O Perfil do Agente Penitenciário
considerações sócio-históricas e desafios contemporâneos

Everaldo Carvalho

Na contemporaneidade, a pena privativa de liberdade é a alternativa mais utilizada pela maioria das nações quando o assunto é punição àqueles que transgrediram as regras de convívio em sociedade. Ao longo do percurso das sociedades humanas, do período neolítico até os dias atuais, encontramos concepções distintas de aparato punitivo, no sentido de se preservar valores essenciais de uma dada sociedade, violados por "transgressores da boa ordem social", ou seja, na medida em que a configuração estatal e os elementos estruturantes da sociedade foram se alterando, o perfil e objetivos dos profissionais encarregados de laborar na ponta da execução penal também sofreram alterações fundamentais.

Tais iniciais considerações estabelecem uma relação de interdependência entre Estado/Aparato Punitivo/Profissionais da Execução Penal. Na Antiguidade, quando a execução penal se baseava no suplício do corpo, orquestrada como espetáculo aos olhos da população, o carrasco foi a figura encarregada pela concretização da execução punitiva. Na Idade Média com o surgimento da Penitenciária, houve um deslocamento de foco; não mais se busca o flagelo do corpo e sim o controle da mente, uma vez que as violações nesta época não diziam respeito apenas à desobediência ao soberano, mas, sobretudo, significavam um atentado à vontade divina, assim, substituiu-se a guilhotina e os demais aparatos de mutilação corporal pela tecnologia punitiva do cárcere. A cela - prisão em isolamento solitário - e, conseqüentemente, o carrasco dá lugar ao carcereiro.

Com o advento do Estado Moderno a partir do Século XIX e a consolidação do modelo capitalista de produção, a humanidade experimenta um novo patamar de desenvolvimento.
Conforme as relações e interações humanas foram se aprimorando e experimentando avançar no chamado "processo civilizatório", o homem foi abdicando do componente religioso da punição e do artifício da vingança, enquanto mecanismo de sustentação da ordem social, passando a contemplar, nos objetivos do encarceramento, a idéia laica de re-inserção social, re-integração e re-educação.

Entretanto, o paradigma penitenciário buscou submeter o prisioneiro à hegemonia burguesa e ao acatamento do ritmo alucinante do trabalho fabril, o novo veículo de desenvolvimento e prosperidade social. "é com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior adestrar" (Foucault, 1986). Em suma, re-inserir, re-integrar e re-educar, não passou de discurso; figura de retórica que não se apoiava na realidade dos fatos. Neste modelo o elemento disciplinador foi a preocupação fundamental da privação de liberdade, sendo o Guarda Prisional a figura emblemática da Execução Penal.

A partir de meados do século XX, por força dos horrores da segunda guerra mundial, notadamente o holocausto nazista, a recém criada ONU estabeleceu, em documentos consignados por todos os seus Estados membros, novos parâmetros humanitários com relevante repercussão para a segurança pública e execução penal, dentre os quais destacamos: A Declaração Universal dos Direitos Humanos ? 1948 e As Regras Mínimas para Tratamento de Reclusos - 1955. Este último estabelece diretrizes atualizadas para a Execução da Pena com ênfase, não mais no strictu cumprimento da punição e da vingança. A partir de então, a concepção de punição aos que se contrapõem a harmonia social estará adicionada a programas de resgate social. Passa-se a pensar a instituição punitiva como um sistema complexo e articulado, onde cada setor e profissional: Agentes Penitenciários, Psicólogos, Psiquiátricas, Terapeutas, Assistentes Sociais, Educadores, Enfermeiros, Médicos e Odontólogos, serão aqueles que colocarão a engrenagem penitenciária em funcionamento em prol de um objetivo complexo e intrinsecamente contraditório: Punir e re-inserir à sociedade os transgressores da ordem pública.

Quem é o Agente Penitenciário afinal?

Ele é aquele cujos antepassados evoluiu do carrasco para o carcereiro e do carcereiro para o guarda prisional. É o resultado da adaptação dos mecanismos punitivos do Estado às exigências dos contextos e conjunturas das sociedades contemporâneas.
Ele é a voz da consciência e da civilização dentro do pavilhão (Sá, 2009) o responsável por excelência em manter o presídio em funcionamento, agindo como os olhos do Estado e da Sociedade no sentido de fazer valer, na ponta da execução penal, a decisão do corpo social de punir o infrator com a pena de privação de liberdade, atuando como a mão longa do juiz, no limiar entre a punição e a humanização, até o prazo limite da sentença que recai sobre o condenado.

Aglutina nos seus ombros a função do carcereiro e do guarda prisional, desde que trafega pelo cárcere, fiscalizando os detentos, coibindo fugas, motins e rebeliões, abrindo e fechando celas, mantendo a disciplina, higiene, etc. Há de se considerar que seus encargos não se esgotam nestas prerrogativas, já que os modernos parâmetros de privação de liberdade (balizados pelas regras mínimas da ONU e Declaração Universal dos Direitos Humanos) exigem que os estabelecimentos busquem o resgate social do apenado. Assim, é justamente o Agente Penitenciário a mola mestra do sistema; o responsável por mediar todo e qualquer intercâmbio do encarcerado, quer seja com o mundo externo, quer seja com seus familiares, quer seja com os demais setores profissionais encarregados do processo de re-inserção social: Psicólogos, Assistentes Sociais, Educadores, Terapeutas Educacionais, Equipe Médica, etc.

Eis que o Agente está intrinsecamente relacionado à operacionalização da Execução da Pena. A figura emblemática do cárcere, cujo labor cotidiano é conviver, dialogar, entender e controlar uma população formada por homens e mulheres em débito com a Justiça por violação ao Código Penal (furto, roubo, sequestro, homicídio, latrocínio, extorsão, estupro, estelionato, etc.), e que se constitui um singular agrupamento social com leis e códigos específicos: a chamada sociedade penitenciária.

Considerando que a Bahia é um dos seis maiores Estados da Federação em número de encarcerados (na esfera das Secretarias de Justiça ou Administração Penitenciária) - Cerca de 9.000, e considerando que a superlotação prisional é um fenômeno de difícil resolução no país, temos aí um ambiente extremamente complexo para a atuação destes profissionais.

Em que pese a preponderância do papel punitivo dos presídios, é inegável que a negligência histórica do Estado na adoção de políticas penitenciárias, no sentido de se estabelecer programas eficazes para conferir, aos homens e mulheres encarcerados: educação, profissionalização, emprego e renda, transformou os presídios brasileiros num ambiente fértil para a atuação da "elite carcerária" formada por ladrões de banco, seqüestradores e traficantes de drogas que se mantém no topo da pirâmide hierárquica intramuros. Tais xerifes, mesmo em minoria, controlam e vem desestabilizando, em moldes de crime organizado o submundo carcerário do sudeste do país desde a década de 80 do século passado e no nordeste lutam para fincar suas raízes.

Ademais, os desafios impostos a estes profissionais são revestidos por uma outra singularidade, o apartheid étnico-racial flagrante nas celas, galerias e pátios baianos. Estamos encarcerando jovens entre 19 a 23 anos de perfil fenotípico do afro-descendente, vítimas de um processo histórico de exclusão social, cujo crime está fortemente relacionado à falta de oportunidades, por conta de um passado, ainda não superado, do escravismo brasileiro (Carvalho, 2007).

Neste ambiente complexo, a operacionalização dos objetivos hodiernos da execução penal, exige do Agente Penitenciário um perfil profissional com características singulares. Aqui destaco, como ponto de referência, o Manual do Agente Penitenciário do Departamento Penitenciário do Estado do Paraná, a saber:

ATITUDES E CONDUTAS PROFISSIONAIS NECESSÁRIAS AO AGENTE PENITENCIÁRIO
01 ? APTIDÃO: que tenha disposição inata, um dom natural de lidar com pessoas;
02 ? HONESTIDADE: que seja íntegro. Precisa ser parte exemplar da instituição a que pertença e conduta inatacável;
03 ? CONHECER FUNÇÕES E ATRIBUIÇÕES: distinguir com clareza uma ação própria, de seus direitos e prerrogativas;
04 ? RESPONSABILIDADE: que tenha capacidade de entendimento ético e uma determinação
moral;
05 ? INICIATIVA: que seja capaz de propor ou empreender ações iniciais e principiar
conhecimentos;
06 ? DISCIPLINA: que sua observância dos preceitos ou normas seja uma ação natural;
07 ? LEALDADE: que não seja apenas sincero e franco, mas principalmente fiel aos seus
compromissos e honesto com seus pares;
08 ? EQUILÍBRIO EMOCIONAL: que sua estabilidade mental seja definida por ações comedidas e prudentes;
09 ? AUTORIDADE: que não tenha apenas direito ao poder, mas que tenha o encargo de
respeitar as leis com competência indiscutível;
10 ? LIDERANÇA: que seu comando tenha tom condutor, um representante de um grupo;
11 ? FLEXIBILIDADE: que a destreza, bom senso e transigência estejam sempre a serviço do
bem comum;
12 ? CRIATIVIDADE: que sua capacidade de criação e inovação possa superar as adversidades;
13 ? EMPATIA: que saiba sempre se colocar no lugar do outro, antes de uma decisão importante;
14 ? COMUNICABILIDADE: que se comunique de forma expansiva e franca;
15 ? PERSEVERANÇA: que seja firme e constante em suas ações e ideais.
Fonte: www.depen.pr.gov.br
Considerando que são metas impossíveis de ser serem alcançadas em sua plenitude, não me furtarei em fazer um contraponto, construindo uma síntese daquilo que considero aceitável enquanto proposta de construção de perfil profissional do Agente Penitenciário:

? Visão de Contexto e Conjuntura: Compreensão das exigências da contemporaneidade, no que tange humanização,dignidade e reinserção social, bem como estar atento as formas de organização da população carcerária e as inovações nas articulações e intercâmbios existentes intra e extramuros.

? Responsabilidade/impessoalidade: Para lidar com fugas, motins, rebeliões, revista das visitantes, fiscalização das ações diárias da população carcerária, escolta externa, interlocução dos internos entre os diversos setores do presídio, etc. Sua ação concretiza os ideais de justiça que norteia os mecanismos de segurança pública e execução penal do país, portanto seus atos, que carregam o emblema do Estado e da sociedade, devem ser norteados pela responsabilidade e pelo impessoalidade, no sentido de evitar que os motivos que levaram a punição do apenado sejam reavaliados no intuito de se arbitrar um sofrimento paralelo ao interno.
Este seria um entendimento ponderável para se construir um perfil tipo ideal do Agente Penitenciário, desde que esteja articulado com a Firmeza no combate as atos delituosos, na manutenção da ordem, na preservação da disciplina e na luta conta a injustiça e, sobretudo, Idoneidade, no que tange a defesa incondicional dos Princípios Éticos e Morais que balizam a Execução Penal.

Por fim, embora entendemos que os conflitos entre o papel individual do cidadão X o papel social do Agente Penitenciário, que advém do desempenho desta função, geram contradições consideráveis, faz-se necessário que o Estado brasileiro dê passos na direção de conquistar, através da seleção pública, profissionais (que preencham, em maior ou menor grau este perfil) para atuarem na urdidura do cotidiano carcerário, bem como, intensificar programas de qualificação visando potencializar tais características essenciais para a revitalização da áurea de justiça que permeia as instituições prisionais do nosso Estado.

REFERÊNCIAS:

SÁ, Alvino Augusto de. Os dilemas de prioridades e de paradigmas nas políticas de segurança dos cárceres e na formação dos agentes penitenciários. Disponível em http://www.eap.sp.gov.br/pdf/Os%20dilemas.pdf. Acesso em 20/08/2009

CARVALHO, Everaldo. O Sistema Penitenciário na Ótica Negra ? Monografia para o Curso de Pós-Graduação em História e Cultura Afro-Brasileira pela Fundação Visconde de Cairu em 2007.

CARVALHO, Everaldo. Punir e Humanizar. Artigo disponível em ABC Polítiko - http://www.abcpolitiko.com.br/index.php?secao=secoes.php&sc=3&url=ideias.php&id=13315. Acesso em 06/06/ 2009

FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir. Ed; Vozes, 4ª edição, Petrópolis, RJ. 1986.

MANUAL DO AGENTE PENITENCIÁRIO.
Disponível em http://www.depen.pr.gov.br/arquivos/File/manual_agente_pen.pdf. Acesso em 18 de setembro de 2009