uma pessoa jurídica, com o propósito de permitir que os seus sócios respondam com o seu patrimônio pessoal pelos atos abusivos ou fraudulentos praticados sob o véu societário. Enfim, é a permissão judicial para responsabilizar civilmente o sócio, nas hipóteses nas quais for o autêntico obrigado ou o verdadeiro responsável em face da lei ou do contrato.

Citado por Gonçalves (2005, pag. 45), Marçal Justen Filho conceitua a desconsideração da personalidade jurídica como "a ignorância, para casos concretos e sem retirar a validade de ato jurídico específico, dos efeitos da personificação jurídica validamente reconhecida a uma ou mais sociedades, a fim de evitar um resultado incompatível com a função da pessoa jurídica".

Nesse contexto, a desconsideração constitui "instrumento de aperfeiçoamento da pessoa jurídica, pois concilia a função primordial da sua criação e impede o uso contrário ao direito". (GONÇALVES, 2005, pag. 46).

Marlon Tomazette (2002, pag. 4) formulou a definição da desconsideração da personalidade jurídica como sendo "a retirada episódica, momentânea e excepcional da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a fim de estender os efeitos de suas obrigações à pessoa de seus sócios ou administradores, com o fim de coibir o desvio da função da pessoa jurídica, perpetrada pelos mesmos".

Com base nos conceitos supracitados cumpre enfatizar que a teoria em destaque não visa a destruição do histórico princípio da separação patrimonial da sociedade e seus sócios, "mas, contrariamente, servir como mola propulsora da funcionalização da pessoa jurídica, garantindo as suas atividades e coibindo a prática de fraudes e abusos através dela" (FARIAS, 2005, pag. 300).

 

 

 

2.2 Contexto Histórico.

 

A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica consolidou-se nos tribunais norte-americanos, sob a denominação disregard doctrine, expressão adotada por grande parte da doutrina brasileira.

Tendo sido "desenvolvida e amplamente difundida no Direito ianque, as origens remotas do instituto vêm sendo fincadas em precedentes jurisprudenciais colhidos no sistema da common law". (FARIAS, 2005, pag. 301).

O direito inglês é reportado pela maioria doutrinária com tendo sido a gênese da teoria da desconsideração. Assim, "registros doutrinários informam que o primeiro julgado em que foi aplicada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi no conhecido episódio de Salomon v. Salomon & Co. Ltd., ocorrido na Inglaterra no final do século XIX" (FIUZA, 2004, pag. 143).

Neste famoso caso, Aaron Salomon, próspero comerciante individual na área de calçados, visando constituir uma sociedade, reuniu seis membros de sua própria família, cedendo para cada um apenas uma ação representativa, reservando para si vinte mil, transferindo assim, seu fundo de comércio para a sociedade. Além das ações, talvez prevendo a quebra da empresa, Salomon emitiu títulos privilegiados, adquirindo-os posteriormente e assumindo, então, a condição de credor privilegiado da companhia (GAGLIANO, 2004, pag. 236).

Ocorre que a companhia mostrou-se inviável, entrando em liquidação após um ano, sendo que os credores sem garantia ficaram insatisfeitos. "A fim de proteger os interesses de tais credores, o liquidante pretendeu uma indenização pessoal de Aaron Salomon, uma vez que a companhia era ainda a atividade pessoal do mesmo, pois os demais sócios eram fictícios" (TOMAZETTE, 2002, pag. 4).

Diante deste caso:

O juízo de primeiro grau e a Corte de apelação desconsideram a personalidade da companhia, impondo a Salomon a responsabilidade pelos débitos da sociedade. Tal decisão foi reformada pela Casa dos Lordes, que prestigiou a autonomia patrimonial da sociedade regularmente constituída, mas estava aí a semente da disregard doctrine. (TOMAZETTE, 2002 ,pag. 4).

Relata Gagliano (2004, pag. 237) que:

Apesar de Salomon ter utilizado a companhia como escudo para lesar os demais credores, a Câmara dos Lordes, reformando as decisões inferiores, acatou a sua defesa, no sentido de que, tendo sido validamente constituída, e não se identificando a responsabilidade civil da sociedade com a do próprio Salomon, este não poderia, pessoalmente responder pelas dívidas sociais".

A maioria doutrinária reputa o caso acima narrado, como o leading case de desconsideração da pessoa jurídica. No entanto, Koury (2003, p. 64), discorda, sustentando que, na realidade, a primeira manifestação da Disregard Doctrine, ocorreu em 1809, nos EUA, quando o Juiz Marshall, no caso Bank of United States x Deveaux, conheceu da causa:

Com a intenção de preservar a jurisdição das cortes federais sobre as corporations, já que a Constituição Federal americana, em seu artigo 30, seção 2, limita tal jurisdição às controvérsias entre cidadãos de diferentes estados.

Dessa forma, não cabe aqui discutir a decisão em si, a qual foi repudiada pela doutrina da época, mas "importa salientar o fato de que, já em 1809, as Cortes norte – americanas, empenhavam - se em erguer o véu para alcançar e considerar as características dos sócios individuais". (FREITAS, 2004, pag. 58).

2.3 Finalidade.

 

Para o melhor desenvolvimento deste trabalho, é de suma importância, esclarecer a finalidade da teoria em tela.

Não obstante ser um princípio jurídico a assertiva de que as pessoas jurídicas têm existência distinta dos seus integrantes, muitos doutrinadores defendem a tese de que a doutrina em questão é utilizada, sobretudo, para demonstrar que a autonomia patrimonial não pode ser encarada como um dogma, um direito absoluto que acabe dificultando a própria ação do Estado na realização da perfeita e boa justiça.

Segundo Fábio Ulhoa Coelho (2002, pag. 45):

A teoria da desconsideração visa coibir fraudes perpetradas através do uso da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Sua aplicação é especialmente indicada na hipótese em que a obrigação imputada à sociedade oculta uma ilicitude. Abstraída, assim, a pessoa da sociedade, pode-se atribuir a mesma obrigação ao sócio administrador (que, por assim dizer, se escondiam atrás dela), e , em decorrência, caracteriza-se o ilícito. Em síntese, a desconsideração é utilizada como instrumento para responsabilizar sócio por dívida formalmente imputada a sociedade.

De forma sucinta, Freitas (2004, pag. 74) declara que "a teoria da desconsideração da personalidade jurídica visa desconsiderar no caso concreto, respeitando determinados limites, a pessoa jurídica para alcançar as pessoas ou bens que se escondem sob o manto da pessoa jurídica".

Em síntese, pretende a teoria penetrar no âmago da sociedade, superando ou desconsiderando a personalidade jurídica, para atingir e vincular a responsabilidade dos sócios.

Para Gagliano (2004, pag. 237), "em linhas gerais, a doutrina da desconsideração pretende o superamento episódico da personalidade jurídica da sociedade", quando ficar configurado o abuso, fraude, ou simples desvio de função, objetivando, desse modo, "a satisfação do terceiro lesado junto ao patrimônio dos próprios sócios, que passam a ter responsabilidade pessoal pelo ilícito causado".

Versando sobre esta superação episódica Grinover (2004, pag.5), esclarece que:

Essa superação da personalidade jurídica, suprimindo-se a autorização legal para separação de patrimônio, e a atribuição (imputação) de responsabilidade direta aos indivíduos que compõem a sociedade, não é incompatível ou mesmo contraditória com as razões que inspiraram a criação das pessoa jurídica.

Na visão de Edmar Oliveira, Andrade Filho (2005, p. 1), "em essência a idéia de" desconsideração da personalidade jurídica " visa a aportar critérios para determinação dos limites imanentes ao uso da personalidade jurídica na vida social para agregar interesses comuns ou explorar atividades econômicas".

Koury (2003, pag. 89), ressalta que "a disregard doctrine é exceção, e não regra, prevalecendo sempre a idéia de pessoa jurídica quando forem obedecidos os limites fixados no ordenamento para a sua utilização".

Dessa forma, conclui-se que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não objetiva de maneira alguma a extinção da personalidade jurídica, muito pelo contrário, sua aplicação, quando necessário, busca a proteção bem como o fortalecimento da pessoa jurídica.

 

2.4 Teorias da maior e menor desconsideração.

 

A doutrina costuma apresentar duas formulações distintas para justificar a teoria em estudo, quais sejam, a teoria maior e menor da desconsideração.

A teoria maior da desconsideração, também denominada de teoria subjetiva, condiciona-se à ocorrência de fraude ou abuso de direito, levando-se em consideração a intenção do agente como requisito de maior importância para a aplicação do instituto em tela.

Nesse sentido, Fábio Ulhoa (2002, pag. 44) afirma que esta “elegeu como pressuposto para o afastamento da autonomia patrimonial da sociedade empresária o uso fraudulento ou abusivo do instituto”, completando, ainda que, “cuida-se, desse modo, de uma formulação subjetiva, que dá destaque ao intuito do sacio ou administrador, voltado à frustração de legitimo interesse do credor”.

Esta concepção subjetivista foi apresentada por Rubens Requião (2002, pag. 752) que assim sustentava,

“Ora, diante do abuso do direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o dever de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos.”  

 

Assim, para a teoria maior, estando presentes a fraude ou abuso do direito, o magistrado deve aplicar ao caso concreto a teoria, visando alcançar o patrimônio dos sócios que aproveitam-se da pessoa jurídica para mascarar a prática de seus atos desonestos.

Por outro lado, há os defensores da teoria menor da desconsideração, onde o critério da subjetividade praticamente inexiste, em que o simples prejuízo do credor já enseja o afastamento da autonomia patrimonial, analisando-se tão-somente o dano em si, independendo, portanto, da existência de elementos anímicos ou intencionais.

A teoria menor da desconsideração, linha objetivista apregoada por Fábio Konder Comparato, tem a finalidade de combater o subjetivismo apresentado pela teoria maior, apontando, ainda, a confusão patrimonial entre controlador e sociedade controlada como critério fundamental para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

Trazendo a distinção entre as teorias, maior e menor da desconsideração, Farias (2005, pag. 304) faz a seguinte explanação:

A teoria maior propugna que somente poderá o juiz, episodicamente, caso concreto, ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica como forma de combate a fraude e abusos praticados através dela. Esta teoria diferencia, com nitidez, a teoria da disregard de outras figuras jurídicas que imponham a responsabilização pessoal do sócio (como a responsabilidade por ato de má gestão nas sociedades anônimas).

De outra banda, a teoria menor trata como desconsideração da personalidade jurídica toda e qualquer hipótese de comprometimento do sócio por obrigação da empresa. Centra o seu cerne no simples prejuízo do credor para afastar a autonomia patrimonial.

 

Cumpre ressaltar que a teoria maior da desconsideração é a de maior aceitação pela doutrina brasileira. Contudo, em várias oportunidades, observa-se a aplicação da teoria menor.

Pois bem, considerando, esse arcabouço teórico, no Brasil, a primeira disposição sobre a desconsideração da personalidade encontra-se na Lei nº 8.078/90 - o Código de Defesa do Consumidor - que, no seu art. 28, estabelece um rígido sistema de legalidade ao dispor que:

“[...] o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração de lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração".

“ §5º.[...] também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores". 

 

Nesse regramento, consagra as possibilidades de desconsideração da personalidade jurídica quando há a demonstração de mero prejuízo do credor e a prática de atos ilícitos ou com infração dos estatutos ou contrato social dos administradores ou sócios.

Muito se tem discutido a configuração dessas possibilidades. Para muitos, com base no entendimento do STJ, a hipótese do caput do artigo 28, CDC, se aplicaria a teoria da imputação direta e pessoal de responsabilização dos administradores, pela prática dos atos ilícitos, não se tornando necessária a desconsideração da personalidade jurídica. Por outro lado, na hipótese do §5º, não se justificaria a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, por dívidas sociais, pois estaria se configurando um violento golpe contra a segurança jurídica, gerando danos imensuráveis para o mercado. 

Além do regramento já citado, encontra-se outros exemplos nas leis brasileiras que informam o regime legal da desconsideração e a responsabilização de sócios e administradores; nestes casos não se tratando, a rigor, de desconsideração, mas, sim, de responsabilização direta.

No Entanto, a regra matriz sobre a desconsideração da personalidade jurídica, ocorreu como bem lembrado pelo doutrinador André Luiz Santa Cruz, com a edição do Código Civil de 2002, em que a teoria da desconsideração recebeu novo tratamento legislativo. Com efeito, o art. 50 do Código Civil estabeleceu que "em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. "

Ao prever a aplicação da teoria da desconsideração apenas quando demonstrado o abuso de personalidade jurídica, e caracterizando a ocorrência deste nos casos de desvio de finalidade e confusão patrimonial, o Código Civil manteve-se fiel aos postulados fundamentais da disregard doctrine.   

Diante disso, a fim de corroborar o dito, tem se verificado que a jurisprudência dos Tribunais Pátrios acolheu a teoria em exame, conforme se depreende das seguintes ementas, dos arestos abaixo:

TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA OU DOUTRINA DA PENETRAÇÃO- CABIMENTO - "A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica ou Doutrina da Penetração (Disregard of legal entity, in Rubens Requião, "Curso de Direito Comercial", Saraiva, 4ª.ed., 1974, p.239), busca atingir atos de malícia e prejuízo. A jurisprudência aplica essa teoria quando a sociedade acoberta a figura do sócio e torna-se instrumento de fraude (RT 479/194; 552/181; Ap.458.453/6, 4ª.C, Rel.Octaviano Lobo)...Há necessidade de demonstração que os sócios agiram dolosamente...que a sociedade foi usada como biombo, para prejudicar terceiros, ficando o patrimônio dos sócios astuciosos longe do alcance do processo de execução." (Juiz Octaviano Santos Lobo, 1º.TAC, AI 554.563/3, 4ª.C, j.27.10.93) cit. in  RT 708, p.117. 

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TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - "...A Doutrina do superamento da personalidade jurídica tem por escopo impedir a consumação de abusos e fraudes." (2.ºTACIVIL - 8.ª Câm.; Ag.de Instr. n.º 505.963-0/0- Mogi-Guaçu; Rel.Renzo Leonardi; j.18.09.1997) AASP, Ementário, 2037/93e. 

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TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA –EXTINÇÃO DA SOCIEDADE COM EXISTÊNCIA DE DÉBITO - "Execução - Penhora - Sociedade - Bens pessoais do sócio - Dissolução com existência de débito - Admissibilidade da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Formado o título executivo judicial em face da  sociedade e apurada a dissolução irregular desta, a pretensão satisfativa pode ser dirigida contra o patrimônio particular do sócio."(2.ºTACIVIL - Ap.s/Rev.469.245 - 5.ª C.- Rel.Juiz Laerte Sampaio - j.29.01.1997 ) AASP, Ementário, 2009/3.

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Destarte, como bem demonstrado, a teoria da desconsideração da pessoa jurídica fora agraciada pela majoritária jurisprudência brasileira, possuindo aplicabilidade em nosso ordenamento jurídico, na medida em que se trata de instrumento de repressão a atos fraudulentos.

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

                                                                                        

O trabalho apresentado neste artigo foi a consequência da análise sobre o instituto jurídico da Desconsideração da Personalidade das Sociedades Empresárias, que possui uma estreita relação com os ideais de justiça, igualdade e tutela aos princípios norteadores do Direito.

Conforme demonstrado, a desconsideração da personalidade jurídica visa salvaguardar interesses de terceiros contra fraudes e atos ilícitos praticados utilizando indevidamente a personalidade da sociedade, mas sua aplicação exige do magistrado zelo, parcimônia e observância do regime legal em vigor, que não admite uma prática generalizada.

Somente verificando, mediante prova cabal e incontroversa, a existência de fraude ou abuso de direito, ou o desvio de finalidade da pessoa jurídica, é que é admitida sua aplicação como forma de reprimir o uso indevido, não se constituindo, portanto como panacéia para atender a toda e qualquer situação, mas, como medida de exceção, pois, reserva-se no Direito Brasileiro a regra geral da distinção entre os patrimônios, em prol do principio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas.

Portanto, simples indícios e presunções de atos abusivos ou fraudulentos, ou ainda a simples incapacidade econômica da pessoa jurídica, não autorizam a aplicação do instituto em tela.

Ademais, dentro de uma perspectiva civil – constitucional não se pode olvidar que a pessoa jurídica deve respeitar o supremo principio da dignidade da pessoa humana, ínsito a nossa Carta Magna, desempenhando sua função social inclinada para o cumprimento das atividades para as quais foi criada, atuando, ainda, dentro dos limites da proporcionalidade e razoabilidade, sob pena de incidir em abuso de direito.

 

REFERÊNCIAS.

 

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FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito civil. Teoria geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Júris, 2005.

 

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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. vol. 1.

 

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