KURZ, Robert. O Colapso da Modernização : “Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial”. Trad: Karen Elsabe Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

Modernização recuperadora e crise do sistema mundial produtor de mercadorias.

“O lugar do modelo oposto está vazio, porque dentro das forma do sistema produtor de mercadorias não pode haver nenhuma alternativa.” 1

(Robert Kurz)

A preocupação máxima da carreira teórica de Marx era o estudo do modo capitalista de produção, as “leis” do seu desenvolvimento e supressão. Esta parece ser também a preocupação de Robert Kurz, ensaísta e sociólogo alemão, que em seu livro O colapso da Modernização 2 , referenda uma análise baseada em preceitos socio-econômicos. Tendo em vista tamanha investida, este autor elabora uma projeção do surgimento e consolidação da chamada modernidade, na tentativa de refletir sobre os antagonismos e a própria crise do sistema mundial produtor de mercadorias.

Esta obra de Kurz, editada em 1992, pouco após a queda do muro de Berlim, envolve-se em duas frentes de discussão. A primeira é o envolvimento em um debate sobre a caracterização do modelo socialista, na versão aplicada no leste europeu. A partir de então, outro ponto de reflexão que este livro suscita, nos remete a dicotomia singularidade ou unidade histórica . No sentido de lançar uma percepção de que o mundo inteiro está interconectado historicamente, sendo a constituição global um único sistema.

As principais características que fundamentaram e possibilitaram a conformação do sistema produtor de mercadorias, podem ser definidas assim: surgimento do processo de acumulação primitiva, uma “nova” concepção de trabalho, a valorização extremada do dinheiro, a produção de mercadorias voltada para o mercado, a instalação do princípio da concorrência, a obtenção da mais-valia e o estatismo. Muito mais do que uma simples discussão conceitual 3 , a análise de Kurz pauta-se por uma percepção histórica do processo da modernidade e seus limites.

A história da modernização, nas diferentes partes do planeta, puderam ser enumeradas, a partir de alguns modelos básicos: a modernização capitalista baseada na acumulação primitiva clássica, onde o exemplo da Inglaterra é emblemático; e as chamadas modernizações recuperadoras: a modernização do socialismo no oriente, que favoreceu a acumulação primitiva estatal, e por fim, o processo modernizador do chamado “terceiro mundo”.

Em todos estes casos, o elemento estatista desempenhou um papel essencial. O processo de desenvolvimento capitalista nos países centrais deu-se de forma lenta e gradual, a disciplinarização política e econômica das massas, não deu-se de forma abrupta como na periferia do sistema.

Nas modernizações recuperadoras, o estatismo sobrepôs-se ao monetarismo para possibilitar o processo de industrialização. O Estado teve o papel central de transformar produtores diretos em trabalhadores assalariados, seja no socialismo real seja nas ditaduras periféricas. Além da disciplinarização da massa de trabalhadores 4 , o Estado transformou-se em uma gigantesca burocracia, possibilitando a efetiva transformação de toda a sociedade numa máquina de trabalho abstrato.

Neste tipo de modernização, o processo em que a produção de mais-valia absoluta foi substituída pela mais-valia relativa, - tendo como agente central deste processo, o Estado, que conseguiu cooptar as massas- desenvolveu-se de forma lenta e tardia, muito mais atrelado a uma ideologia política burguesa que propunha uma disciplinarização social. A concepção de uma disciplinarização social de fundo político, ocasionou a paulatina universalização da forma burguesa do sujeito 5 .

Como vemos, o desenvolvimento do sistema mundial produtor de mercadorias não foi um processo homogêneo, sendo que, cada exemplo-modelo elaborado, admite pontos de encontro e distanciamento.

No entanto, com o processo de globalização e dispersão do capital por todas as partes do globo terrestre, os diferentes níveis de desenvolvimento adquirem uma relação de influência recíproca.

O aparente distanciamento nos posicionamentos do ocidente capitalista e do oriente socialista são desmascarados, os conflitos, não dizem respeito a uma concorrência de modelos para a humanidade, e sim, a diferentes tempos históricos de uma modernização capitalista.

Os sintomas da crise do capitalismo, evidenciam-se com o fracasso das modernizações recuperadoras, no socialismo real e nas demais regiões periféricas, que não conseguem acompanhar o desenvolvimento dos países centrais, tendo assim, seu projeto de modernidade abortado.

A concepção de trabalho instaurada com o surgimento do capitalismo, remete-se a uma perspectiva na qual o trabalho, além de ser encarado ideologicamente como a-histórico, adquire um caráter abstrato que traz em si a sua finalidade, ou seja, a produção de mercadorias para o mercado. A divisão do trabalho uniu as produções reais num sistema de socialização direta, enquanto o mercado e o dinheiro são expressão de uma socialização indireta.

Na modernidade, os produtos não representam aquilo que são realmente, sua produção é na realidade, fonte de mais-valia. Sendo que, o dinheiro é a encarnação do trabalho abstrato, e a concorrência entre as unidades empresariais é pela realização e apropriação da mais-valia, em ritmos e escalas, cada vez maiores.

Portanto, somos mônadas - dinheiro – mercadoria, dentro de um sistema que se auto-reproduz em escala crescente. O desenvolvimento do sistema mundial produtor de mercadorias alcançou o ápice dos seus antagonismos. Os sintomas da crise puderam ser elaboradas por Kurz, tendo como referência central, a auto-contradição elementar do próprio sistema, a exclusão de um número cada vez maior de pessoas da esfera do trabalho abstrato. O desemprego em massa torna-se latente na periferia do sistema, o apartheid social.

O fracasso da modernização recuperadora, deve-se a distância entre a produtividade alcançada nestas regiões, da alta produtividade das áreas centrais, a industrialização tardia não consegue competir nível global.

No ponto atual de desenvolvimento do capitalismo, a capacidade de exportação aparece como requisito básico da concorrência dentro de um mercado mundial, ou seja, a própria capacidade de exportação requer o nível de produtividade do mercado mundial real.

Sendo assim, as economias periféricas tendem a entrar em colapso a qualquer momento, pois criam-se mônadas-dinheiro-mercadoria sem dinheiro, além do mais, a acumulação de capital realiza-se pela exploração constante do trabalho abstrato. Sem a viabilidade desta exploração, nas palavras de Marx, aberta, direta e brutal, o capital não consegue reproduzir-se.

Outro ponto chave para entendermos a crise do capitalismo, diz respeito a exploração de sistemas ecológicos fechados. Com a busca incessante de uma maior produtividade com o menor custo possível, as próprias condições naturais do planeta encontram-se em xeque. A destruição da natureza adquire dimensões catastróficas, colocando em risco a própria continuidade da existência de vida neste planeta 6 . Temos assim, a diminuição da capacidade aquisitiva global, real ou produtiva em virtude da destruição de recursos naturais e capitais.

A causa da crise, neste sentido é a mesma para todas as partes do mundo, a diminuição histórica da substância de trabalho abstrato, em conseqüência da alta produtividade alcançada pela mediação da concorrência no mercado mundial. As falhas do estatismo e do monetarismo, fases da modernidade, tornam-se idênticas porque a forma de reprodução social da modernidade perdeu completamente sua capacidade de funcionamento e integração. A crise do sistema encontra seu movimento final da periferia ao centro do sistema.
No entanto o pessimismo explosivo de Kurz possibilita encararmos a questão do provável limite do capitalismo através de uma crítica radical ao sistema produtor de mercadorias. Uma crítica pautada no cerne do sistema: o trabalho abstrato. Segundo Kurz, o marxismo do movimento operário tradicional apresentou uma crítica ao sistema baseado em um carater eminentemente político. O papel histórico do movimento operário marxista pautou-se em estabelecer a modernidade econômica e política no seio de uma sociedade arcaica e atrasada. Cabe-nos agora, segundo Kurz , a critica fundamental ao trabalho abstrato, para deslindarmos a racionalidade prática da forma da mercadoria e inaugurarmos um tipo de racionalidade sensível.

1 KURZ, Robert. O Colapso da Modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Trad. Karen Elsabe Barbosa. 5 ed. São Paulo: Paz e Terra. 1999. p.168

2 Ibid.

3 Evidentemente, não é nossa intenção nos determos somente nos conceitos, partiremos para uma análise de como Kurz trabalha com estes conceitos, os relacionando a todo momento.

4 No caso soviético temos o claro exemplo dos gulags , campos de trabalho forçado, no sentido de disciplinarização do trabalho, além de uma ideologia na qual a exaltação do trabalho abstrato assemelha-se a uma religião secularizada.

5 Neste ponto, Marx também já apontava a “missão civilizatória do capital”.

6 Kurz não referenda a ideologia dos movimentos ecológicos burgueses, no entanto reconhece a destruição da natureza em um sentido mais amplo, interconectado ao capitalismo; e não como uma volta, como querem os ecologistas, a um arquétipo do contrato social rousseuniano.