Desde os menestréis e trovadores, na Idade Média, se vê, claramente, uma divisão na música. Na Renascença havia a música sacra (composta para ser executada em cultos religiosos), assim como, a profana (composta para ser executada nas tavernas etc). Hoje, há a música erudita e a música popular.

Não são poucas as pessoas - dentre essas, muitos intelectuais - que chamam, erroneamente, toda composição de caráter sinfônico de música clássica. Música clássica seria aquela composta no período clássico, que compreende, na música, aproximadamente os anos dentre 1750 a 1810. O correto, no entanto, seria chamá-la de música erudita, por seu caráter solene e por sua complexidade de formas, texturas e estilos. Ainda no classicismo, a música tem, em Wolfgang Amadeus Mozart, um compositor de destaque e relevante importância. Ele escrevia para orquestra, para coral e sua música, além da solenidade necessária aos eruditos, era extremamente complexa para os padrões da época. Mozart, ainda hoje, é considerado um dos maiores gênios da música mundial. Não obstante, o mesmo Mozart era muito popular. Sua música estava intimamente ligada à sua época e, pode-se dizer que, ele, apesar de insatisfeito com sua condição de músico da corte, era o que, atualmente, chamaríamos de sucesso. A arte musical de Mozart, que foi um compositor genuinamente clássico, também era popular. Poderíamos então, chamar de popular, aquela música que a população, em sua maioria, consome. A música de Tom Jobim, por exemplo, foi e é popular. O mesmo Jobim se tornou clássico, na nossa música, pela beleza, pela seriedade de sua obra, por sua arte. Talvez tenhamos aqui um novo divisor de águas: de um lado, música, de outro, falsificações; ou ainda, música e música utilitária. O conceito de música utilitária se aplica àquela música que serve a fins diversos e nem somente artísticos; "A arte foi arte utilitária, antes de se tornar arte - era, por exemplo, imagens de deuses nos templos, adornos nos túmulos, música para banquetes e de dança" (NOBERT, 1995, p. 50.). A Música, neste contexto, é o que menos importa e serve somente como entretenimento, assim, se estabelece um mercado que não serve de estímulo para o crescimento e mudança da sociedade, somente, como elemento alienador, como um artigo de consumo. É o que Adorno chama de Kulturindustrie.

O termo Indústria Cultural é usado por Adorno para designar a exploração sistemática e intencional de bens culturais com fins comerciais em detrimento da cultura, com o cuidado de evitar uma comparação com uma arte que surja espontaneamente no seio popular, como por exemplo, a arte folclórica. Estabelece-se um mercado, onde as obras de arte são rebaixadas ao nível de simples mercadoria palpável obedecendo à lei da oferta e da procura, negando-lhes, o que para Adorno seria o princípio fundamental da obra de arte; a liberdade. As artes, a música, para ele, buscam a verdade, e somente podem atingi-la se forem concebidas livres.

 Desde os meados do século XIX a grande música divorciou-se do consumo. A coerência de seu desenvolvimento está em contradição com as necessidades que se manejam e que ao mesmo tempo satisfazem o público burguês. O gosto público e a qualidade das obras ficaram divorciados.(ADORNO, 2002, pp. 16-7).

 A arte servindo a uma indústria de produção, voltada única e exclusivamente para um público consumidor, que não reflete sobre a obra e espera reconhecer sempre algo familiar na produção artística, de nada contribui para crescimento da sociedade e da própria arte, assim, determina-se um mercado manipulável, injusto, desigual, aberto a toda sorte de interesses e sem função sócio-cultural, levando a arte, a perda de seu caráter artístico. A grande música a que Adorno se refere, é para nós, uma referência de música que valorize a liberdade de criação e não as imposições de um mercado. Não temos aqui, o objetivo de tecer crítica em relação a indústria cultural, e por isso, não nos aprofundaremos em seu conceito, fazemos apenas uso deste princípio adorniano com norte filosófico para nossa pesquisa, traçando, a partir daí, um paralelo com nossa cultura. Assim, gêneros musicais como: o jazz e o choro, tidos historicamente como populares, não o são nem em seus países de origem - Estados Unidos e Brasil respectivamente -, por tanto, música é música, seja ela sinfônica ou improvisadamente jazzística, tocada por uma grande orquestra ou por um simples quarteto com piano, baixo, bateria e saxofone. A questão é distinguir música de imposições mercadológicas. Winton Marsalis, grande trompetista americano, que vai do erudito ao jazz com a mesma fluência, nos traz um depoimento muito elucidativo.

Se nossa noção de arte fosse melhor e nossa noção de história mais forte, não teríamos que aceitar a idéia de que entertainers são artistas. Não tenho nada contra a música pop, mas realmente me ressinto com a pretensão que se atribui ao entretenimento de hoje. Se você vende milhões de discos, talvez esteja realizando uma façanha econômica, mas não artística.(MARSALIS, 2000, pp. 13-4)

A relação música/sociedade
   
A música sempre esteve ligada ao seu tempo e a sociedade como um todo, onde o músico, o compositor, enfim, o artista, só pode exprimir a experiência e a emoção daquilo que seu tempo e suas condições sociais podem lhe oferecer. Vejamos o que Adorno que também era compositor - tendo estudado composição com Alban Berg – e dedicou boa parte de seus pensamentos à arte, como um todo, e a  música, em especial, nos diz:

O homem sempre se relacionou com o som. Do grito do homem das cavernas ao som contemporâneo, passando por todas as etapas intermediárias, o homem sempre fez e ouviu música.(ADORNO, 1980, P.259).

 Adorno ainda nos situa bem sobre esta relação da seguinte forma:

 "O artista não é um criador. A época e a sociedade em que vive não o delimitam de fora, mas o delimitam precisamente na severa exigência de exatidão que suas mesmas imagens lhe impõem".(ADORNO, 2002, p.38)

Façamos uma viagem histórica para entendermos bem esta relação. Da Idade Média até o século XIX, a música marca sua relação social fazendo parte da evolução cultural ocidental, compreendê-la fazia parte da cultura geral da população. Entre o cantochão e o poema sinfônico -    Cantochão: a mais primitiva forma de composição musical que consiste em uma única melodia; Poema Sinfônico: gênero que foi criado com o intuito de evitar o abandono da tonalidade no fim século XIX - , perpassando por oratórios, missas, canções profanas, óperas, lieder, concertos, sonatas, rondós e várias outras formas de composição, artistas como Léonin, Dufay, Josquin, Palestrina, Monteverdi, Vivaldi, Bach, Haendel, Mozart, Beethoven, Haydn, Listz, Verdi, Elgar e tantos outros gênios da música, viveram, intensamente, suas realidades sociais através de suas composições e interpretações. A música, neste longo período da história, era tão ligada ao momento social vivido que uma peça em estilo barroco, por exemplo, só seria executada durante o classicismo se o intérprete conferisse à música ares de contemporaneidade, ou seja, se o artista criasse uma atmosfera clássica para a peça barroca. Não interessava, naquela época, a produção do passado, e sim, a produção que retratava o cotidiano e essa produção só poderia ser representada por obras mais recentes - entre os períodos Barroco e Clássico, houveram várias e contundentes transformações na arte musical, da estrutura das obras à maneira de executá-las, por isso, para que uma peça barroca fosse apresentada durante o classicismo, necessitava de adaptações, ao mesmo tempo, a produção musical contemporânea era, para o público consumidor, mais importante e atraente que a produção musical de períodos anteriores, talvez, pelo forte elo entre arte e sociedade.

No final do século XIX muitas vertentes musicais começam a surgir dividindo compositores, músicos e apreciadores em geral. Wagner, na Alemanha, já sinalizava que novidades estavam por vir. Contudo, foi Debussy, na França, por volta de 1894, com seu Prélude à l'Après-Midi d'um Faune, que iniciou a libertação do uso da tonalidade, em busca de uma estruturação harmônica menos convencional. Nos Estados Unidos da América, há o desenvolvimento do jazz e do blues, gêneros musicais oriundos do sofrimento dos escravos, que longe da terra natal e de suas famílias, encontravam consolo nas simples canções de trabalho, e a música, neste contexto, por sua vez, faz-se presente retratando a dura realidade por eles vivida, e talvez sejam estes dois gêneros musicais, no mundo ocidental, os mais expressivos e importantes, socialmente, desde o fim do século XIX, pois, através deles, toda uma sociedade marcada pela discriminação, pela tristeza e pela dor, se fez ouvir em canções que ecoaram em todo o mundo e ainda hoje influenciam uma enorme quantidade de músicos, compositores e apreciadores, criando novos gêneros musicais, como por exemplo, a bossa nova.

No Brasil, na segunda metade do século XIX, um povo, cada vez mais convicto de que a República seria o melhor caminho, aprecia o desabrochar do que seria o primeiro gênero da nossa canção, a modinha -gênero de música com forte influência da ópera italiana, que cruza as fronteiras dos salões do Império para encontrar acolhida nas festas de rua e que desde o século XVI se manifesta em influências que sofremos da música portuguesa -.Depois viriam muitos outros como: lundus, maxixes, marchinhas de carnaval, sambas, choros... eternizados por mestres da nossa música como:  Chiquinha Gonzaga, Joaquim Antônio da Silva Calado, Catulo da Paixão Cearense, Carlos Gomes, Heitor Villa-Lobos, Alberto Nepomuceno, Ernesto Nazaré, Guerra Peixe, Radamés Gnatalli e vários outros. Nikolaus Harnouncourt nos fala: "Obviamente a música não é intemporal, ao contrário, está ligada ao seu tempo, e, como toda expressão cultural do homem, é de importância primordial para sua vida."(HARNOUNCOURT, 1988, p.24). No século XX, cada vez mais elementos do cotidiano são incorporados à produção dos artistas, e surge, a partir daí, um termo, que é cada dia mais utilizado por estudiosos e artistas; Paisagem Sonora.

 Marco Aurélio A. da Silva, é Instrumentista, compositor, pesquisador, professor, arranjador e produtor musical. Bacharel em Música, Especialista em Docência do Ensino Superior e Mestre em Ensino de Ciências do Ambiente.
Contato: [email protected]

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Filosofia da Nova Música. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002.

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Idéias para a Sociologia da Música. Rio de Janeiro: Abril cultural, 1980.

HARNOUNCOURT, Nikolaus. O Discurso dos Sons. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

MARSALIS, Winton. Uma Arte chamada Jazz. Rio de Janeiro: Jornal da Associação de Músicos Arranjadores e Regentes, 2000.

NOBERT, Elias.  Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zarah Ed., 1995.