PONDERAÇÕES ACERCA DO CRIME DE RACISMO

1. Introdução

O primeiro brado contra o preconceito e a discriminação humana foi dado por Cesare Beccaria(1) em 1.764 com a obra "Dos Delitos e das Penas". Foi, contudo, com a Declaração dos Direitos do Homem (Revolução Francesa) que o mundo "se abriu" em termos de preconceito e discriminação.

A igualdade de todos perante a lei nas Constituições Brasileiras foi declarada a partir da Constituição de 1.824. Contudo, ela excluía da definição de cidadão a população negra escravizada, à qual não se reconheciam os mais elementares direitos civis. Para efeito do direito penal, o negro era considerado responsável imputável: sendo acusado, era considerado pessoa; mas, sendo vítima, era tido como coisa.

O princípio da igualdade começa a ser associado à proibição de discriminação em razão de raça na Carta Magna de 1.934, porém, foi na Constituição de 1.967 onde ficou determinado que a lei definiria preconceito racial, com, inclusive, punição para o delito. A primeira lei efetivamente promulgada em combate à discriminação foi a Lei nº 1.390/51 (Afonso Arinos) porém considerou a discriminação contra raça e cor mera contravenção penal.

Artigo 5º, inciso XLII da constituição federal de 1988

A Constituição de 1.988 representa um marco no tratamento político-jurídico da temática racial, tendo o legislador atribuído à "prática de racismo" o estatuto da inafiançabilidade, imprescritibilidade e a cominação de pena de reclusão, destacando-a das demais práticas discriminatórias. Além deste dispositivo, também encontramos referências a "preconceito" e "racismo" no artigo 3º, inciso IV da CF/88, constituindo um dos objetivos do Brasil: "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. E, por fim, também, no artigo 4º, inciso VIII, dispõe-se que: em suas relações internacionais, o Brasil é regido pelo princípio do "repúdio ao terrorismo e ao racismo".

2. Significado das expressões : Discriminação, Racismo e Preconceito

A doutrina entende que o racismo (que é o preconceito envolvendo raça ou cor) é espécie do gênero preconceito (este último pode envolver classe, nível social, idade, estado civil, condição de portador de deficiência, etc).

Assim, o racismo, segundo Hédio Silva Júnior(2) consiste-se num fenômeno histórico cujo substrato ideológico preconiza a hierarquização dos grupos humanos. O Racismo/Discriminação é a ação que discrimina, consistente em ato (omissivo ou comissivo) que viola direitos, com base em critério racial, independente do motivo que lhe deu causa. Diferentemente, o preconceito é a intolerância genérica, indeterminada, consiste em conceitos prévios, idéias preconcebidas acerca de certos indivíduos, grupos, fazendo associação desses com atributos ultrajantes, depreciativos ou estigmatizantes.

Dessa forma, o racismo se configura no momento em que o agente pratica o ato contra pessoa determinada. A noção de raça guarda estreita relação com a cor da pele e/ou outros traços fenotípicos. A nossa Constituição Federal não conceituou o racismo, nem tampouco a lei em vigor nº 7.716/1.989 (que define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor). A Declaração sobre a Raça e os preconceitos raciais (proclamada pela Conferência Geral da ONU de 1.978), contudo, define o racismo como sendo:

"O racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas em preconceitos raciais, os comportamentos discriminatórios, as disposições estruturais e as práticas institucionalizadas que provocam a desigualdade racial, ..."

O preconceito, assim como o racismo, desde que circunscrito apenas à consciência individual, ao foro íntimo, não é passível de sanção penal ou mesmo cível (ao menos no nosso Estado Democrático de Direito).

3. Concurso Aparente de Normas

A referida lei nº 7.716/1989 (Lei Caó) revogou as suas antecessoras (Lei 7.438/85 e Lei .1390/51), já que regulou inteiramente a matéria do crime racial. Ocorre que tanto o artigo 20 da Lei 7.716/89, quanto o artigo 140, parágrafo 3º do Código Penal (injúria qualificada por preconceito), também apresentam características similares no tocante à ofensa verbal materializada por questão racial, o que enseja "Concurso Aparente de Normas".

A expressão "praticar discriminação", presente no artigo 20 da Lei 7.716/89 apresenta, contudo, um CONTEÚDO VAGO (que pode incidir em um amplo leque de condutas) encerrando, pois, um TIPO PENAL ABERTO, ou seja, que exige complementação da doutrina e da jurisprudência para sua interpretação. Em havendo norma que especializa a palavra como forma determinada de "prática", como o parágrafo 3º do artigo 140 do Código Penal, a esta será assegurada proeminência,em respeito ao princípio da "lex specialis".

Este é o entendimento fixado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo,que entende que a utilização de palavras depreciativas referentes à raça, cor, religião ou origem, com o intuito de ofender a honra subjetiva da pessoa, caracteriza o crime previsto no parágrafo 3º do artigo 140 do Código Penal e não o crime do artigo 20 da Lei 7.716/89, que trata dos crimes de preconceito de raça ou de cor.

O mais típico exemplo da situação em tela deu-se a cerca de 05 anos atrás no caso do jogador de futebol brasileiro Grafite, que teria sido ofendido verbalmente por um jogador Argentino, que o chamou de "macaquito". Instaurado Inquérito Policial, posteriormente, o juiz da causa considerou a ofensa relativa a preconceito de raça como injúria qualificada (art. 140, § 3º do CP).

4. Lei 7.716/1989

A Lei 7.716/1989 que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, estabelece a partir do artigo 3º até o artigo 20, uma série de tipos penais concernentes à discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Trata-se da descrição de diversas condutas neste sentido, tendo por objeto jurídico:

1. O direito de igualdade na acessibilidade aos cargos públicos (artigo 3º);

2. Igualdade ao trabalho e à relação de emprego (artigo 4º);

3. Igualdade nas relações de consumo (artigo 5º, 7º, 8º, 9º e 10);

4. Igualdade no acesso e permanência na escola (artigo 6º);

5. Igualdade e liberdade de circulação (artigos 11 e 12);

6. Igualdade na acessibilidade ao serviço militar (artigo 13);

7. Igualdade no direito de casar-se e de escolher o cônjuge ou companheiro (artigo 14);

8. Igualdade e a paz pública (artigo 20, caput): sendo este um "tipo penal aberto", como já

citado, absorvendo os demais artigos;

9. A segurança, a paz e a tranqüilidade públicas, postas em risco por presunção legal (artigo 20, § 1º).

Por fim, observa-se que os institutos da imprescritibilidade, inafiançabilidade, bem como a cominação de pena de reclusão, previstos na constituição de 1.988, identicamente, não foram previstos na lei 7.716/1989 de modo que esses institutos alcançam apenas a discriminação fundada na raça ou cor e não as fundadas na etnia, religião ou procedência nacional.

BIBLIOGRAFIA

Silva Júnior, Hédio

Direito de Igualdade Racial

Aspectos Constitucionais, Civis e Penais – Doutrina e Jurisprudência –

Ed. Juarez de Oliveira

São Paulo, 2002.

Apontamentos compilados da aula ministrada pelo Ilustre Prof. Dr. DIRCEU DE MELLO acerca do crime de racismo no dia 24/10/2005 no curso de Especialização em Direito Penal realizado no Ministério Público do Estado de São Paulo.


(1)Cesare Bonesana, marquês de Beccaria (Milão, 15 de março de 1738 — Milão, 24 de novembro de 1794) foi jurista, filósofo, economista e literato italiano. Educado em Parma pelos jesuítas, entregou-se com entusiasmo ao estudo da literatura e da matemática. Muita influência exerceu na formação do seu espírito a leitura das Lettres Persanes de Montesquieu e de De l'esprit de Helvétius. Desde então, todas as suas preocupações se voltaram para o estudo da filosofia. Foi ele um dos fundadores da sociedade literária que se formou em Milão e que, inspirando-se no exemplo da de Helvétius, divulgou os novos princípios da filosofia francesa. Além disso, a fim de divulgar na Itália as idéias novas, Beccaria fez parte da redação do jornal II Caffè, que apareceu de 1764 a 1765. Considerado um clássico do Direito Penal, Beccaria foi a primeira voz a levantar-se contra a tradição jurídica e a legislação penal de seu tempo, denunciando os julgamentos secretos, as torturas empregadas como meio de se obter a prova do crime, a prática de confiscar bens do condenado. Uma de suas teses é a igualdade perante a lei dos criminosos que cometem o mesmo delito. Suas idéias se difundiram rapidamente, sendo aplaudidas por Voltaire, Diderot e Hume, entre outros; sua obra exerceu influência decisiva na reformulação da legislação vigente da época, estabelecendo os conceitos que se sucederam. A obra Dos Delitos e das Penas é um dos clássicos e sua leitura é considerada basilar para a compreensão da História do Direito.

(2)Advogado formado pela Universidade São Judas, mestre e doutor em direito pela PUC-SP, além de professor de Processo Penal na Universidade Metodista de São Paulo, possui larga experiência na área de direitos humanos e de defesa das minorias. Consultor da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, Consultor da Unesco e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), publicou diversos livros sobre a questão racial no Brasil, entre eles Anti-Racismo – Coletânea de Leis Brasileiras (Ed. Oliveira Mendes) e Discriminação Racial nas Escolas: entre a Lei e as Práticas Sociais. (Unesco)