MEDIDA PROVISÓRIA E DIREITO CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO

 

Fábio Ferro Fontes[1]

Rômulo Frota de Araújo

 

 

Sumário: Introdução; 1. Medida provisória: conceito, história e a emenda constitucional 32/2001; 2. Aspecto tributário da medida provisória à luz dos principios constitucionais tributários da legalidade e da anterioridade; 3. Poder Executivo e o processo legislativo. Conclusão;  Referência

                                                                    RESUMO

Objetiva-se nesse trabalho analisar o aspecto tributário da medida provisória e sua potencial inconstitucionalidade. Principalmente à luz de princípios constitucionais tributários da legalidade e da anterioridade, levando em consideração, sobretudo o caráter provisório, de urgência e relevância do ato do Poder executivo. E por fim analisar a atuação do Executivo no processo legislativo, assim como o predomínio presidencial na atualidade.

PALAVRAS-CHAVE:

Medida provisória, Executivo, Direito, Constitucional, Tributário.

 

 

 “Estado de Direito e legalidade na tributação são termos equivalentes. Onde houver Estado de Direito haverá respeito ao princípio da reserva de lei em matéria tributária. Onde prevalecer o arbítrio tributário certamente inexistirá Estado de Direito. E, pois, liberdade e segurança tampouco existirão.”

 

Sacha Calmon

INTRODUÇÃO

A medida provisória tem sido utilizada a esmo no cenário legislativo brasileiro. E é justamente em função disso que se faz necessário uma analise à luz do principio da legalidade para aprofundarmos o estudo à respeito da constitucionalidade desse instrumento. Não podemos esquecer também que essa medida é uma ação do Executivo, então faremos uma analise, de como o Legislativo sofre influência do Executivo e de que forma esse poder acaba contribuindo para o processo legislativo, como forma até de incursão de competências.

Inicialmente faz-se necessária a explanação do conceito de medida provisória para então aprofundarmos o aspecto tributário desta. Em segundo momento ressaltamos a disparidade entre a atual jurisprudência e a doutrina majoritária no tocante ao aspecto tributário da medida provisória. Faz-se necessário também a análise constitucional do direito tributário à luz dos princípios da legalidade e da anterioridade, esta análise é, principalmente, sob a constitucionalidade material e formal a respeito desse ato normativo.

MEDIDA PROVISÓRIA: CONCEITO, HISTÓRIA E A EMENDA CONSTITUCIONAL 32/2001

A Medida provisória tem a sua origem historicamente no decreto-lei, amplamente utilizado pelos Presidentes desde a nossa Constituição anterior. Este, o decreto-lei, por sua vez, tem origem nos decretilegge, da Constituição Italiana de 1947, que não por acaso, era um instrumento do sistema parlamentarista, no qual o primeiro-ministro, que institui o ato, possui a maioria do Parlamento.

Hodiernamente o instrumento legislativo - decreto-lei, ou medida provisória (em sua designação mais recente) - do Poder Executivo vem sofrendo um desgaste em sua imagem. Abalada por dois principais motivos, o primeiro é que foi usado amplamente por governos de exceção para legitimar suas arbitrariedades, e também pelo abuso do Poder Executivo fazendo com que em alguns casos, o principio da separação dos poderes ficasse comprometido.

A Constituição institui a Medida Provisória no art. 59º e disciplina no art. 62º, no qual, o caput tem a seguinte redação: “Art.62 Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.”

 A medida provisória consiste em um ato administrativo com força de lei que o Presidente da República pode expedir em casos extraordinários, de relevância e urgência. Nota-se que a medida provisória não é lei, apenas tem força de lei e só pode ser instituída mediante relevância e urgência. Todavia, podemos observar que esses requisitos de relevância e urgência são apenas formais, não ocorrendo verdadeiramente na prática legislativa brasileira.

É importante também, evidenciar o caráter provisório da medida, pois o ato do presidente, hodiernamente, tem sessenta dias de prazo, prorrogável uma única vez por mais sessenta dias. Contudo, esse prazo só passou a vigorar depois da emenda constitucional nº32/2001. A Emenda Constitucional nº32/2001 representa uma verdadeiro divisor de águas das medidas provisórias. Pois todas as medidas provisórias instituídas antes da publicação da Emenda, perderam seu caráter de provisoriedade, até que uma outra medida provisória as revogue explicitamente ou o Congresso Nacional delibere definitivamente sobre a matéria versada.

Nas palavras de Roque Antonio Carrazza: “[...] veio a lume a Emenda Constitucional 32, de 11.9.2001, marotamente alterando o art. 62 da CF.” O antigo artigo 62 que só possuía um único parágrafo, passou a ter doze, e o que mais chama a atenção para o nosso estudo é o parágrafo segundo. Literalmente: “§ 2º Medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada.”

Portanto com a Emenda supracitada, o executivo passa a poder instituir medida provisória sobre matéria tributária desde que respeite-se o principio da anterioridade. Com exceção dos impostos do Art.153, I, II, IV, V e 154, II. (Que são os que excepcionam o principio da anterioridade)

ASPECTO TRIBUTÁRIO DA MEDIDA PROVISÓRIA À LUZ DOS PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS DA LEGALIDADE E DA ANTERIORIDADE.

No direito tributário, o principio da legalidade não se resume ao art. 5º, inciso II da nossa Carta Política, que diz: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. Esse inciso institui de forma genérica, a todo o direito, que o Estado deve respeitar a segurança jurídica, direito de todos os cidadãos. Entretanto, ainda seria uma idéia muita vaga no que concerne o Direito tributário.

Para suprir a necessidade de uma maior segurança jurídica, temos o art. 150º, que enuncia: “Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”

Deve-se ressaltar que o artigo exprime, somente, a lei. E vale relembramos também, que, apesar da medida provisória ter força de lei, esta não é uma lei. É somente um ato administrativo que o chefe o executivo pode instituir em caso de relevância e urgência.

Ora, se a medida provisória não é uma lei, podemos concluir sem mais complicações, com uma interpretação gramatical, que a criação ou majoração de tributos por ato provisório é inconstitucional. Sob pena de o executivo estar invadindo a orbe do legislativo que, a priori, é o responsável pela elaboração de leis.

Este princípio, que vem sendo reconhecido desde 1215 com a carta magna de João sem-terra, está sendo desprezado pela jurisprudência brasileira, ao contrário do que corrobora a doutrina. Roque Carrazza:

[...] as medidas provisórias, embora produzam efeitos imediatos, assim que publicadas, fazem-no de modo reversível e, portanto, precário. Justamente por isso, não podem instituir tributos, já que o assunto vem presidido pelos princípios da segurança jurídica e da não-surpresa. [2]

Outro princípio que pode corroborar a idéia de inconstitucionalidade da medida provisória sobre tributação é o da anterioridade. Que por sua vez é o que mais impede o ato normativo provisório versar sobre tributos.

Em via de regra, os tributos obedecem ao principio da anterioridade, salvo algumas exceções, os impostos sobre; importação de produtos estrangeiros; exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; produtos industrializados; operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; na iminência ou no caso de guerra externa, impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária, os quais serão suprimidos, gradativamente, cessadas as causas de sua criação. Para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência. Estes são os casos em que o princípio da anterioridade não abarca. E é justamente por isso que não podem ser alvo das medidas provisórias, pois a própria Constituição já determina outros específicos mecanismos legislativos de urgência ou relevante interesse público para estes casos. Mecanismo estes que não convém abordarmos pois o foco dessa análise são os casos genéricos.

Carrazza aduz:

[...] a esmagadora maioria dos tributos deve obedecer ao princípio da anterioridade. Reiteramos que a lei que cria ou aumenta tributos entra em vigor, no mais das vezes, (sic) num exercício financeiro, para só tornar-se eficaz no exercício financeiro seguinte. Segue-se, assim, inexistir razão jurídica para criá-los ou aumentá-los por meio de medidas provisórias. Deveras de nada adiantaria criar um tributo, digamos,[...] por meio de medida provisória, se ele só poderá ser exigido no próximo exercício financeiro.[3]

Com essa citação podemos ilustrar o problema que queremos expor. Ora, se a medida provisória é em caso de relevância e urgência, como podemos dizer que é urgente a cobrança de tributos se só poderá ser executado no exercício financeiro ulterior. “O principio da anterioridade não rima com o mecanismo operativo das medidas provisórias.” [4] São palavras de Carrazza.

 

PODER EXECUTIVO E O PROCESSO LEGISLATIVO

 

Percebemos que a medida provisória por ser um pedido unilateral, um projeto de iniciativa do Executivo, acaba interferindo no processo de produção de leis, acaba intervindo em matérias que não deveria atuar. Essa medida deve ser um ato de urgência, com matéria específica, voltado para o interesse público e tem a finalidade de inovar o ordenamento jurídico, com novas propostas, provocando assim o Congresso Nacional a deliberar sobre o assunto.  Contudo, essa medida não é apenas um projeto, é um ato normativo primário, já com poder de lei e a partir desse efeito de norma vinculante que a medida provisória tem, é que nos perguntamos se essa medida não seria uma forma mais influente de interferir no processo legislativo.

Observamos que o paradigma do Estado democrático de direito, foi rompido, tendo em vista que o presidencialismo fortalece os poderes desse representante do governo (Presidente), em detrimento aos outros poderes. O monopólio na apresentação de projetos de leis realizado pelo Executivo evidencia isso, esse crescimento de um poder em relação a outro, colocando em dúvida o sistema de freios e contra pesos. A realidade política brasileira nos mostra que o presidente geralmente tem o apoio da maioria dos parlamentares, já que o presidente constrói a sua base de apoio parlamentar, nomeando Ministros por indicação dos partidos com aliança no governo. Isso é o chamado presidencialismo de coalizão, em que comercialização de cargos e verbas é feita como forma de garantir votos no Congresso.  Dessa forma o Executivo acaba atuando na esfera legislativa, invadindo competências. Notemos a opinião de Gilmar Mendes sobre o assunto:

“A EC n.32/2001 não cuidou de proibir a edição de medida provisória sobre matéria da iniciativa legislativa exclusiva de outro poder... há de se considerar que ela atua em terreno impróprio quando dispõe sobre assunto cuja abertura do debate o constituinte quis subordinar ao juízo exclusivo de oportunidade e conveniência de outro poder.” [5]

A Manifestação da vontade do Legislativo deve ser imposta ao Presidente, o Congresso Nacional deve ter a ultima palavra em relação aos projetos de lei do Executivo. Entretanto, percebemos que existe um predomínio presidencial, atingindo inclusive o processo legislativo, devido ao apoio do Congresso, que coopera e vota favoravelmente aos projetos de lei. Essa interferência no Legislativo não é algo novo, já ocorre faz tempo, percebemos, por exemplo, nos tempos de Ditadura, com os famosos Atos Institucionais ns. 2, 4 e 5, que confiavam ao Executivo o perfeito exercício da função legislativa, através da criação direta de leis provenientes de decretos-leis (antecessor da medida provisória). Essa legislação extraordinária tem a preferência do Executivo desde 1967, com os chamados decretos-lei e posteriormente substituídos pela medida provisória, que basicamente tem a mesma finalidade do decreto substituído.

O poder Executivo, ao longo do século XX, passa, da capacidade de impedir, consubstanciada no poder de veto, para a capacidade de estatuir, ao ampliar o seu poder de iniciativa de leis, inibindo, por via de conseqüências, essa faculdade ao Legislativo.[6]

Constatamos que na atualidade há um desequilíbrio no regime democrático, pois temos uma redução do processo político, restringido a simples eleições, fazendo com que a democracia se enfraqueça, já que a mesma não é somente feita de votação livre, observamos que os parlamentares estão mais interessados em se submeter aos interesses partidários do que exercer suas devidas funções. O Congresso Nacional perde sua participação na construção de leis, estamos no meio de um processo de enxurrada normativa, em que medidas provisórias e atos ministeriais usurpam competências legislativas.

O exercício de prerrogativas da soberania nacional, sem audiência do Congresso, pelos ministros da área econômica, quando decidem sobre matéria econômica e financeira de caráter internacional, produzindo um ônus que compromete toda uma geração; o desprestigio da lei e da constituição como regras jurídicas abstratas de fixação de direitos e deveres dos cidadãos, o excesso de decisionismo casuístico refletido numa torrente de atos e medidas executivas, eivadas de contradições, recuos, inconstitucionalidades e surpresas.[7]

Percebemos com a citação um enfraquecimento da função legislativa por conta da potencialização do Executivo, aquele predomínio desse poder no cenário nacional, e vemos ao mesmo tempo, o exercício presidencial vai além de matérias de sua competência, ocorrendo uma “delegação disfarçada”, ou seja, uma atuação em matérias constitucionais que não são de sua confiabilidade, que não são de seu uso regular. O principio da separação dos poderes está em baixa, já que não temos mais aquela regulação de um poder para com o outro, e sim uma preponderação que está se instaurando.

CONCLUSÃO

Podemos concluir que a medida provisória é um instrumento complexo, no qual o Executivo tem a possibilidade de legislar, e se não bem cuidado, pode até interferir na independência do legislativo.

Com uma analise critica podemos perceber uma verdadeira aberração jurídica no que tange a instituição ou majoração de tributos através da medida provisória. Entretanto por motivos políticos, a jurisprudência tem feito vista grossa, e o legislativo acabou acatando aos desmandos do Executivo, promulgando a Emenda Constitucional nº 32, Emenda esta que serviu para corroborar a falta de respeito às leis por parte dos nossos representantes.

A inconstitucionalidade evidente explicitada pela doutrina (Carraza, Michel Temer, entre outros) não foi levada em consideração em virtude da governabilidade.

Em outras palavras, o nosso estudo pretende evidenciar que é inconstitucional todo e qualquer tributo que venha instituir ou majoração tributos. E que a medida provisória vem sendo utilizada amiúde como forma de desrespeitar o ordenamento jurídico brasileiro, pois perdeu seu caráter inicial que era o de relevância e urgência.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS:

 

 

ALBUQUERQUE, Ana Cristina. CHAVES, Wallace. RIBEIRO, Juscelino. O Poder de agenda do poder executivo no processo legislativo: uma abordagem à luz do devido processo legislativo. Belo Horizonte. 2006

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 23ª Ed. São Paulo. Editora Malheiros. 2007

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Os poderes do presidente da república. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Diretor Paulo Bonavides. Editora Del Rey. n° 4. Julho/dezembro. Belo Horizonte. 2004.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ed. São Paulo: Saraiva Editora. 2009.

MENDES, Patrícia Guimarães. A medida provisória sobre matéria tributária em face da Emenda Constitucional nº 32.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24ª Ed. São Paulo. Editora Atlas. 2009

PRAZERES, José Ribamar. O Direito Tributário e a Medida Provisória.



[1] Acadêmicos do terceiro período do curso de Direito do Ensino Superior Dom Bosco (UNDB). ([email protected]) e ([email protected])

[2] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 2007. Pag. 283

[3] Ibid. Pag. 284

[4] Ibid. Pag. 288

[5] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2009.  p.933 

[6]  CARVALHO, Kildare Gonçalves. Os poderes do presidente da república. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. pag. 578

[7] Ibid.pag. 591