O MENOR INFRATOR OU O ESTADO: quem está em situação irregular ? 

Rosaury Francisca Valente Sampaio Muniz*

 

RESUMO: Este texto se propõe a uma reflexão sobre as questões que envolvem as crianças e adolescentes em situação de risco e as responsabilidades da sociedade, família e do Estado, frente ao clamor pela redução da menoridade penal.

PALAVRAS-CHAVE: Maioridade penal; Criança; Adolescente;

ABSTRACT: His text proposes a reflection on the issues involving children and adolescents in situation of risk and responsibility in society, family and the State, the clamor for reducing the criminal minority.

KEYWORD: Criminal majority; Child; Teen

 

A maioridade penal no Brasil ocorre aos dezoito anos, segundo o art. 27º do Código Penal, reforçado pelo art. 228º da Constituição Federal de 1988 e pelo art. 104º da  Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA), quando prelecionam que “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos”.

A Carta Magna em seu art. 14º determina que o alistamento eleitoral e o voto são facultativos para os maiores de dezesseis anos e menores de dezoito. Esta é também a idade mínima para a investidura em cargos públicos e políticos, como, por exemplo, para a elegibilidade para o cargo de vereador.

A dicotomia da nossa legislação se instaura, quando elege, dezesseis anos, como idade núbil, necessitando, outrossim, de autorização dos seus representantes legais para que possam, os jovens nessa idade, realizarem o ato do casamento, impondo-lhes o regime legal de separação de bens.

Segundo Tânia Zagury (1994), os adolescentes são emocionalmente instáveis, oscilando entre períodos de serenidade e outros de extrema fragilidade. Em momentos são fortes, imortais, alegres e vencedores, passando para o pólo oposto de forma rápida, mergulhando no estado depressivo e de infelicidade.

Com isso, podemos aduzir que, certamente o entendimento do legislador penal ao considerar que até os vinte e um anos o jovem não está desenvolvido biológica e emocionalmente para compreender a verdadeira diferença entre a  licitude e a ilicitude dos atos e do legislador Civil, quando no Direito de Família  exige a autorização dos responsáveis de jovens entre dezoito e dezesseis anos e impõe o regime de separação de bens, não estarem assentados em meros caprichos.

O jovem com dezesseis anos de idade não pode pretender ocupar o cargo de vereador, posto ser inelegível, mas lhe é facultado o alistamento eleitoral, pela lei pátria. Este é o grande e profundo embasamento dos defensores da redução da maioridade penal. Assim pensam: ora se lhe é facultado o direito de voto, imediatamente, ele, com essa possibilidade, rompe todos os entraves biológicos e psicológicos – e  torna-se, definitivamente, adulto.

No entanto, a maioridade penal já foi reduzida para 12 anos de idade. A criança com 12 anos, ainda psicologicamente imatura, que comete atos infracionais (crimes), pode ser internada (presa), processada, sancionada (condenada) e, cumprir a medida sócio-educativa (pena) em estabelecimentos educacionais, que nada mais são que presídios.

Mas, a que jovens estamos nos referindo? Àqueles em cujo mundo tudo é possível. Aos que possuem roupas caras, brinquedos espetaculares, viagens dos sonhos, produtos de alta tecnologia, boas escolas e cujos pais se preocupam em protegê-los daqueles mal intencionados que querem se apossar  da sua propriedade?

Ou estamos tratando, das crianças e adolescentes que se encontram do outro lado da moeda que rege o capitalismo. Aqueles diferentes, mal vestidos, pobres e negros, que perambulam pelas ruas ou se escondem nos morros, cuja brincadeira é simular batalhas, lembrando a velha brincadeira ‘policia e ladrão, agora encenada pela guerra real entre grupos rivais do submundo do tráfico de entorpecentes e o policial, este  representando o Estado.

 A discussão acerca da redução da maioridade penal no Brasil visa, na verdade, retirar do Estado o peso da sua responsabilidade pelo não cumprimento de sua obrigação em garantir os direitos fundamentais da criança e do adolescente, previstos na Constituição Federal.

O Estatuto da Criança e do Adolescente adota a teoria da proteção integral, e entende a criança e o adolescente como pessoas em condições peculiares de desenvolvimento, necessitando, em conseqüência, de proteção diferenciada, especializada e integral. Não teve tal Estatuto, por objetivo, manter a impunidade de jovens autores de infrações penais, tanto que criou diversas medidas sócio-educativas que, na realidade, são verdadeiras penas, muitas vezes piores,  que aquelas aplicadas aos adultos.

A proteção à infância e à juventude prevista pelo ECA, travestida de medida sócio-educativa, tem na verdade finalidade retributiva e punitiva, longe estando de qualquer pedagogia, fazendo ir ao chão a tal proteção, quando priva a liberdade do menor infrator, mesmo que não haja trânsito  em julgado da decisão, preceito este, constitucional, conforme impõe em seu art. 5º,  LVII,  “que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”;

É cediço que, a maioria dos menores infratores tem relação com o envolvimento do tráfico de drogas, no entanto, a nova Lei que dispõe sobre o Sistema de Políticas Públicas sobre Drogas – Lei 11. 343/2006 considera, em seu art. 45 que

é isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Essa nova lei isenta o adulto, mas o menor, não. O menor tem a sua liberdade privada em nome de uma reeducação, de um tratamento e de um cuidado que não ocorrem. A Constituição brasileira pôs a proteção, e as normas infraconstitucionais, depuseram.

Então, a maioridade penal iniciando aos dezoito anos de idade é mero escrito legislativo, posto que, na prática é bem diferente, pois as medidas sócio-educativas aplicadas aos menores (adolescentes de12 a18 anos de idade) são exatas penas, iguais as que são aplicadas aos adultos. Daí pode-se concluir que a maioridade penal, no Brasil, começa, definitivamente aos 12 anos de idade.

O legislador realmente tentou tratar de forma diferenciada os menores, quando criou as medidas sócio-educativas, reconhecendo neles a sua condição peculiar de pessoaem desenvolvimento. Taismedidas, se existentes e aplicadas, teriam o condão de recuperar e reintegrar o jovem à comunidade, o que lamentavelmente não ocorre, pois ao serem executadas transformam-se em penas, completamente inócuas, ineficazes, promovendo mais revolta e gerando a impunidade, tão reclamada e combatida por todos.

A exemplo do que ocorre no sistema penitenciário imposto aos  adultos, a execução das medidas acauteladores transformaram-se em castigos, revoltando os menores e não recuperando ninguém. Assim, o nó górdio da questão não é reduzir a maioridade penal, que a nosso ver já foi reduzida, mas discutir, visto ser falho o processo de execução das medidas aplicadas aos menores, corrigindo, aperfeiçoando e, quando em funcionamento surtir os efeitos esperados e, não, caminhando na via contrária, como ocorre, corrompendo-os ainda mais.

É cediço, que o Estado, diante da perspectiva neoliberal busca interferir o mínimo. Contudo, esse mínimo é relativizado. O Estado é quase inexistente no que diz respeito aos serviços na educação, saúde, habitação e lazer, mas essa mesma sociedade, por interesses privados, exige que o Estado se torne máximo com relação a alguns setores, exigindo a punição severa e até letal dos atos de criminalidade que se camuflam entre os bairros e favelas típicos das populações de baixa renda, geralmente de maioria negra, em regiões mais populosas das cidades.

Quando o Estado se exime do seu papel de gestor permite que outros ocupem o seu lugar, como os traficantes de drogas e os chefes de quadrilha, suprindo as comunidades que comandam do mínimo social, tornam-se heróis para as crianças e jovens e aram o solo para o desenvolvimento da vida bandida.

Esse entendimento e respectiva conduta estão  estampadas na letra da música Soldado do morro do rapper Mv Bill, exibida no documentário "Falcão – meninos do tráfico", refletindo a realidade dos jovens que buscam, no tráfico de drogas e na criminalidade, um atalho para ser incluído no mundo sob a ótica  do capital; mundo do  consumo a todo custo, da ostentação do poder através do dinheiro, do amealhar bens materiais. Senão vejamos:

 [...] Qualquer roupa agora eu posso comprar. Tem um monte de cachorra querendo me dar. De olho grande no dinheiro esquecem do perigo. A moda por aqui é ser mulher de bandido [...]

 [...] Minha mina de fé tá em casa com o meu menor. Agora posso dar do bom e melhor. Várias vezes me senti menos homem. Desempregado meu moleque com fome. É muito fácil vir aqui me criticar. A sociedade me criou agora manda me matar. Me condenar e morrer na prisão virar notícia de televisão. Seria diferente se eu fosse mauricinho criado a sustagem e leite ninho. Colégio particular depois faculdade. Não, não é essa minha realidade. Sou caboquinho comum com sangue no olho com ódio na veia soldado do morro. Feio e esperto com uma cara de mal.

A sociedade me criou mais um marginal. Eu tenho uma nove e uma hk com ódio na veia pronto para atirar [...].

[...]. Fora da lei chamado de elemento. Agora o crime que dá o meu sustento.  Já pedi esmola Já me humilhei. Fui pisoteado só eu sei que eu passei [...].

 No entanto, quando o Estado, Poder Público, Família e Sociedade, que têm por obrigação garantir os direitos fundamentais da criança e do adolescente, não o fazem, os menores que não entrarem para a criminalidade, buscam as ocupações que sobram dos subempregos do capitalismo, como  catadores de papel e de latas de alumínio, "escravinhos" em fornalhas de carvão vegetal e, em muitos aterros sanitários, competem com os urubus as sobras de comida encontradas no lixo, ou ainda, são atraídos pela prostituição.

Em verdade, essa mesma sociedade que teme por sua segurança frente aos menores infratores e, clama pela redução da menoridade penal, fora sua omissão, age como indutor da degradação física e moral de crianças e adolescentes, traficando e agenciando a prostituição de menores, transformando-os em escravos do sexo.

Tem-se com esse comércio da dignidade e vida de menores, a movimentação de um montante financeiro significativo em diversos seguimentos da sociedade. Para isto, esses menores devem estar fora dos sistemas prisionais.  Por outro lado, quando esses garotos e garotas não preenchem as qualidades para fazerem parte desse modelo empresarial funesto, ou são descartados por estes, levando consigo as marcas da sub-humanidade e entram na rede das infrações, a sociedade, hipócrita, pede a justiça.

A questão não é reduzir a maioridade penal, que na prática já foi reduzida, mas, em primeiro, o do cumprimento do princípio basilar de nosso ordenamento jurídico, garantindo a possibilidade de viver com dignidade, com acesso à educação, saúde, emprego e lazer, e em segundo, reavaliar, o processo de execução das medidas aplicadas aos menores, corrigindo suas falhas, para efetivamente proceder à recuperação daqueles que já se encontram em desvio.

A sociedade, por seu turno não desconhece todos os problemas que prejudicam os menores, mas não exige mudanças; apenas tolera, aceita, cala-se, mas ao vê-los envolvidos em crimes, coloca-os em situação irregular e exige, para eles, punição, castigo, internação e  abrigo em instituições.

A delinqüência dos menores não está adstrita ao descumprimento de normas, tampouco aos Transtornos de Conduta, apenas. Antes de tudo, a criminalidade e a violência estão relacionadas ao tipo de sociedade à qual as pessoas estão submetidas. Em verdade estamos, no Brasil, vivendo em uma sociedade de ausências, não obstante a do próprio Estado, que tem o poder de zelar pelos seus membros e que, pela sua omissão, participa, na pessoa do policial, das batalhas de morte e sangue das comunidades carentes de nosso país.

O fato de a lei civil e constitucional considerarem  dezesseis anos a idade legal para exercer alguns direitos não legitima  a  condenação dos menores  à pena de prisão, pelos seus atos infracionais. Urge a criticidade às situações maléficas.

Por fim, há que se perceber que quem está em situação irregular não é a criança ou o adolescente, mas o Estado, que se quer consegue harmonizar a legislação referente ao menor; que não cumpre suas políticas sociais básicas; a família, que não tem estrutura e abandona a criança; os pais que descumprem os deveres do pátrio poder; a sociedade, que não exige do Poder Público a execução de políticas públicas sociais dirigidas à criança e ao adolescente.

 REFERÊNCIAS

AZMUSICA.COM.BR.  Soldado do morro. Disponível em:<http://letras.azmusica.com.br/M/letras_mv_bill_30519/letras_otras_20577/letra_soldado_do_morro_637261.html>. Acesso em: 27 set. 2010.

 BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. acesso em: 03 out. 2010.

 _______. Constituição da república federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 24 set. 2010.

_______. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/del2848.htm>.  Acesso em: 24 set. 2010.

_______. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm   Acesso em: 24 set. 2010.

_______.   Lei nº 8.069, DE 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm> Acesso em: 24 set. 2010.

ZAGURY,  Tânia.  Educar sem culpa, a gênese da ética , Rio de Janeiro: Record, 1994.



*     Pós-graduada em Metodologia da Pesquisa e Extensão em Educação pela Universidade Estadual da Bahia; Graduadaem Ciências Físicas e Biológicas, pela UCSal; Pós-graduada em Gestão pública com Ênfase em Planejamento de Projetos, pela Faculdade Kurius; Bacharela em Direito pela UCSal..Advogada.